É preciso saber viver (Roberto Carlos)

Das questões que têm me inquietado nesta quarentena, e não são poucas, o silêncio está no pódio. É um silêncio diferente. Ele não foi escolhido, como nas ocasiões em que precisamos nos retirar do mundo e mergulhar nas esquinas mais penumbrosas de nós mesmos. Esses momentos, não raro dolorosos, podem ser muito ricos. O de agora desabou nas cabeças sem aviso prévio e tem aroma de abandono, de medo. Como nos momentos que antecediam a queda das bombas V-2, lançadas pelos nazistas sobre Londres no final da guerra. Primeiro míssil balístico da história, as V-2 caíam quando acabava o combustível que as impulsionava. Assim, entre o  fim do ruído de jato e a explosão passavam-se alguns segundos de silêncio. O que vinha depois dele era incontrolável. E assustador.

Por que este silêncio forçado é diferente ? Em primeiro lugar, ele é artificial. Não nasceu de um projeto deliberado de melhoria da qualidade de vida. Certo, as ruas andam um pouco mais quietas, os bares estão fechados. É uma delícia descobrir sons da natureza, incrédula mas feliz com essa parada. Os pássaros parecem perceber que isso é passageiro, cantam com mais vigor e com vocabulário extenso. Têm urgência, o homem vem aí, como na canção do Chico. O mau uso do espaço público, onde cada um vira sargento e cria suas próprias regras, logo voltará. Os bares, que confundem informalidade com decibéis assassinos, invadem calçadas, varam madrugadas, não mudarão. O barulho descontrolado está em seu DNA. O silêncio de hoje, arcaico para os padrões incivilizados em que vivemos, está condenado a um poema do Augusto dos Anjos: O beijo, amigo, é o escarro de amanhã.

Há uma dimensão trágica no silêncio pandêmico. Ela aparece no luto pelos milhares de mortos, enterrados sem direito à presença das pessoas queridas e traumatizadas. Cada cultura oferece formas de se despedir dos mortos. Não apenas o adeus circunstancial, o afastamento físico, mas caminhos subjetivos para elaborar as perdas. A necessidade da despedida, de confirmar a morte, é muito forte. Dou um exemplo, gerado em outras circunstâncias. Dona Elzita Santa Cruz era mãe de Fernando, preso e assassinado pela ditadura militar. Jamais perdeu a esperança de encontrar o corpo do filho. Por isso, manteve o mesmo número do telefone fixo até o fim da vida, aos 105 anos de idade. Aguardou, em vão, uma ligação de alguém que desse pistas para localizar os restos de Fernando. Certamente intuía que a ligação jamais chegaria. O desejo de ver, de confirmar, foi superior à razão plana. Em tempo: Fernando era pai de Felipe, presidente da OAB. Em um de seus surtos de sadismo e deboche psicótico, Bolsonaro ironizou o destino de Fernando, ofendendo a difícil travessia dos Santa Cruz rumo ao silêncio dolorido, mas pacificado.

No Uruguai, acaba de acontecer a 25ª Marcha del silencio. A cada ano, milhares de parentes e amigos dos que desapareceram nas mãos do estado uruguaio durante a ditadura caminham, silenciosamente, na avenida 18 de Julio, centro de Montevidéu. É lida a lista dos assassinados, e, a cada nome, a multidão grita Presente ! Naqueles momentos, a dor e a saudade cedem espaço ao abraço coletivo. O silêncio dos que não puderam se despedir ganha carne e sangue da Memória. O ritual se renova.

Bernardo Sorj escreveu sobre certos efeitos subjetivos da pandemia sobre nós, os mais velhos, os que já estão aí pelos 30, 35 minutos do segundo tempo, pendurados em dois cartões amarelos. Para nós, a contagem do tempo é diferente daquela que os mais jovens fazem. Se a quarentena durar muitos meses, e isso é bem provável, uma parte importante da vida terá sido imobilizada, sem chance de revisão de prova, congelando ou mutilando planos na fase de declive. Para um jovem, observa Sorj, “o ano eventualmente perdido se dilui nos muitos anos que tem pela frente”. E conclui: “Para um idoso, o isolamento físico, de certa forma, é uma prévia da despedida final, de presenciar a saudade que os seres queridos já sentem, e que algum dia será definitiva”.

Não sinto prazer em escrever sobre essas faces da conjuntura. Acontece que costumo fugir dos exércitos de polianas que brotam nos momentos difíceis. Os que têm fé numa natureza humana “basicamente boa”, olham para os astros ao invés de enfrentar suas entranhas inflamadas, apostam no sofrimento como chave para mudar, garantem que sairemos mais “sábios” da encrenca. Com tanta e variada quilometragem, estou cada vez mais parecido com Mark Twain na fase final da vida. Uma de suas histórias enumera sugestões para o encontro com São Pedro no céu. A mais sábia: jamais leve seu cachorro para o encontro. Se o fizer, é provável que o guardião celeste abra passagem para o animal e te barre a entrada.

Abraço e se cuidem.