Na minha adolescência nasceu o desejo de entender o ser humano, mas aprendi que desejava saber quem eu era. Hoje sei algo do quem eu sou, pois é toda uma odisseia conhecer quem se é por dentro. Uma das lições foi aprender a palavra paradoxo, como é a expressão “Trapaça Sagrada”. Esse paradoxo surgiu numa aula de estudos do livro “Finnegans Wake”, a labiríntica obra de James Joyce. O tradutor para o português foi o conhecido Donaldo Schüler, que sugeriu um grupo para ler esse livro composto de uns 65 idiomas. É uma leitura em voz alta para se escutar para pensar os vários sentidos de cada frase. Na primeira reunião me chamou a atenção uma referência de Joyce sobre o patriarca Isaac. Ele foi o pai de Esaú, o mais velho, e Jacob, o mais moço, e foi iludido ao abençoar Jacob como primogênito. Não sabia que muitos anos antes Esaú pediu um prato a mais de lentilha ao Jacob, que prometeu dar em troca da primogenitura. Disse no grupo que Jacob fizera uma trapaça, pois a primogenitura não podia ser vendida. Donaldo concluiu que tinha sido então uma Trapaça Sagrada, pois fora aceita na Bíblia.
Paradoxo vem do grego (paradoxos), em que o prefixo “para” quer dizer contrário a, ou oposto de, e o sufixo “doxa” quer dizer opinião; logo, o paradoxo são opiniões contrárias. Exemplos são afirmar que o riso é uma coisa séria, ou a eterna novidade do mundo, pois são verdades opostas que constituem outra verdade. São expressões paradoxais, pois envolvem contradições que geram um sentido novo, desconcertante. Pensar a complexidade do humano requer conhecer os paradoxos, como a palavra amoródio, que não tem no dicionário. As palavras amor e ódio, em princípio, são excludentes, pois ou é amor ou é ódio, são afetos opostos. Entretanto, as relações amorosas são paradoxais, pois convivem o amor e o ódio em diferentes proporções, daí o amoródio. Pensar o paradoxo é facilitado à medida que se conhece a realidade psíquica na qual o inconsciente tem uma lógica própria, porque nele não há contradições entre o certo e o errado, o amor e o ódio.
A trapaça sagrada é para diferenciar da trapaça profana, conhecida como fraude, dolo, roubo. A trapaça está a serviço do poder, seja do dinheiro, da fama, da vaidade ou do poder político. Uma ambição desmedida leva um país a amputar sua alma, para viver à base da trapaça. A trapaça pode estar num falso atentado contra a vida de um candidato a presidente. Trapaça também são as “fake news” diárias, as mentiras repetidas que se passam por verdades. Trapaças na economia não faltam, como a de queimar a Amazônia, que pertence ao povo, para beneficiar a uns dez milionários. Os índios na Amazônia, na Bahia, estão sendo atacados e a mídia está indiferente. E seguem os mortos da pandemia, já se calcula que chegará a 150 mil mortos, há cem dias sem Ministro da Saúde. A nação foi ocupada pelos fantasmas vivos do passado como a escravidão e as ditaduras. A esperança de uma sociedade democrática, com alguma justiça social, foi atacada pelo ressentimento.
O paradoxo brasileiro hoje, que desconcerta o mundo, é como o país do carnaval, foi dominado pelas sombras da cruel melancolia. Um governo eleito, em nome do combate à corrupção, liderado por um político travestido de juiz. Um dia será escrita a verdadeira história das devastações desse querido país que teve sua alma amputada. A lista dos antifascistas prova que o poder teme a resistência, mesmo ela sendo frágil. O amanhã está vivo na imaginação, e a dignidade será recuperada para o bem de todos.