Marina, Morena Marina, Você Se Pintou
Marina , Você Faça Tudo
Mas faça um favor…
Lembro perfeitamente o dia que descobri que no Brasil existem vários brasis. Aqui narro: Certa feita, uma moça , negra foi fazer um trabalho lá em casa e levou a filha da minha idade. A menina, que só vi uma vez e não lembro o nome, ao entrar no meu quarto, ficou maravilhada com as Suzies, fogõezinhos de brinquedo feitos para treinar as meninas a serem donas de casa, aquele monte de tralha de criança de classe média. Minha mãe avisou que iríamos lanchar. E sabe-se lá porque essa criança começou a me falar, com deleite, do pão que havia comido na casa de uma patroa de sua mãe.E repetia sem parar:”Mas era um pão com muita manteiga, muita manteiga”.Logo depois mamãe surgiu com um misto quente para cada uma, eu devorei o meu como bárbara que sou e ela comia devagarzinho, como se quisesse que aquele gosto ficasse na lembrança. Sua mãe chamou, elas se foram e nunca mais as vi. Era um trabalho avulso, acho que a mãe foi substituir uma passadeira que havia faltado.
Sei que fiquei incomodada com o “muita manteiga”.Não era boba, sabia que não podia ser pelo fato dela ser aficionada por essa comida tão trivial. Sozinha entendi o óbvio: Se deseja o que se falta.
Apesar de nascida e criada no Rio, uma cidade que expõe suas diferenças sociais na própria geografia, minha vida se resumia a escola de classe media, colegas do mesmo meio, carro pra levar e buscar na escola e férias em Valença, visitando o sítio que minha avó morava.
Só que a gente vai crescendo, vai olhando ao redor e ter pais esquerdistas e avô comunista ajudam bastante nesse processo. Ainda assim foi com dificuldade que entendi que esses brasis não apenas existem como também se misturam num mesmo espaço. Eles coexistem.
Essa percepção me chegou através de Maria das Dores.Das Dores era ex-interna do hospital psiquiátrico, não tinha família e foi acolhida lá em casa pelos meus pais como vários outros.Era nossa babá.Negra, magrinha, fala rápida, o Brasil de Das Dores era representado por um poster de Amado Batista na parede, Revista Sétimo Céu e um repertório musical completamente diferente do que se costumava ouvir fora dos limites do seu quarto.
Enquanto no mundo dos meus pais e avós imperava Chico Buarque ,muita bossa nova, o jazz da Ella Fitzgerald e uma biblioteca repleta de livros clássicos, no mundo de Das Dores eu mergulhava nas fotonovelas. O programa do Chacrinha também ajudava nessa travessia. Meu avô Arthur, intelectual de porte, não perdia. E eu ficava lá ao lado dele, dividindo o biscoito maisena piraquê com suco de caju, assistindo aquela loucura. No mesmo palco cantava Caetano, logo depois chamavam Almir Rogério. As chacretes e suas botas platinadas de Barbarellas tupiniquins me fascinavam..Quando crescesse, queria ser chacrete. Era meta de vida. O Programa do Chacrinha era o retrato do Brasil.E sim, Abelardo era um gênio.
Essa é a minha lembrança do que eram as músicas populares daquele Brasil dos anos 70.Toda essa rememoração veio através de uma discussão em um grupo que faço parte entre um dos membros e minha amiga Marina Costim. O post em questão falava que Paulo Coelho era ruim de ler, era um autor menor. Marina , firme, defendeu que foi através dele, tanto ela quanto sua geração, que começou a tomar gosto pela leitura. E eu que sou uma intrometida, lembrei que falem o que quiserem mas a historia do Mago é sensacional. Lembrei que só fui saber já bem velha que o meu eterno ídolo Sidney Magal era cover de um cantor argentino de sucesso chamado Sandro.E que quem fazia as traduções das músicas era ninguém mais, ninguém menos, que Paulo Coelho.
Fui tão fascinada pelo Sidney Magal e sua eterna Sandra Rosa Madalena, que guardo profunda inveja de amiguinha que foi ao show dele, foi chamada ao palco e recebeu das mãos dele uma rosa vermelha e um beijo na bochecha. Nem mesmo Ney Matogrosso, meu ídolo máximo, que num show dedicado a Ângela Maria, desceu do palco e dançou babaloo exclusivamente para mim me fez debelar essa inveja.
Não cabe aqui nesse texto discutir sobre o que se considero alta ou baixa cultura. Até porque essas nomenclaturas para mim não importam , deixo isso para os acadêmicos .O que posso falar, da minha vivência, é que existe uma enorme afetividade da minha parte em relação a esses músicos considerados “cafonas”, que fizeram sua história na década de setenta. Foi lendo o definitivo livro de Paulo César de Araújo, historiador, jornalista e escritor “Eu Não Sou cachorro Não” que pude ter compreensão de fatos que até então me passavam batidos. Paulo César, ele mesmo de familia humilde, filho de lavrador de Vitoria da Conquista, ao querer escrever um livro sobre a dita musica cafona da década de setenta, ´percebeu que nada constava na historiografia musical oficial. É uma musica que nasceu bem longe do apartamento da família Leão em Copacabana.É o preconceito que grita.É uma musica banal, óbvia, direta, sentimental, rotineira, palavras do próprio Paulo Cesar.
Independente de ser consumida do Oiapoque ao Chuí, de seus cantores serem recordistas de venda, ao invés desse fato ser visto como uma vitória, é tomado como um defeito.
Paulo César diz que ao contrário das musicas engajadas, de Chico, Caetano, Gil, a musica cafona , para determinados críticos, atuaria como elemento alienante para o povo, daí o desprezo dos historiadores. Lêdo engano.A censura era para todos. Exemplos não faltam. Waldick Soriano quis regravar um bolero dos anos 50 e foi impedido. O título era “Torturas de Amor”.Tortura era a última palavra que poderia existir naqueles tempos numa musica.
Odair José que o diga, Vindo de Morrinhos, interior de Goiás, veio tentar sucesso no Rio.Sem apadrinhamento, sem dinheiro,não foram poucas as vezes que dormiu em escada de hospital para ter uma noite de sono.Odair, que recebeu a alcunha de Bob Dylan da Central, cantava para seu público. Suas músicas eram verdadeiras crônicas .Suas letras eram dedicadas as empregadas domésticas (que nem tinham registro oficial) , as mulheres do baixo meretrício (Eu Vou Tirar Você Desse Lugar) e aquelas mulheres que por necessidade estavam se inserindo no mercado de trabalho. Eram musicas que falavam a alma. Almas que passavam bem longe de barquinhos a navegar.
Morei numa cidade do interior do Rio, dei aulas na universidade de lá e por ser jovem, meio que fui adotada por um grupo de senhores professores do IME. Um deles me contou algo que nunca esqueci. Primeiro sobre a velha tríade da cidade brasileira: Por menor que seja há de se ter uma igreja, um campo de futebol e um puteiro. Engenheiro militar, muitas vezes ia parar em lugares impensáveis, num desses rincões do Brasil, que funcionavam com gerador.Seis da tarde, tudo fechado, menos a casa de tolerância, que sabe-se lá como sempre tinha cerveja gelada.E não era incomum ver uma prostituta, sozinha, diante de uma garrafa cerveja, chorando ao som de Odair José. Não se trata aqui de glamourizar a prostituição e sim de falar que esse sim era o som do Brasil Grande.
Odair, com sua Pare de Tomar a Pílula, tratando de um assunto tabu, acabou caindo nas garras da censura e do governo militar .Numa entrevista ao jornalista Silvio Essinger ele narra: Eu fazia shows pelo Brasil. Uma vez, no Espírito Santo, numa faculdade, me pediram para tocar a “Pílula”. Como estava no interior, cantei, achando que não ia acontecer nada. Mas, naquele mesmo dia, tive que ir prestar depoimento. Depois, a gravadora me levou a Brasília para tentar entender por que a música não poderia ser tocada, e foi só aí que me explicaram o motivo. O governo tinha um programa de distribuição de pílulas nos hospitais públicos, então como é que poderiam permitir uma música chamada “Pare de tomar a pílula”? O programa do governo fracassou. Minha música está aí até hoje.
O estrago maior do regime foi a autocensura. Passei a ter medo da forma como colocava as coisas no papel. Fiquei mentalmente amarrado, tinha dificuldade para compor. Perdi o pique. A música foi proibida de tocar não só no Brasil, como em toda a América Latina..Portanto, não foi por não desafiar a censura que esses cantores dito “cafonas” ficaram excluídos da historiografia musical do Brasil.
E sim, as musicas tocavam a minha alma infantil. Chorei baldes de lágrimas ouvindo Menina da Cadeira de Rodas, de Fernando Mendes. Apesar de ter vários senões em relação a Agnaldo Timoteo, não há como negar sua importância. Quando canta A Galeria do Amor, está a falar da Galeria Alaska, reduto gay do Rio de Janeiro.Se isso não é coragem, não sei que nome dar. Agnaldo como quase todo musico dessa vertente, começou trabalhando cedo, para ajudar sua mãe. Mas sua madrinha foi a maravilhosa Ângela Maria, de quem foi motorista e quem o lançou como cantor.
Há uma história fantástica e deliciosamente improvável narrada por Paulo Cesar.Apesar de estilos e turmas diferentes, Agnaldo e Gonzaguinha desenvolveram uma bela amizade.Gravavam na mesma gravadora e muitas vezes Gonzaguinha ia para a casa do amigo, tomar aquele uisque fim de noite.Numa dessas Agnaldo contou sobre o seu amor, Paulinho.Um rapaz mais jovem, bonito, a quem Agnaldo dava tudo que podia e por quem realmente era apaixonado. Paulinho porém, a cada viagem de Agnaldo, ia se aventurar por aí. E quando sabia disso, Agnaldo morria por dentro. Quem nunca? Ao mesmo tempo que o queria longe da vida, não suportava a dor da perda. Foi com essa historia que Gonzaguinha escreveu, na mesma noite, Grito de Alerta, imortalizada na voz da Bethania.
Nosso caso é uma porta entreaberta
E eu busquei a palavra mais certa
Vê se entende o meu grito de alerta Veja bem,
É o amor agitando o meu coração
Há um lado carente dizendo que sim
E essa vida da gente gritando que não
Essas pessoas fabulosas fizeram parte da minha vida.Vanusa, Nelson Ned, Antonio Marcos, Almir Rogerio, Perla e sua beleza guarani e tantos outros. Sim, era o som do Brasil Grande. Era o som da Maria das Dores .E provavelmente era o som que a garotinha da manteiga ouvia em casa. Meu enorme respeito e carinho por essas pessoas. Li na Piauí que Paulo Cesar de Araújo desenvolveu uma amizade com João Glberto, numa dessas coincidencias estranhas da vida. E passaram a se telefonar.João Gilberto aconselhou-o a ir em busca do pai lavrador, que havia se distanciado da família.E, quando finalmente o gênio da bossa nova e o historiador foram apresentados pessoalmente João Gilberto disse:”Eu sou o João”.E Paulo Cesar de Araújo, apenas respondeu:”Eu sou o Brasil”.
PS: O texto é dedicado a Marina Costim e por isso a epigrafe de Caymmi. Mais do que isso, é preciso dizer, que num encontro entre o velho baiano e Odair, o que Dorival falou foi:”Rapaz, ninguém nunca fez uma musica de puta como você nesse país, que beleza!”.Se isso não é Brasil, não sei o que é.
PS2:Para quem se interessar, histórias deliciosas e muitas críticas pertinentes no livro de Paulo César de Araújo.ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de janeiro: Record, 2010. 7ª. Ed.