O medo é constitutivo. Sem medo, sem ódio, sem nojo, a gente morre. São funções básicas de sobrevivência (Maria Homem, psicanalista)
Personagem dos anos 40, o Spirit sacudiu dogmas dos heróis dos gibis. Will Eisner o concebeu como um (quase) igual aos leitores. Enquanto seus congêneres mascarados Fantasma e Batman jamais se arranharam no enfrentamento dos vilões, o Spirit levava muita pancada, era traído e seu universo pedia meia-luz. Andava de metrô como qualquer mortal. Frequentava ambientes sórdidos e não tinha nascido em berço de ouro.
O mascarado vulnerável do Eisner será meu guia no balanço parcial do confinamento, que já bateu a marca dos cinco meses. Balanço pessoal, bem entendido. Enquanto as redes sociais continuam entupidas de gente sorrindo em selfies inexpressivas, estão rindo de quê ?, a situação está mais pra olho roxo. A verdade é que a máscara do Spirit, como as mazelas da pandemia, não esconde sua insegurança, sua identidade mutante, suas indefinições.
Poderia começar com a caquistocracia brasileira (apud Sérgio Rodrigues). Governo exercido pelos piores indivíduos da sociedade. Não há dia que passe sem as vilanias do Grande Bufão e seus Blue Caps. Mais do que isso. Parte significativa da sociedade vai soltando seus instintos mais abjetos, seus comportamentos indignos. Enfrentar o isolamento sabendo que o que anda por aí é um processo acelerado de autodestruição só faz aumentar a sensação de atordoamento. Poderia falar um pouco mais sobre isso, mas quero olhar para a rotina, o samba do tempo em pequena escala.
Pra começo de conversa, fui apresentado a panelas e vassouras. Não posso dizer que as saudei com um “muito prazer”. Prazer ? Ora, vá pentear macacos. Panelas, vocês sabiam ?, têm vida própria. Quando você acha que terminou a tortura detergente, surge uma nova pilha. São gremlins de teflon, um horror. E as gloriosas piaçavas ? Nunca tinha imaginado que o mundo é tão empoeirado. Você varre cada cantinho, acha que está livre do tormento por, digamos, um ano. Ilusão de calouro. O troço é como o tecido de Penélope, trabalho que sempre recomeça. Trabalho um tantão assim, cansaço é bastante sim. Cartola sabia das coisas.
Gestos de solidariedade ? Não comigo. No meu raio de visão, necas de pitibiribas. Confirmando a solidão nas grandes cidades, nenhum vizinho do meu prédio fez contato para saber como vamos, se precisamos de apoio. Também, pudera, de muitos deles sequer sei o nome.
Você consegue imaginar Woody Allen, notório hipocondríaco, isolado de seus médicos e de suas mezinhas ? Perda de controle, sensação de morte iminente. Pois é, não chego a tanto, mas neste tempo de privações tive que aprender a conviver, longe dos consultórios, com os discursos do meu corpo. E ele nem sempre está de bom humor. A ausência física de amigos e familiares cobra um preço. Nos poucos contatos ao vivo que tive, a sombra do medo nublou o prazer do convívio. Se tudo anda desequilibrado, como acordar disposto a correr a maratona ? Como driblar aquela angústia persistente, que teima em não se identificar na portaria ? Isolamento é ambiente ghost friendly, nossos fantasmas na tocaia grande, ansiosos para aproveitar as fragilidades do momento.
Choro os mortos, compartilho poesias, converso com quem quer conversar, sangro minhas saudades, leio sobre a vida de quem enfrentou outras dores, planejo a fila de abraços para depois, me fortaleço lembrando de gente que passou por guerras, deportações, perseguições, despedidas indesejadas, e não se dobrou. Cheio de hematomas, mas também de esperança. O que resta fazer ? Fazendo colagem com uma letra do Chico, mesmo com toda a lama, com todo o emblema, todo o problema, com a sala escura, com a cara dura, não tem mais jeito, a gente vai levando essa chama.
Abraço. E coragem.