Glórias a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o Almirante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais!
Era o longínquo ano de 1978.Eu tinha sete anos de idade e estava muito doente. Uma febre reumática aguda atropelou minha infância, me trazendo dores atrozes nos ossos, garganta inflamada com placas de pus, picos de febre. Minha mãe sobrecarregada, tendo cuidar dos meus outros irmãos, não podia focar numa só criança que precisava de cuidados 24 horas, meus avós tinham mudado para outra cidade, então chegaram a um consenso, me mandaram para casa do meu bisavô, onde duas das minhas tias-avós cuidariam de mim.
Desse período minhas lembranças mais fortes são: meu bisavô e sua cara larga de eslavo, sentado na sua cadeira cativa na varanda, ouvindo na rádio os rumos do mundo. As benzetacis dolorosas que me tomavam de terror, tomava-as dia sim, dia não e dava problema para os adultos, me escondendo debaixo da cama, dentro do armário, até dentro do tanque de lavar roupa. Não entendia o porque de me submeterem aquela sessão de tortura, por mais que explicassem que era para o meu bem. Graças a odiosa injeção e a diligência do bisa e das tias me livrei de uma cardiopatia. Obrigada família, obrigada Fleming.
As agruras que Tia Ermelinda, passou , viva até hoje e esquerda convicta, que tem a moral concedida pelos seus quase cem anos de botar o dedo na cara da manada da minha família e perguntar como puderam eleger aquele desclassificado para presidente., foram uma verdadeira provação. Ela tentava suavizar meus dias de criança doente , operando a alquimia nas panelas e fazendo o milagre da transmutação. Inapetente, ela fantasiava o que me dava. Era assim que um suco de beterraba com frutas cítricas era apresentado como o mais legítimo sumo de morangos colhido no orvalho da Suécia. A garganta inflamada me impedia de comer algo mais sólido e a minha chatice de quem come mal também, então eu só queria o puro caldinho de feijão. Lá ia ela bater o feijão e jogava carne no liquidificador, sem que eu de nada desconfiasse. Com cuidado, carinho e mão firme, ela driblava minha teimosia.
Uma única coisa porém me tirava do mundo escuro da dor: A abertura da novela O Astro, da saudosa Janete Clair. Ali na TV Philipps colorida, que junto ao telefone eram os bens da classe média, eu assistia extasiada aquele caleidoscópio que surgia na tela, apaixonada principalmente pela música de abertura. Lá era o meu refúgio, momento de desligar do medo, da dor e das picadas de agulha. Não assistia a novela, meu bisavô era rígido, eu não tinha idade para acompanhar. Mas a abertura de segunda a sábado me era concedida. E foi assim que eu, menina de sete anos, sabia de cor :”Minha pedra é ametista, minha cor o amarelo…”Esse foi meu primeiro contato com a poesia de Aldir. Fui crescendo e aprendendo outras. Ouvindo Elis meu pai falava: Essa é do Aldir. Agnus Sei, a sensualíssima Dois pra Lá, dois pra Cá, Mestre Sala dos Mares e fui entrando no universo do vascaíno da Muda.
Aldir, junto a outros nomes que formaram o meu mundo, morreu vítima do Covid-19 no dia 04. Com ele vai parte das minhas memórias afetivas. Triste saber que não seremos mais brindados com suas crônicas, por suas letras que misturam um finíssimo lirismo e um aguçado deboche. Pensando nisso, em Aldir e na novela O Astro, que me lembrei de algo importante e que por algum motivo me leva ao caos que estamos vivendo. O personagem principal da novela, o tal astro, Herculano Quintanilha, foi inspirado em López Rega. Cabe aqui contar um pouco da sua história.
Na década de setenta, Isabelita, moça de classe média alta, versada no francês e no piano, deu vazão a sua rebeldia indo para o Panamá ser dançarina de Cabaré. A nossa Miss Suéter lá conheceu Perón, na idade outonal de 78 anos.
Casaram-se e arrumaram um ideólogo, autoproclamado filósofo e vidente, ex-cabo de polícia, chamado José Lopes Regas, autodenominado El Brujo. Ele não era nada ate conhecer o casal. Em 1972 escreveu o livro Astrologia Esotérica, um calhamaço cheio de loucuras indecifráveis. .Exerceu imensa influência em Isabelita, um Rasputin sul americano. Misturava tudo isso, astrologia, filosofia de boteco, com uma pitada de umbanda e com inspirações da Escola de Thule, que foi um dos berços do nazismo.
Saindo do exílio da Espanha com o casal, tornou-se Ministro do Bem Estar Social e fundou a Tríplice A, uma milicia para combater os esquerdistas peronistas..Peron morreu e com Isabelita sob seu controle, El Brujo ampliou ainda mais seus poderes. Mas durou apenas mais um ano. Em 1975, uma manobra econômica desastrada resultou em inflação súbita e elevada. Celestino Rodrigo, o ministro da Economia, era uma aposta do astrólogo. Deu-se então, o “Rodrigazo”, como ficou conhecida a crise. Com a violenta reação popular, López Rega fugiu para a Espanha., mas como era um vidente de araque e não conseguiu prever seu fim, foi descoberto, detido e extraditado em 1986, morreu na prisão três anos depois. E foi assim que se abriu caminho para uma das mais violentas ditaduras da América Latina.
O que isso tem a ver com Aldir? Ora, o que vemos aí é que todo mundo tem o Rasputin que merece. Se os argentinos tiveram El Brujo, nós temos Olavo de Carvalho. O filósofo cartomante não passa de um genérico! Guru do nosso presidente, é um negacionista do Covid, terraplanista e outro dia propôs que Bolsonaro fizesse uma milícia (para chamar de sua, porque milícia grande ele já tem) para botar ordem e proibir quem tem opinião contrária de se manifestar. Sim, ele propôs algo nos moldes da SA nazista. Esse é o homem que escolhe os ministros, que influencia o governante, suas 4 crias execráveis e alguns ministros de pastas importantes. Muito do nosso inferno deve-se a ele, de sua influência direta.
Esse é o nosso panorama. Um Brasil desgovernado, flertando com o fascismo, tendo um assassino no poder, vivendo uma perigosa crise política em meio a uma pandemia do vírus que matou o poeta. Fosse qualquer outro mandatário emitiria uma nota de pesar pela morte de um artista fundamental na cultura brasileira. Sabemos porém como esse governo despreza qualquer manifestação artística e tratando-se do nosso presidente , nem deve saber quem é Aldir.
Emblemático que o autor do “Bêbado e a Equilibrista” tenha partido no dia seguinte a pantomina diabólica promovida pelo Chefe na Nação , em que ele insinuou a volta a ditadura. O que me dá um certo alento é saber que Aldir permanecerá por sua obra, enquanto esse Hitler Tupiniquim e seus asseclas ,todo o seu circo dos horrores, tem lugar cativo no lixo da história. Que Aldir encontre Henfil e Elis no outro andar e que Bolsonaro, com sua gripezinha , volte ao inferno. Lugar de onde nunca deveria ter saído.