Uma ira desmedida acaba em loucura; por isso, evita a ira, para conservares não apenas o domínio de ti mesmo, mas também a tua própria saúde (Sêneca)

Duas notícias aparentemente desconectadas me chamaram a atenção. Juninho Pernambucano, ex-jogador de futebol, atualmente trabalhando na França (é dirigente do clube Lyon), deu entrevista ao jornal inglês Guardian. Analisou a conjuntura brasileira e informou que, por não tolerar quem fez a opção eleitoral bolsonarista, cortou relações com boa parte da família. Não esclareceu se o voto dos parentes foi por identidade totalitária ou por reação ao petismo. Para mim, isso faz uma diferença importante. O fato, sabemos muito bem, é que a atitude do Juninho está longe de ser um caso isolado. A polarização devastou relações a granel, e não apenas familiares.

Nos Estados Unidos, uma carta-aberta acendeu intenso debate. Cento e cinquenta personalidades de várias áreas de atuação assinaram documento (A letter on justice and open debate), publicado na revista Harper’s. É gente identificada com lutas antirracistas e por liberdade de expressão, militante contra a violência policial e os desvarios trumpistas. Demonstraram preocupação com o que consideram tendências de “exigência de uniformidade ideológica, seguida de intolerância às diferenças” dentro do campo democrático. Alertam que a “inclusão democrática que desejamos só pode ser alcançada se combatermos o clima de intolerância que se espalha por todos os lados”. Não acompanho a cena intelectual americana e, por isso, não sou capaz de dimensionar as ameaças relatadas pelos signatários. Sou, entretanto, muito sensível ao comportamento rígido que muitas vezes se impõe nas ações coletivas, com graves prejuízos à lucidez e à criatividade. Nós, da esquerda que não nasceu em São Bernardo, sabemos muito bem disso.

Em sua autobiografia (Uma vida em seis tempos), Leôncio Basbaum, ex-dirigente do PCB, relata uma reunião em célula do partido décadas atrás. Discutindo tema da pauta, uma mulher usa como argumento, imbatível por supuesto, ser filha de operário. Reinava o obreirismo, idolatria da classe operária que, nas circunstâncias, esterilizava qualquer forma de razão.

Voltando ao início. Intolerância, de matiz variado, é o ponto comum entre o que disse Juninho e o que publicou a Harper’s. Minha posição a respeito de Bolsonaro é conhecida. O bolsonarismo raiz, seita de maníacos, de medíocres provocadores, não chama diálogo. Oferece a guerra permanente, único ambiente em que se reconhece. No entanto, se a proposta bélica é aceita a seco, sem diferenciar quem se alistou na urna eletrônica, correm-se muitos riscos. Deixo o político de lado por ora. Quero elaborar um outro, menos visível mas igualmente corrosivo: o de transformar a intolerância em ressentimento, sem ponderar quem é o objeto do ódio.

Ódio e ressentimento são dinâmicos, ocupam vácuos existenciais. Certa vez, Balzac disse que “o ódio é um tônico, faz viver, inspira vingança”. Pode parecer estranho, mas ambos têm valor utilitário. Vidas vazias, solitárias, tediosas, podem ser preenchidas pela construção de um inimigo imaginário. O problema é que, no confronto, quem sai ferido pode ser quem odeia. No fim do filme, quem morre é o capitão Ahab, não Moby Dick.

Conheço gente que rompeu amizades e/ou relações familiares apenas por saber que o amigo/parente votou no Bolsonaro. Sem conversar, sem ter o trabalho de argumentar, sem valorizar trajetórias de afeto que mereciam vozes desarmadas, sem constatar as razões do Outro. Quantas oportunidades foram perdidas em nome deste vale-tudo ? Por motivos de outra natureza, interrompi algumas relações familiares por muito tempo. Sei o tanto de dor que isso provoca. Consegui refazer parte delas e aprendi a valorizar as convergências, sem ignorar as veredas das nossas desconfianças e diferenças.

No conto No ha claudicado, pequena obra-prima de Mario Benedetti, dois irmãos deixam de se falar por 25 anos. Cada um deles achava que o outro tinha ficado, injustamente, com algumas joias deixadas pela mãe falecida. No final, descobrem que as joias estavam com uma prima. Não foi suficiente para restabelecer a relação. O ódio acumulado por tanto tempo, por tanto silêncio ressentido, já tinha vida própria. Mais do que isso: era imprescindível para que seguissem suas vidas. Não há final feliz nesse tipo de história.

Numa atmosfera tão carregada de adjetivos estridentes, de tantas perdas e danos por falta de palavras e ouvidos, achei que valia a pena coçar estes pensamentos. Como dizia Millôr Fernandes, o Irritante Guru do Méier: Livre pensar é só pensar.

Abraço. E coragem.