Ingmar Bergman, conhecido diretor de cinema, demorou a declarar que foi nazista. Ao saber dos milhões de mortos nos fornos crematórios, ficou chocado. Foi seduzido pelo nazismo, o fascismo somado ao “antissemitismo redentor”, como definiu o premiado historiador Saul Friedländer em seu livro “A Alemanha nazista e os judeus”. Todas as ditaduras fascistas da Europa receberam e deram apoio ao nazismo, lutando lado a lado. Por exemplo, foi o ataque alemão à cidade de Guernica em 1937 que arrasou a pequena cidade espanhola, com centenas de feridos e mortos. Picasso pintou esse ataque num mural que tem no lado esquerdo uma mãe chorando a morte de seu filho. A interferência de Hitler, foi fator decisivo na vitória do fascismo espanhol.
Hoje é fácil saber o que foi o Terceiro Reich, mas a crueldade da Alemanha buscou se disfarçar, com frases sutis, mentiras apresentadas como verdades, aceitas por dezenas de paízes. Escutei de um ex-morador de Berlim a essa época sobre o que foi a noite de nove de novembro de 1938, a “Noite dos Cristais”. Disse que os alemães tinham essas expressões sofisticadas para disfarçar. Nessa noite foram mortos 91 judeus, centenas de sinagogas foram incendiadas, assim como casas comerciais. Trinta mil judeus foram presos em campos de concentração. Portanto, essa noite não foi a noite dos cristais, mas sim a noite de vidros quebrados e vidas destruídas. Outra sutileza macabra é a expressão “solução final”, que definiu o envio de milhões de judeus, ciganos, homossexuais e rebeldes contra a ditadura aos fornos crematórios. De simples chuveiros de onde deveriam sair água saíam gases mortíferos. É uma ferida aberta na imagem da condição humana.
O racismo irrompeu de surpresa aqui, neste ano, quando um ex-secretário da Cultura do atual governo usou símbolos nazistas. O racismo já foi objeto de diferentes estudos, como foi a entrevista de J. B. Pontalis, psicanalista francês, que explica as diferenças entre os preconceitos e o racismo. Esse é um fenômeno de grupos, países, que conclamam a violência maciça. Os racistas projetam todo o mal nos outros, um ódio que chega à crueldade, à mediocridade que despreza as artes e a cultura em geral.
Já o racismo brasileiro é estrutural, herança de três séculos e meio de escravidão. Uma líder negra, Marielle Franco, foi assassinada há mais e dois anos, e toda vez que as pistas se aproximam de um condomínio familiar cessam as investigações. Já os índios estão a perigo, e já foram mortos líderes indígenas nos ataques à Amazônia. Por dever de memória, é preciso lembrar a escravidão negra, no sofrimento de milhões de escravos, maltratados pela elite branca. Os negros foram libertos sem apoio algum dos governos, e até hoje o país vive um racismo com sutilezas. Um exemplo foi a dura oposição à exitosa política de cotas no ingresso às universidades.
Espanta como o governo ataca a saúde dos brasileiros nesta atual pandemia, em especial a dos mais pobres. Também aqui são usadas sutilezas para serem escondidas as verdadeiras intenções. São frases criadas pela propaganda política do governo, como essa usada há poucos dias: “Lamento os mortos, mas é o destino de todo mundo”. Diante mais de trinta mil mortos pela COVID-19, essa é uma frase fria, vazia, parecida com as frases do Trump diante do assassinato do negro George Floyd.
No mundo se amplia o movimento humanista, e do outro a crueldade racista. Nas linhas finais do livro “O mal-estar na cultura”, de Freud, há uma questão atual: o choque entre o desenvolvimento cultural x a pulsão de agressão e o autoaniquilamento. Cada um vai se posicionando, cada um vai escolhendo o seu lado conforme sua capacidade psíquica. Hoje, quase trinta por cento do País está com as forças desalmadas. Já setenta por cento da população busca se unir, em diferentes manifestações, pela vida e a frágil democracia. Ou seja: poderá a cultura resistir à crueldade? Eis a questão de todos e de cada um.