O viciado em leitura olha excitado uma biblioteca, a casa onde os livros dormem. O livro fechado é um objeto morto, só vive quando aberto. O livro chama o leitor, uma atração como um ímã, uma sedução irresistível como o canto das sereias da “Odisseia”. Um dia, eu estava na cidade de Perugia, diante de uma pequena biblioteca de livros italianos. Um chamou minha atenção pelo título, abri e aos poucos fui decifrando, pois o italiano não é grego, mas não é fácil. Passei horas com o pequeno volume vermelho, era uma edição simples, composta por mensagens de condenados à morte, os partisans da Resistência Italiana. Resistência construída durante a Segunda Guerra Mundial, em especial a partir de 1943. Ler as últimas palavras de jovens, escritas na noite que antecedia as execuções, foi angustiante.

Todo o dia lia mais algumas das mensagens tristonhas, eram despedidas da vida. A introdução do livro esclarecia que todos os condenados tinham sido mortos por pelotões de fuzilamento. Haviam lutado contra o fascismo e o nazismo, e nos bilhetes constavam as idades dos partisans, que eram em torno de vinte a vinte e cinco anos. Um ou outro tinha trinta e só um quarenta anos, era casado, escreveu primeiro à esposa, que conhecera na adolescência, e se despediu dela e depois de cada um dos seus filhos, bem como dos pais e de uma irmã. Lembro que ao terminar de ler e reler essa carta fechei o livro para respirar diante das lágrimas das palavras. Um livro, as vezes, requer uma leitura lenta, afinal lia as palavras essenciais na vida de quem já vai morrer, sua última mensagem. Frases que expressavam gratidão aos seus, e o encorajamento para os seus amores seguirem a vida.

Os condenados entraram na Resistência sabendo da possibilidade da morte, e escreveram que morriam com o sentimento de terem lutado no lado certo da vida. Combateram o fascismo, a extrema direita, aliado histórico dos nazistas. Todos os dias dediquei algum tempo ao livrinho vermelho, era uma dor ler jovens sabendo que em horas mais estariam mortos, e um alívio estar vivo e no outro dia não enfrentar um pelotão de fuzilamento. Alguns comentaram que não iriam ter tempo de ter filhos, outros até de se casarem. O denominador comum nas cartas eram duas palavras: uma, a gratidão por serem italianos antifascistas, outra, o amor aos seus familiares. Todas as resistências às ditaduras envolvem desafios pessoais, opções existenciais.

Nas leituras das cartas se pode perceber, mais uma vez, como a morte e o amor, o amor e a morte se encontram. Não por acaso, um versículo da Bíblia é um canto repetido do Cântico dos Cânticos: “O amor é forte como a morte”(8,6). No meio da crueldade o amor insiste, resiste, se mantém forte, é a vivacidade pura da vida. O escritor Macedonio Fernández, mestre de Jorge Luis Borges, escreveu que a morte vence a vida, mas o amor vence a morte. Depois da morte o amor segue vivo na vida dos vivos, vivo e gerando efeitos amorosos. Com o tempo os mortos passam a ser os visitantes noturnos através dos sonhos.

Um sonho pode se manifestar como pesadelo, mas sempre é melhor assim que um pesadelo real como se vive hoje aqui. Nossa história é marcada por regimes ditatoriais ditados por medíocres, dominado por Forças Desalmadas, que permitem intervalos democráticos. Para quem está triste, desanimado, e são muitos, vale a pena ler, ver filmes sobre a resistência tanto ao nazismo e ao fascismo, como as ditaduras militares. E escutar a música “Bella Ciao”, hino da Resistência Italiana, que se transformou no hino mundial contra o autoritarismo. E imaginar o vento secando as lágrimas, e o amor voltando a brilhar.