Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos/ Tempo, tempo, tempo, tempo (Caetano Veloso)
E lá estava eu, num salão dos anos 40, tombado pelo Patrimônio Histórico. Restaurante à moda antiga. A rua, antigo centro de gravidade do comércio carioca, agora era um canteiro de espectros. Da livraria Garnier à confeitaria Paschoal, da loja Ao Trovador à Casa Leuzinger, nada sobrara além de memórias. Eu mesmo, naquele momento, me sentia como ruína em busca de reconstrução.
No salão da Confeitaria Manon conversava com um amigo querido. Conhecíamos os garçons, a quem chamávamos pelos nomes. De vez em quando, intimidade. Falávamos dos solavancos da vida. Naquele dia, precisava mesmo de um bom par de orelhas amigas. Era uma fase difícil. Procurava me encontrar depois de décadas dissolvido em projetos coletivos. Começava a perceber como era mais fácil falar numa assembleia do que num tête-à-tête. Olhar para alguém, enxergar de verdade, é compartilhar histórias, criar espaços comuns, armazenar dores e ardores, oferecer confidências. A massa tem aspecto volúvel, falar com ela é como dialogar com sombras. É um diálogo importante, política é arte sofisticada. No entanto, quando exclusivo, perde-se a dimensão, fundamental, do encontro afetuoso, da descoberta de afinidades. E eu buscava esse encontro, no fundo um reencontro comigo mesmo.
Durante o almoço, conversa pesada, meu amigo percebeu que eu não era chegado a bebidas alcoólicas. Verdade, sou um abstêmio gustativo, não gosto do sabor de nenhum destilado ou fermentado. Defeito de fabricação. Inconformado, sentenciou: Está faltando álcool na tua vida ! Espantado no início, logo percebi o tanto de acolhimento que me presenteava. Ele, que hoje praticamente não bebe, me oferecia uma chave para destravar o imbróglio existencial em que eu estava metido. Perca-se para poder se achar. Fique tonto, perca o controle. Sem saber, me passava uma versão da sabedoria do rabi Nachman de Breslau: Nunca pergunte o caminho para quem o conhece, porque então você não será capaz de se perder. Séculos depois do rebe, Noel Rosa diria de outra forma: quem acha, vive se perdendo.
Em momentos de ruptura, é comum idealizar o passado. Nele, estaríamos seguros e, visitando-o, essa a ilusão, seríamos capazes de reparar o que deu errado na vida, costurar feridas que teimam em latejar. São os anos dourados, que, como bem disse Ruy Castro, não passam de roteiro seletivo da realidade. Pensamos nas festinhas, no descompromisso, na energia borbulhante, na preguiça sem culpa. Esquecemos da falta d’água, das quedas de energia, das doenças que não tinham vacina, nem remédio, da moral vitoriana. O sentimento de perda de uma essência imaginada, aprisionada no passado, aparece em todo canto. Millôr Fernandes, na pele de Vão Gogo, dizia que a saudade é a última nuvem que sobra de toda a, para sempre, irrecuperável realidade. Em 1949, inaugurou nonsenses no livro Tempo e contratempo. Um deles é um resumo lírico do que estou falando: Pegamos o telefone que o menino fez com duas caixas de papelão e pedimos uma ligação com a infância.
Gosto de um episódio da série Twilight zone (Além da imaginação), dos anos 50/60, chamada Walking distance. Pequena obra-prima, exibida em 1959. Viajando numa pequena estrada, um executivo para num posto de gasolina para fazer pequeno reparo no carro. Está próximo da cidade em que passou a infância. Enquanto aguarda o conserto, resolve visitar a cidade. Percebe, surpreso, que tinha voltado no tempo. Revê seus pais e a si mesmo como criança. Tem uma vontade louca de ficar por ali, mas seu pai, reconhecendo a estranha visita, o convence de que deve procurar os bons momentos não atrás, mas na frente, na vida que estava por vir. The best is yet to come.
Correr contra o tempo é batalha perdida. Seremos, sempre, legiões derrotadas. Cronos é implacável, devorador insaciável. Depois de visitar, às vezes obsessivamente, pessoas e lugares do meu passado, entrei num acordo com ele. Na linha que Mário Lago ensinou: “Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo: nem ele me persegue, nem eu fujo dele, um dia a gente se encontra”. Enquanto isso, vou jogando conversa fora – essas são as melhores ! – com meu amigo. Sem álcool, com uma porção generosa de Freud e um farto buquê de ombros providenciais. Sem o peso da encruzilhada resolvida.
Abraço. E coragem.