A faxina que não termina acabou me levando a um velho dicionário. Olhei a lombada castigada pelo tempo, os dedos escorregaram para a primeira página. Lá estava. A dedicatória ao Menino, desejando que continuasse a ser “o ótimo aluno que tem sido”. Tios e primos não tinham como saber, mas aquilo foi recebido não como a declaração de bem-querença, de afeto, mas como um imperativo que exigia dedicação monástica, o “melhor aluno” era uma prova atlética de quem se exigia nada menos do que a medalha de ouro. Sempre. Uma carga que deixou não poucas cicatrizes.
O documentário de João Moreira Salles sobre Nelson Freire captou um raro momento de sorriso do enorme pianista. Ele aponta para uma tela que exibia um solo de Errol Garner. O jazzista praticamente brincava com as teclas do piano, intimidade quase erótica que desabrochava em alegria. Para Garner, tocar piano, improvisar, era um grande prazer. Pois Nelson disse invejá-lo. Claro que não se referia a questões técnicas, mas ao espírito livre de cobranças, à leveza de quem não está obrigado a bater recordes olímpicos em cada apresentação. Pelo que se conhece da biografia do mineiro, a música redimiu uma infância solitária e angustiada. Nós, ouvintes encantados pela sua arte, ganhamos um pianista genial. No entanto, o custo para ele foi pesado. Difícil conciliar o prazer de tocar com a leveza, impossível ?, de viver.
Henry Cole, também pianista, personagem do filme A última nota, passava por uma crise. Começou a ter lapsos no meio dos concertos, imperdoáveis para um músico erudito de sua categoria. Conversando com uma amiga, falou sobre como percebia o público. Tinha a impressão de que ninguém se interessava verdadeiramente pelas músicas, de resto velhas conhecidas. Todos esperavam, sádicos ora essa, que ele tocasse um bemol fora de hora, ou pior, glória !, que esquecesse um acorde inteiro. Comparava com as exibições dos trapezistas. Segundo a neura de Cole, a torcida sempre é para que o trapezista se desequilibre e se esborrache. Peso, cobrança.
O Menino jogava suas peladas sempre descalço. Bailava sem precisar de sapatilhas. Um olheiro intuiu o craque (!) por trás daquele moleque e o convidou para treinar num clube tijucano. Como mandava o figurino. Tênis, meião, uniforme. Quando terminou de vestir a camiseta, teve a estranha sensação de estar entalado numa armadura. Dito e mal-feito. Observado pelo técnico, juiz implacável, suas asas foram decepadas. Não conseguiu dar um drible, um passe arrojado. Esquentou o banco até ser logo cortado. Voltou alegre para o campinho de cimento áspero, as balizas de chinelos velhos e as orgulhosas cicatrizes da infância. Peso, cobrança.
Do dicionário cobrador à ilusão de que toda a sabedoria está concentrada nos livros foi um pequeno salto. Levei muita bordoada até me livrar da tradição bacharelesca, bem conveniente para um tímido. Há muita vida fora do papel e isso nem sempre é óbvio. Aqui cabe citar Washington Novaes, jornalista e ambientalista morto recentemente. Em 2000, foi entrevistado no Roda Viva. O então senador Blairo Maggi, magnata do agronegócio, questionou Novaes sobre se ele achava que todos deveríamos viver como índios. A resposta desmascarou o hoje bolsonarista: “Não, nós não teríamos competência para isso. Mas nós poderíamos aprender com eles”. Cultura de transmissão oral, que vem sendo dizimada.
Creio que cheguei a uma forma de equilíbrio. Precário, instável, provisório, como tudo na vida. Uma quietude que, às vezes, não passa de lampejo, mas conforta e estimula. O fiscal interno está menos exigente, os livros deixaram de ser apenas combustível para batalhas imaginárias. Quanto a estes, paixão sensorial, me sinto cada vez mais perto do que disse António Lobo Antunes: “Gosto de descobrir escritores que me ajudam a conhecer a mim mesmo, que me mostram o país que eu sou, (…) a casa cheia de portas fechadas que eu sou, porque no fundo vivemos numa parte muito pequena de nós mesmos”.