Se entrega, Corisco!
– Eu não me entrego, não!
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão
– Se entrega, Corisco!
– Eu não me entrego, não!
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão

Eu me entrego só na morte
De parabelo na mão
– Se entrega, Corisco!
– Eu não me entrego, não!
(Mais forte são os poderes do povo!)

Chegamos ao tempo do descaro (descaso?) total. Um horizonte de cretinos ganhou vez, proclamam livremente suas ignomínias. Escrevo isso depois de ler “Somos uma democracia racial”. E a criatura ainda se deu ao trabalho de dissertar nos moldes de Aquarela do Brasil. Minha vontade? Mandar essa aberração para o gramado da Alvorada, para pastar junto ao seu líder, acabando com o verde de Brasília e receber uma puta multa do comunista Companheiro Ibaneis.

Enquanto nos Estados Unidos a estúpida e covarde morte de George Floyd revela que stranger fruit perdura, não é passado, causando comoção mundial, por outro lado o extremismo sai dos esgotos.Vimos cidadãos estadunidenses protestarem contra, mas tivemos a oportunidade de ver também o outro lado da moeda. Em proporções mundiais.

Não me sinto a vontade de falar com propriedade do racismo. Para isso existem pessoas que estudam profundamente a questão e que vivem esse horror na própria pele todos os dias. O que faço é ensinar à minha filha que ela é privilegiada por ser branca, por estudar em bom colégio, já saiu na frente de várias pessoas que são tão ou mais inteligentes que ela. Apesar de ser judia, o que é um diferencial, o espírito de minoria é sempre bom ser lembrado, aqui no Brasil ela não vai ser seguida nas Lojas Americanas, não vai ser parada numa blitz com uma arma na cabeça, e que se coloque no lugar do outro. E não se cale ao ver injustiças. Se em alguma coisa meus pais acertaram foi me criar assim, passemos pra frente.

Como se fosse pouco,  estamos em meio a uma pandemia, uma crise governamental insana e o resto nós sabemos.

Nesse ambiente pesado, fui em socorro da Alice, a menina da lógica, do xadrez e dos números, ajudá-la em História. Duas horas e meia falando sobre Revolução de 1917, bolcheviques,  Romanovs, para no fim eu perguntar:

“O que Stalin fez com Trostky para ele ser expulso do partido e da Rússia?”

Resposta: “Ah mãe, umas manobras aí nada a ver”

Lembrou-me o livro de Moacyr Scliar, Dicionário do Viajante Insólito. Ele narra o esforço de reportagem que fez para ver no Cemitério Highgate , na Inglaterra, o túmulo de Marx. Acabou chegando tarde, a idosa guardiã da sepultura fez valer a pontualidade britânica e fechou a porta na cara dele. No dia seguinte, seguiu para o túmulo de Karl. Moacyr emocionou-se. Conseguiu captar a teoria e a paixão naquele corpo que jazia. Diante desse momento ímpar, seu filho lhe pergunta duas coisas: “Que horas a gente vai comer? E quem era mesmo aquele cara que eles tinham acabado de ver?”

Tirei a mesmíssima conclusão.”Se a história não chegou ao seu fim, está perto”

Isso bastou para que eu, professora de literatura histórica, nunca revele o exemplo doméstico que tenho em casa sob pena de não conseguir emprego em lugar nenhum.

Para distrair, fui para um grupo que recém-entrei sobre a Bahia. Antigas paisagens, fotos de pessoas interessantes da história do estado. Descobri que Maria Theresa de Medeiros Pacheco foi a primeira mulher legista do Brasil, única diplomada em Sexologia no exterior, e a única do mundo a dirigir um Instituto Médico Legal. Baiana, claro. Vi Maria Odila Teixeira, primeira médica negra no Brasil, primeira professora na Faculdade de Medicina, em 1909.

Eis que me deparo com a foto de um mulato, magro, olhar firme, Cosme de Farias. Não havia legenda, apenas muitas curtidas. Claro, a única ignorante era eu. Ele deu o nome a um dos bairros mais violentos de Salvador, isso era o que significava para mim.

Fui pesquisar. Pobre, nascido no subúrbio soteropolitano, em 1875. Apenas concluiu seu primário, mas lembrando que nasceu numa sociedade antes da abolição da escravatura, seu papel foi fantástico. Durante 70 anos, trabalhou no Jornalismo e na Literatura, lutando por melhores condições de trabalho aos desfavorecidos.

Atuou como parlamentar, ficou conhecido como Major, título recebido pelo 224 Batalhão de Infantaria, em 1909. Começou sua carreira política em 1910 e permaneceu parlamentar até 1972.

Autodidata, habilmente dedicava-se ao jornalismo e à poesia popular. Defendia as causas sociais como reinserção dos presidiários na sociedade através da alfabetização. Ingressou na imprensa graças a Amaro Lelis Piedade, diretor do Jornal de Notícias, abolicionista e estarrecido com a história de Canudos. O Estatuto da Criança e do Adolescente só surgiu em 1990, mas Cosme debatia calorosamente sobre a reeducação e a inserção social dos menores infratores. Foi membro fundador da Associação Baiana de Imprensa.

Ele era um rábula. Um Advogado que não possuía formação acadêmica de Direito, obtinha autorização do Poder Judiciário ou entidade de classe (1930-OAB) para a primeira instância, a postulação em juízo.

Conhecido como advogado dos pobres e dos desvalidos, lutava pelas pessoas em maior vulnerabilidade econômica e social  e depois por grupos específicos, como mulheres, negros, homossexuais e presidiários.

Humanista no sentido mais lato da palavra. Não podemos, porém, fechar os olhos ao fato dele ser um homem de seu tempo. E, como parlamentar, tinha ciência da estrutura vigente, o poder estava nas mãos de quem tinha o poder financeiro. Errou e acertou.

Julgar o passado com os olhos de hoje, constitui tentação fácil. Lembremos que ele era um homem nascido no século XIX. Não transformou o Estado, mas deu rumo à vida de muita gente.

É importante ressaltar, ainda sobre Cosme, que há 102 anos, no surto de gripe espanhola na Bahia, que a história não se repete como farsa e sim que a farsa se repete como história. Em 1918, os médicos que honravam seu juramento entraram em contenda com os políticos para que os verdadeiros dados fossem divulgados, subnotificações corriam soltas, a classe dominante pregava a volta às fábricas para “rodar” a economia. O quinino não era remédio mágico (cloroquina) e podia piorar o estado do doente. Cosme de Faria, ao lado dos médicos e da imprensa decente (opa! consórcio!) era uma voz que ia contra os poderosos.

Das histórias de Cosme, uma que me surpreendeu, foi a da defesa feita por ele de Sérgia Ribeira da Silva, a cangaceira Dadá. Conseguiu seu habeas corpus.

Cangaço é assunto para lá de polêmico. Há quem chame os cangaceiros de bandidos cruéis, há quem os endeuse. Em seu início, que antecedeu Lampião, surgiu como um ato de rebeldia contra os coronéis e os latifundiários. Com a ascensão de Lampião, a organização vai adquirindo outra feição.

Dadá e seu marido Corisco possuem um significado especial para mim. Garotinha de 8 anos, assisti com meu pai a “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Sim, infância década de setenta, hoje ia para o Conselho Tutelar. Minha opinião de criança? Chato e amedrontador. Antes que me apedrejem com comprimidos de ivermectina, reconheço a grandeza do Cinema Novo e quem sou eu para duvidar da genialidade de Glauber? Talvez agora, 4 décadas depois, eu consiga enxergar o barroco hiperbólico glauberiano.

Bem, um filme lançado em 1964, em pleno golpe militar, falando desse Brasil profundo? Tem seu valor. Só não peçam para eu gostar de Godard, fui numa sessão especial já adulta de “A Chinesa” que meu pai, ao me ver roncando,   desistiu de me aplicar a Nouvelle vague.

Sobre o filme de Glauber, uma cena ficou marcada na minha cabeça e nos meus pesadelos. Para sempre. Antonio das Mortes matando Corisco. De tal forma que anos atrás, aos 22 anos, fui com um amigo no show do Sérgio Ricardo no auditório da ABI. Éramos os únicos jovens na platéia. E cantávamos com tanto entusiasmo que emocionamos o cantor. Olhar de ternura a gente não esquece.

Muito se fala sobre a presença das mulheres no cangaço. As únicas que participavam efetivamente da pistolagem eram Maria Déia e Dadá. Ser cangaceira não era sinônimo de liberdade feminina. Inclusive mulheres adúlteras eram assassinadas ou marcadas com ferro na face. A vida delas era mais tranquila porque poderiam escolher cozinhar, bordar, costurar se quisessem. O aumento de mulheres no bando, calcula-se de 50 a 60, reduziam os episódios de violência nas invasões.

Com Getúlio no poder, a vida do cangaço estava nos estertores. Houve uma imensa atuação de forças especiais da polícia e apareceu um novo elemento na mão dos volantes: a metralhadora. Como se sabe, em 1938, parte do bando de Lampião, 11 pessoas, foi morta e degolada. Maria Déia (que recebeu de seus algozes o nome de Maria Bonita) foi decapitada viva. Aos 27 anos. Como esquecer aquele espetáculo pavoroso das cabeças em exposição?

Corisco fica no lugar de Lampião, mas acaba sendo assassinado. Só Dadá escapou.

Bem, para que toda essa volta? Fui fazer uma pesquisa  e acreditem: dei de cara com uma página de estética do cangaço. Pra começar, eles gostavam de um brilho. Lampião era exímio artesão e não é porque você está no Raso da Catarina que vai deixar de usar sua gravata de seda inglesa, tá? Uma das condições para entrar no bando era saber costurar. Banhavam-se de perfume francês na falta de água e até os cavalos eram agraciados. Quanto amàs mulheres, era obrigação dos homens ornarem-nas. Assim, todo mundo ficava alegre. Tava em Serra Talhada, mas divando. Recebiam vestidos importados, estilão década de 30, jóias (opa!) e, o mais importante: MAQUIAGEM. Lendo sobre a estética do cangaço, vi que o must era batom vermelho sangue. Para quem não sabe, Galeno, o fodástico médico e filósofo (129 DC), romano de origem grega, cujas teorias dominaram e influenciaram as ciências médicas durante mil anos, distinguiu veia de artéria, sacou que era do rim que rolava a urina, só foi desbancado por Harvey, que provou que era o coração que bombeava o sangue (em 1628), e que  também filosofava nas horas vagas… Mulheres, saibam disso toda vez que forem pavimentar uma creca na cara: o médico e filósofo romano Galeno inventou um creme à base de água, cera de abelha e azeite de oliva. A BASE!!! Queria ter sido amiga dele. E um outro ponto do make que achei interessantíssimo no site: Cílios dramáticos. Seja lá o que for isso, me lembrou bem novela mexicana, devia ser interessante. Adoro maquiagem forte, não saio sem um batom escuro. Wilde disse que “A Vida é Um Palco, o Elenco que é Lamentável”. Mas vamos combinar, mesmo no sertão do Cariri, a coisa melhora com uma maqui.

Para fechar esse texto, eu queria dizer uma coisa. Vi pessoas reclamando que o Nosso General da Saúde convidou 12 colegas para participar do grupo dele e nenhum deles é médico. Mores, lembram que o Ministro da Saúde do Temeroso era engenheiro? A gente só foi lembrar que ele existia quando a galera foi pra porta da igreja que a filha dele casou jogar ovo na noiva. O Teich era médico? Gente, não sabemos nem se ele tava vivo. Médico pra quê? Vocês tão pedindo demais. Agora, o que realmente me deixa puta ao olhar o currículo de cada um, era o básico para o cargo que eles estão locados exigia: NÃO TEM UM FORMADO EM MAQUIAGEM. Sei que não podemos exigir muito, nem  precisa ter certificado carimbado de curso especializado do SENAC. Até aquele cursinho vagabundo de um dia no Boticário ou na Coty tá valendo. Acho que precisamos pedir uma petição para Avaaz. Se é pra maquiar, que seja profissa. FIM.