Lembranças não são fatos, mas as verdades que constituem aquele que lembra (Eliane Brum)

Dava para ir a pé, a excitação do jogo começava na caminhada. Passava pelo quartel da Polícia do Exército, de triste memória, margeava o muro do Colégio Militar, desembocava numa avenida sangrada por um rio anêmico. Metros adiante e a agitação de torcedores mergulhava em bilheterias precárias. Em dia de clássico, contorcionismo para comprar o ingresso. Subida rápida pela rampa, primeiras gozações dos adversários, entrada num pequeno túnel, geralmente impregnado de odores suspeitos, e, por fim, o manto verde que abraçava o Menino e abria as portas da arquibancada. Chega pra cá, empurra pra lá, desvia do Mate Leão, da Kibon e da Geneal, e o balé de chuteiras começava no Maracanã.

O velho estádio completa 70 anos. Nasceu como abre-alas de um projeto ufanista, a provar que estávamos prontos para entrar na primeira divisão das nações. Sediar uma Copa do Mundo, e sobretudo ganhá-la, seria a senha para dar-nos o status que supostamente merecíamos. Sabemos no que deu. Pois é, no dia 16 de julho de 1950, uma tarde ensolarada, quase dez por cento da população do Rio testemunharam ao vivo o Maracanazo. Fruto de uma combinação azeda de soberba, intoxicação política e de uma atuação técnica impecável da seleção uruguaia, comandada por “El Jefe” Obdulio Varela, o onze brasileiro caiu por dois a um. Parecia confirmar-se a maldição de que este país jamais poderia dar certo. José Lins do Rego, que, à diferença de seus contemporâneos escritores, adorava futebol, disse: “Vai um povo de cabeça baixa, de lágrimas nos olhos, sem fala, abandonar o Estádio Municipal, como se voltasse do enterro de um pai muito amado. Vi um povo derrotado, e mais do que derrotado, sem esperança”. O Maraca nasceu violentado por uma tragédia, batizado de silêncio. A história seguiria outros caminhos.

Minhas memórias do estádio são em preto e branco. Sempre frequentei a arquibancada, espaço simbolicamente reservado ao pessoal remediado, que não precisava se espremer nas gerais e não tinha como pagar o preço das cadeiras numeradas. Quase nunca o Menino foi acompanhado aos jogos. O Pai jamais falava de futebol. A única vez em que senti sua presença na arquibancada foi num memorável Fla x Flu, talvez ainda nos anos 50. É dele a lembrança de uma jogada genial do Dida, atacante do Flamengo e titular da seleção de 1958 até a erupção de Pelé. O jogador estava na intermediária rubro-negra, levantou a bola, dominou-a na cabeça e, esperança equilibrista, foi quicando com ela até quase a área adversária, sem ser abalroado por um carniceiro, como seria nos dias de hoje. Pequena obra de arte, que gostaria de comemorar com um abraço no Velho. Que não aconteceu.

Afonsinho, pioneiro da luta pelo passe livre, dizia gostar de jogar na chuva. Era quando podia sentir o cheiro de terra molhada. No dia 15 de novembro de 1963, ano em que o Flamengo saiu da fila de 8 anos sem ganhar o campeonato carioca, choveu muito. Os planos do Menino ir ao Maracanã assistir o Clássico dos Milhões pareciam naufragar nas poças. Resolveu encarar o aguaceiro. Na arquibancada, desfalcada pelo mau tempo, viu um dos melhores jogos de sua vida. O Flamengo virou um jogo quase perdido e venceu o Vasco por quatro a três. Placar de pelada, grama amigável, alma e pés lavados. O cimento da arquibancada, quem diria, nunca foi tão confortável.

Impossível dissociar as imagens do jogo das vozes que o transmitiam. O torcedor com radinho de pilha grudado no ouvido tem destaque na galeria de tipos que frequentavam o Maraca. Não bastava olhar a partida, era necessário confirmá-la pelas ondas do rádio. Nas cabines, os caras que inventavam o que estava acontecendo. Inventar no espírito poético do Manoel de Barros. Ary Barroso, Flamengo roxo, com sua gaitinha, narrava as jogadas sem esconder a paixão clubística. “Ih, não quero nem olhar !”, exclamava quando o ataque adversário dava sinal de vida. “Graças a deus foi pra fora !”, suspirava aliviado quando o chute saía pela linha de fundo. Waldir Amaral e Oduvaldo Cozzi, dois lordes, discretos, não enfeitavam a locução, mas lhe conferiam um ar respeitoso sem esquecer o terreno boleiro que pisavam. Waldir foi craque na criação de bordões. O meu preferido: “Está deserto e adormecido o gigante do Maracanã”, que dizia ao final de cada partida e após os comentários do João Saldanha ou do Luiz Mendes.

O estádio acessível a qualquer um, embora com níveis muito diferentes de comodidade, desapareceu. Os geraldinos foram banidos, soterrados por ingressos com preços inacessíveis. Com visão limitada do campo, faziam da partida uma festa que transcendia a competição. Tipos folclóricos, fantasiados, gaiatos, sentiam-se parte da celebração geral, sentimento interditado na sociedade excludente fora do estádio. Minha sensação é de que o Maracanã envelheceu mal. Fez algumas plásticas, engrenou um jeito boutique de ser, tornou-se distante das grandes massas que justificaram sua construção. Torcedores vindo de subúrbios distantes, saindo do trem e correndo eufóricos para o estádio, talvez a única alegria da semana, é agora imagem de museu. A arte e a beleza da comunhão entre torcidas e times deram lugar a um padrão elitizado, utilitário, monetizado, gourmetizado.