O problema mais sério do homem é a solidão (Érico Veríssimo, em entrevista a Paulo Autran)
Maktub. Andávamos pela feira da rua Tristán Narvaja, tradicional programa domingueiro em Montevidéu. Deixando-nos levar pelo acaso, em meio a aromas e quinquilharias. Numa das muitas transversais, um imenso sebo jogou seu canto de sereia. E lá estava a biografia de Ghiggia, o ponta-direita da Celeste que calou o Maracanã em 1950. O vendedor puxou conversa. Disse-lhe, meio demagógico, que levaria aquele pedacinho do Maracanazo em homenagem à dor pela maior tragédia do futebol brasileiro . Fez-me um bom desconto e saí com a perspectiva de reabrir um tema inesgotável. Aliás, muitos temas.
Quem me acompanha, sabe que passei um longo tempo obcecado pela Copa de 1950. Li, ouvi, assisti, tudo que pude sobre a ascensão e queda de um time espetacular, que naufragou engolido por uma mistura tóxica de soberba, patriotadas, histeria da imprensa, submissão a interesses políticos, e, sobretudo, por uma atuação impecável dos uruguaios. Às 16:39 horas do dia 16 de julho, 34 minutos do segundo tempo, Ghiggia bateu Bigode na corrida, entrou na área brasileira e fez o ilógico. Chutou quase sem ângulo e surpreendeu Barbosa, que se preparava para cortar o provável centro para Schiaffino. Dois a um, mais de duzentas mil pessoas assombradas com o impossível, um país em silêncio. A partir daí, histórias e mitos se confundiram para sufocar uma dor que parecia murmurar: é, esse país nunca vai dar certo mesmo.
O grande personagem trágico daquela tarde sem glória foi um negro, 1,74 m, destaque no Expresso da Vitória vascaíno. O goleiro Barbosa foi acusado de ter tomado um frango e ser o culpado pela derrota. Em 1959, Nelson Rodrigues escreveu: “O sujeito pensa em Barbosa, o sujeito descarrega em Barbosa a responsabilidade maciça, compacta, da derrota. (…) O brasileiro já se esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da (gripe) Espanhola, do assassinato de (senador) Pinheiro Machado. Mas o que ele não esquece, nem a tiro, é o chamado frango de Barbosa”. Amargurado, o goleiro dizia que era o único brasileiro condenado à prisão perpétua. Cadeia sem barras, sem carcereiro, mas de solidão carnívora.“Eu já pensei um milhão de vezes naquela jogada”, lamentava-se, no centro nervoso de seu pesadelo recorrente. Certa vez, estava num bar, quando se aproximou uma mulher com seu filho pequeno. Reconhecendo Barbosa, virou-se para o filho e disse: “Está vendo esse aí ? Foi ele que fez o Brasil chorar”.
Em meio à pandemia do coronavírus, a solidão de Barbosa parece a metáfora perfeita para a sensação de abandono, de condenação sem culpa, de comprometimento do futuro, de impotência para enfrentar o invisível, em que todos estamos metidos. Não é aquela solidão gostosa, fértil, de relação preciosa com o mundo interno. É o estar solitário com medo. Perguntado sobre como lidava com a solidão, Valter Hugo Mãe ponderou que tem medo de ficar só. “Não acredito que alguém nos pode entender o suficiente para conhecer e ser solidário com nossas falhas. A maioria das vezes, nas nossas inevitáveis falhas, estaremos sem ninguém”. Sem querer, o escritor português parece fotografar, em agressivo preto de branco, a fração de segundo que levou Ghiggia a entortar a lógica e selar o destino de um homem.
A festa que estava armada para festejar o título que não veio, os hectolitros de cerveja, as escolas de samba, as promessas dos políticos e dos comerciantes, o desfile em carro de bombeiros, tudo virou jornal queimado nas arquibancadas da solidão. Barbosa morava em Ramos. Os vizinhos tinham preparado um banquete para celebrar a vitória. Uma mesa enorme no meio da rua, com todo tipo de tiragosto e carne, de pernis a chuletas, de sardinhas fritas a moelas, aguardava a chegada do herói consagrado. Quando finalmente conseguiu sair do Maracanã e atravessar as ruas desoladas, Barbosa chegou à sua casa. Um vento morno sacudia a toalha da mesa armada para o triunfo, a comida intocada, os vizinhos ausentes. Alguns cachorros cercavam a mesa, atraídos pelo cheiro da comida. No entanto, nenhum deles tentava alcançá-la. Pareciam hipnotizados. Como se uma maldição os espreitasse, interditando a alegria. Pois foi essa mesa farta, mas proibida, que perseguiu um condenado ao silêncio e à culpa até sua morte, há vinte anos.
Abraço
Jacques