A herança cultural da humanidade é rica em metamorfoses, palavra consagrada por Ovídio em seu livro “Metamorfoses”. Esse livro marcou artistas como Dante, Shakespeare, Michelangelo, Rembrandt, entre outros. Já no século 20, Franz Kafka escreve “A Metamorfose”, cujo famoso início marcou escritores como García Márquez: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Hoje não somos insetos como Gregor Samsa, mas a vida está estranha. Num supermercado, por exemplo, estão todos mascarados, escondidos como os bandidos que usavam lenços para cobrir os rostos. Agora os que não usam máscaras são os bandidos, pois ajudam a pandemia. Por isso todos os pais, os chefes, os líderes, deveriam usar máscaras para dar o exemplo. Na realidade não é assim, pois nem todos aceitam as orientações médicas, contribuindo com o aumento das mortes.

Um dos maiores exemplos de metamorfose foram as mudanças que viveu Ulisses, na “Odisseia”. Foi um ator ao se fingir de louco para não ir à guerra de Troia, mas atuou mal e foi descoberto. Na guerra sua astúcia se revelou ao criar o cavalo de Troia e assim derrotar os troianos. Depois foram dez anos no mar enfrentando perigos ao enfrentar e matar o ciclope, escutando as sereias sem sucumbir, e, finalmente, se vestindo de vagabundo ao chegar em Ítaca para reconquistar seu reino. As metamorfoses estão presente em Guimarães Rosa no seu “Grande Sertão: Veredas”: “Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou”. As pessoas afinam ou desafinam; torço para que a maioria do País volte a se afinar com as artes, a saúde, a educação, na luta contra o racismo.

Rosa e os poetas são os guardiões da metamorfose, é a capacidade poética de cada um ao ter que resolver seu quebra-cabeça diário. A vida está em movimento, já o mundo, as vezes, torce o nariz à metamorfose, pois ela atua em sentido contrário ao da maioria. Importante que exista sempre gente com coragem criativa, inventando novas estradas. É urgente imaginar levezas num mundo pesado, mundo de solidões, onde hoje cada um se comunica através das frágeis pontes virtuais.

A metamorfose deve se aliar à compaixão, escreveu Elias Canetti em sua conferência “O ofício do poeta”. Ter compaixão é aliviar o sofrimento do outro, é a gentileza com os sofredores. Incrível como um querido país elegeu para presidente um homem sem compaixão com os mortos e suas famílias. Despreza os infectologistas, nem mil mortes por dia o comovem, e, pasmem, onde estão os que deveriam pôr limites nesse líder que mata mais que o vírus? As Forças Desalmadas teriam obrigação de defender o povo, para isso são pagas, mas integram o pior grupo de ministros da História. Seus eleitores estão rindo não se sabe do que, com certeza não é dos mortos, imagino. Trágico mercado, trágica mídia, indiferente Justiça, que abriram as portas para o mais cruel dos governos já eleitos.

Neste país muitos riram da metralhadora, das arminhas, desprezaram a violência, o elogio à tortura e ao assassinato de 30 mil. Em alguma medida, também somos responsáveis, seja pelo que fizemos ou pelo que deixamos de fazer. Desprezar a política, transformar um homem ou um partido no único bode expiatório, é favorecer os canalhas. Porque hoje a questão central já não é só a política, dobrar a direita ou à esquerda, o central são os Direitos Humanos. Direitos dos negros, índios, pobres, dos humoristas e artistas. Ninguém dos três poderes parece se importar com a morte dos outros, já são 61.990 mortos. São tempos de metamorfose, é preciso construir a esperança, poderá tardar, mas haverá um amanhã para o nosso Brasil.