Pode ser efeito colateral do isolamento, afinal já são 100 dias de prisão domiciliar, os neurônios e a alma não são de aço. O fato é que sinto uma mistura de tédio e aborrecimento quando vejo a incompetência das oposições em compreender a gravidade do momento atual e agir de acordo com ela. A unificação tática, acima de divergências de maior ou menor bitola, parece mais remota do que o nono círculo do Inferno de Dante. Me faz lembrar de um espetáculo do Juca Chaves, que assisti nos também remotos anos 70. O Juquinha cantava um dos mantras da ditadura: “Este é um país que vai pra frente …”. Enquanto cantava, andava pra trás.
Simplificando a encrenca. De um lado a gente vê a construção de uma frente totalitária, heterogênea, com elementos comuns ao fascismo histórico (mas com diferenças importantes em relação a ele), combinando, como bem observou Marcelo Coelho, “não só os que são contra o Estado, mas também os que estão à margem, ou fora, da lei”. O balaio comporta desde milícias, garimpeiros e militantes racistas a parcela dos trabalhadores informais e donas de casa inconformadas com os novos direitos de suas empregadas domésticas. É uma base social surpreendente, que tem se mostrado razoavelmente coesa e estável. Mesmo após a prisão do Queiroz, 33% da população continua aprovando o governo Bolsonaro. Há um dinamismo imprevisível neste caldeirão, que merece elaboração que vá além dos insultos e declarações de indignação.
Do outro lado, nenhum passo dado na direção de um programa mínimo que unifique todos os que se opõem ao avanço da extrema-direita. Entre tapas e rabos de arraia, alguns figurões pensam, grosso modo, apenas nos seus currais, além do horizonte só enxergam eleições. Minha triste impressão é de que, no fundo, muita gente ainda alimenta a imagem fuleira de que os mais de 57 milhões de brasileiros que votaram no JMB são fascistas irrecuperáveis. A consequência é óbvia. Para entrar na frente que se quer construir (quer mesmo ?), será necessário mostrar atestado de pureza. Um erro grave, que me conduz ao seguinte raciocínio. Com a liberação do chamado auxílio emergencial de R$ 600, a popularidade do presidente aumentou substancialmente em áreas do nordeste. Usando a lógica dos puristas, estaríamos frente a um surto fascistoide nordestino, uma adesão tardia ao bolsonarismo. Como essa gente se atreve a vender a alma por uns trocados ? Estão todos banidos do “meu grupo” !
Para os imaculados e de nariz sensível, um pouquinho de História não faz mal. Ulysses Guimarães foi a favor do golpe de 1964. José Sarney foi da ARENA até os estertores da ditadura. Teotônio Vilela, o Trovador das Alagoas, também foi filiado por muitos anos à ARENA (o partido do sim, senhor). Aureliano Chaves, cuja ruptura com a ARENA ajudou a pavimentar a eleição indireta de Tancredo Neves, foi vice-presidente do general Figueiredo. Por que cito estes personagens ? Se as vestais da época resolvessem apontar as marcas de Caim ao invés de incorporá-los, sem agressões, aos movimentos de ultrapassagem da ditadura, talvez os milicos tivessem demorado mais nos tronos de Brasília.
Como na época da ditadura, hoje temos claramente um inimigo comum. Isso não tem sido suficiente para alavancar a mudança de qualidade da luta contra este inimigo. Por enquanto, ficamos nas notas de protesto, nos espasmos adolescentes das redes sociais, na hepatopolítica. A unidade, tão adiada, implica num comportamento adulto, ou seja, reconhecendo as diferenças de quem luta e jogando o balanço delas para outro momento. O programa mínimo seria resultado deste encontro dos diferentes. E sem ele não se avançará. Claro que o caminho não é simples. Há questões, para as forças de esquerda, que não são triviais. Setores liberais da frente tenderão a deixar os interesses populares em segundo plano (como de praxe na história brasileira). Caberá, então, aos representantes destes interesses disputar espaços que garantam a presença dos trabalhadores na agenda mínima de luta. É uma luta ampla, mas o centro imediato dela é a derrota do bolsonarismo, blitzkrieg esquizoide do subsolo brasileiro.
Termino lembrando de Mario Benedetti, o grande poeta e intelectual uruguaio, cujo centenário de nascimento se comemora este ano. Sem abandonar suas profundas convicções de esquerda, sempre privilegiou a unidade de todas as forças democráticas para isolar a ditadura. Em 1977, escreve uma carta ao dirigente do Partido Nacional (Blanco) Wilson Ferreira Aldunate: “Os matizes virão depois, quando a paz e a liberdade permitirem estes matizes, que são o sal (e a pimenta) da prática política (…) Todos cometemos erros, mas o momento é demasiado grave para nos fixarmos em fazer este inventário. Não precisamos de mais frustrações, mas de pretextos para a esperança”.