“Tenho que preservar minha imagem” – como diz o velho palhaço traçando uma linda boca sobre a boca sem dentes (Millôr Fernandes)

Gosto da vida monástica. Assim começou a falar meu amigo pelo telefone, quando perguntei como ia o isolamento. Compreendo o acasalamento dele com a solidão. É uma figura rara. Não usa celular, nunca teve computador. Quando queremos nos comunicar, usamos o velho Graham Bell ou marcamos um almoço. Já brinquei com ele dizendo que, proximamente, evoluiremos para o telegrama. Posso garantir que não se trata de um ogro ranzinza, nem de nostálgico furioso. Nossas conversas são riquíssimas, varam horas. Com ele, divido gostos musicais comuns e a estranheza por um mundo que aderna para a cenografia virtual.

Nos últimos meses, prensado pelo vírus, usei, com desconforto, a ferramenta zoom. Meus amigos reduzidos a um mosaico de pequenos quadrados planos. A balbúrdia calorosa dos encontros ao vivo reduzida ao esforço para apertar botões na hora certa. Ah, mas quebra um galho, alivia a saudade. Pode ser, mas me lembra os sampurus japoneses. No Japão, restaurantes exibem vitrines com as especialidades da casa esculpidas em material plástico. Têm aparências e cores de comida, mas são apenas imagens. A refeição real – como a conversa verdadeira, com seus aromas, espantos e expressões – está em outro lugar.

Fala-se muito na transição dos ambientes de trabalho e das escolas para a comunicação à distância. Como que a reconhecer a extravagância, uma empresa está desenvolvendo um aplicativo que simula um auditório. Nas poltronas virtuais sentarão os participantes de videoconferências e reuniões. Este tipo de simulação não tem nada a ver com ambientes reais. Meu período mais fértil de trabalho foi no BNDES. Uma das razões foi a possibilidade de, no meio do dia, sair da sala, me encontrar com colegas de outras áreas e conversar sobre assuntos fora de pauta. Sem os grilhões de monitores e auditórios plastificados. Sem a competição de pratos por lavar e banheiro por limpar. A relação mediada pelas máquinas tem um potencial desumanizador, de enrijecimento da rotina, que não deve ser subestimado.

O coronavírus levou milhões de pessoas a trabalhar em casa, submetidas à comunicação apenas verbal, tão calorosa quanto um tijolo de sorvete napolitano. Já se detecta um aumento de sintomas de depressão, insônia e irritabilidade. Os primeiros levantamentos indicam que aumentaram, também, as desigualdades no acesso às tecnologias necessárias a essa forma de trabalho. Em países como o Brasil, com obscena desigualdade na distribuição de renda, isso não tem a menor chance de melhorar.

O cinema começa a explorar o que se pode chamar de novo filme catástrofe. Perto dele, terremotos, ondas gigantescas, erupções vulcânicas, não passarão de matinée infantil. Com tudo tão conectado, tão controlado, o que seria do planeta se viesse um blackout, interrompendo o fluxo de informações via internet e extinguindo a memória eletrônica ? Duro de matar 4.0 é um aperitivo. Uma equipe de hackers ameaça apagar tudo o que está armazenado em bancos de dados de sistemas previdenciários, ministérios, bancos. Claro que, depois de muita pancadaria (afinal de contas, o mocinho era Bruce Willis), há um final feliz, mas a vida não costuma amar roteiros de Hollywood. Se a ameaça fosse consumada no plano real, o que seria do mundo como o conhecemos ? Chuva de suicidas, como no crash da bolsa de valores, em 1929 ?

Tive na faculdade um professor de Física apelidado de Topo Gigio. Quem tem certa quilometragem, vai lembrar. O Topo Gigio era um ratinho muito chato, de voz melosa e arrastada, que contracenava com o Agildo Ribeiro nos anos 70. No meio de uma aula, céu escuro, a luz apaga no Fundão. Revoada geral ? Nada disso. O ratinho, digo, o professor, pediu que usássemos a imaginação e foi desenhando conceitos no breu. Silêncio no coliseu. A Física nunca foi tão luminosa, tão clara. Usamos o que tínhamos de mais precioso para construir o conhecimento: a curiosidade. Sei que tenho uma certa inclinação saudosista e, por isso, me concedam um desconto, mas eu pergunto: alguma chance de uma história como essa acontecer numa vídeoaula, cada moleque no seu canto, isolado, grudado no monitor, sentindo falta do olhar amoroso dos amigos ? Sei não …

Abraço. E coragem.