Existe apenas um único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale a pena ou não de ser vivida significa responder à questão fundamental da filosofia (Albert Camus)
Era só o que faltava. Justo nesta fase pandêmica, em que a morte e o medo dela se fazem tão presentes, me caiu nas mãos a obra poética da Ana Cristina César. Louvada por gente de peso, espécie de musa da geração 70, transição para a de 80, resolvi encarar. O livro é uma egotrip interminável, hermético, garrafa ao mar com mensagem intraduzível. Drummond dizia que sob a pele das palavras há cifras e códigos. Devoto do itabirano, insisti. Tentei, mais de uma vez, filtrar o que lia com um olhar benevolente, curioso. Quem sabe uma pepita no meio do cascalho ? Em vão. O que terá acontecido ?
Intrigado com tanta e tamanha falta de comunicação, resolvi pesquisar a vida de Ana. Pistas. Internou-se várias vezes para tratar de uma depressão persistente. Suicidou-se, aos 31 anos, atirando-se da janela do apartamento dos pais. Terei, então, ouvido gritos de socorro ? Era disso que se tratava ? Não sei. Estou habituado à dificuldade de transformar em palavras aquilo que sinto. Escrever é uma aflição, as palavras serão sempre insuficientes para exprimir a essência dos sentimentos, dos desejos. É, como disse Alberto Manguel, um exercício sempre incompleto. Em que medida a poeta conseguiu fazer-se ouvir ?
Tive um amigo que cometeu suicídio. Emparedado pela névoa depressiva, desligou-se aos poucos do mundo. No final, já não conseguia fazer contato. Seus olhos, antes tão expressivos, estavam vazios. Tomou veneno, morte fulminante. Tal como Ana, teve a consciência definitiva de que queria morrer. Durante anos cultivei um ódio profundo ao seu psiquiatra, que não providenciou uma internação que, talvez, salvasse a vida do meu amigo. Tratamento intensivo, quem sabe ? A tragédia estava mais do que anunciada, só a insensibilidade metodológica não viu. Há, no mundo, cerca de 100 milhões de pessoas com o tipo mais resistente de depressão, que não tem nada a ver com melancolias passageiras. O suicídio é a segunda maior causa de mortes de jovens no mundo.
Não acredito que existam sentidos obrigatórios para a vida. O trabalho de construí-los, permanente, talvez não seja possível para quem sofre de alguma tirania bioquímica ou genética, que leva à depressão. Se o tirano for existencial, é possível, já disse Jards Macalé na pré-história, ser livre e sair de Gotham City. Mas, cuidado, sempre haverá um morcego na porta principal. Isso me leva a Woody Allen.
No filme Hannah e suas irmãs, Mickey Sachs, personagem de Woody, vive crises sucessivas. Novidade ! Queria saber onde estava a mão de deus num mundo cruel, paradoxal e opressivo. Questão trivial, né ? Tenta se aproximar de várias religiões e só acumula fracassos. São hilárias as cenas com os hare krishnas, a compra de símbolos cristãos num supermercado e a discussão com os pais sobre a divindade no judaísmo. Atormentado, sem resposta à dúvida sobre a existência de deus, tenta o suicídio. Encosta uma carabina na testa e, nervoso, erra o tiro. Desorientado, sai à rua, procurando uma “perspectiva racional”. Entra num cinema, sem saber o que estavam exibindo. Na tela, os irmãos Marx, para variar, botam o mundo de cabeça para baixo. Dançam, cantam, tocam xilofone nos capacetes de soldados, riem. Foi uma iluminação. Mickey percebe que, mesmo sem deus, sem uma entidade organizadora, controladora, é possível fazer parte do roteiro dessa vida sem o peso de perguntas sem respostas e uma dieta de angústias intermináveis. Não levar tudo tão a sério, sobretudo não se levar tão a sério. Estava lá a chave para recuperar o prazer de estar vivo. Apenas isto: estar vivo. Sai do cinema transformado.
Se fosse roteirista, eu poderia “nacionalizar” a cena. Nem Sansão, nem Dalila, de 1954. Oscarito, no papel de Sansão nonsense, faz uma paródia impagável do Getúlio Vargas. Usando um saiote grego, discursa: “Trabalhadores de Gaza ! A situação política nacional (e aqui carrega na letra ele, à la São Borja) está uma pouca vergonha. As mamatas andam soltas por aí e todos querem se defender”. Getúlio, que adorava as paródias que lhe faziam no teatro de revista e não tinha o mau humor das hordas ostrogodas de hoje, deve ter dado boas gargalhadas. Assim como nossa saúde mental. Cresci assistindo o chafariz da Atlântida e as chanchadas do Oscarito. Eu os convoco, junto com Grande Otelo, Cyl Farney, Eliana Macedo, José Lewgoy e Wilson Grey, quando os morcegos se insinuam no ambiente, e os espanto para seguir em frente.
Abraço. E coragem.