Morreu Aldir Blanc. Por uma triste coincidência, eu planejava escrever hoje sobre solidões, dessas que dão filhotes que às vezes duram eternidade e meia. Vocês vão me desculpar, mas não dá pra manter o plano, a sensação de perda é corrosiva, como se parte da minha alma suburbana tivesse naufragado ao som de menestréis malditos.
Aldir era a mais pura tradução do espírito suburbano, do estar à vontade, do valorizar as raízes e viver nelas, das rodas de choro e samba ao redor de chopes infinitos e torresmos homicidas, das peladas com traves de alpargatas, do tem uma xícara de açúcar para me emprestar, vizinho ?, do sobrado mal-assombrado, do português da venda, do italiano da barbearia, do espanhol do armarinho.
Como é que faço para acalmar a dor ? Tempos atrás, homenagearam um regente de coral, precocemente falecido. Era uma figura querida, o pessoal estava muito emocionado. Foi quando, pela primeira vez, vi substituírem o minuto de silêncio pelo minuto de barulho. Durante sessenta segundos, o público bateu palmas, cantou o que lhe deu na telha, assobiou, estalou dedos, soluçou. Foi uma das mais belas homenagens que já presenciei. Os vivos, que carregaremos para sempre o esquife das perdas, precisamos mesmo é do barulho do mundo.
Pensando nisso, resolvi dividir com vocês uma das muitas crônicas geniais do Aldir. Uma das que evocam sua vivência suburbana, seus personagens antológicos pela simplicidade e pela mais absoluta falta de afetação. Foi difícil escolher, o repertório é supimpa e vasto. Decidi por uma que me fez rir muito, reduzindo o volume da “vida real” e me fazendo multiplicar os sentidos do dia-a-dia. Virtude rara, só encontrável nos grandes cronistas.
O texto foi publicado na edição 343 d’O Pasquim, em janeiro de 1976. É um alívio saber que ele existe e pode me consolar quando a saudade ficar insuportável. Quem sabe, nestes cinco minutos de leitura e barulho interno, consigo transmitir para vocês o efeito analgésico e vital ?
Aldir vive !
O COCÔ
– Desde sábado ?! Mas hoje é quinta !
A frase cortou a mesa de jantar como a barbatana desse tubarão otário que andou fazendo sucesso nas telas e na imaginação dos nossos mais representativos mentecaptos.
– Tu ficou muda, mulher ? Hoje é quinta !
– Eu sei, Aderbal, mas o Júnior só me falou hoje e pensei …
– Pensou ? E desde quando tu pensa ? Cadê o Júnior ?
Adentra o recinto Aderbal Júnior, sete anos, anêmico, magricela e chato. Obviamente, como todo garoto anêmico, magricela e chato, o Júnior tinha problemas intestinais. Pra sermos exatos, borrava-se frequentemente. Nada mais compreensível, portanto, que a aflição de Aderbal Pai ao saber que o Júnior há seis dias não fazia cocô.
– Telefona pro doutor Waladão !
Enquanto a família aguardava o esculápio, uma prestativa vizinha, tendo ouvido apenas um berro do Aderbal do tipo “tá entupido”, chamou Iná, a desvairada mãe, pelo muro e sugeriu:
– Põe soda cáustica, minha filha.
– Bota na tua velha !
E o Aderbal, normalmente tão educado, tido na Rua dos Artistas como um “doce de coco”, tava um bocado nervoso. Tanto que destratou também a Dona Otília, outra ótima vizinha, que após atravessar a rua para averiguar o motivo dos gritos, aconselhou com sua peculiar sabedoria:
– Ora, enfia a pontinha de um talo de couve molhado no azeite.
E o Aderbal, aparvalhado:
– Enfia aonde ?
– Ué, no cuzinho …
– Talo de couve a senhora enfia na sua horta. No meu garoto, não !
Choviam sugestões:
– Chama a Heronda pra benzer a barriguinha dele.
– Manda comprar limonada purgativa.
Os priminhos do Júnior, cândidas e adoráveis crianças, não compreendendo a gravidade da situação, entoavam em coro:
– Saco-de-bosta ! Saco-de-bosta !
Aderbal, pai extremoso, tomou a defesa do filho:
– Ou essas pestes param com a cantoria, ou eu arrebento um ! Eu arrebento um !
Tio Odorico, pai do menino que regia o coro, não gostou:
– Olha aqui, Aderbal ! Se tu encostar a mão no meu garoto, quem vai precisar de médico é você !
Aderbal, que já estava exasperado, deu prodigioso salto até a mesa onde jazia o jantar e arremessou uma travessa cheia de risoto de camarão em Tio Odorico.
Felizmente errou o alvo.
Infelizmente acertou em cheio a cara da esposa.
Houve um tumulto dos diabos, contornado graças à diplomacia do meu avô Aguiar:
– Noemia, traz o meu revólver.
Mas a paz durou pouco, porque o Penteado, tremendo gozador, fez uma piada infeliz:
– O menino com prisão de ventre e os adultos fazendo cagada!
Recomeçaram imediatamente as sugestões, os berros, o choro de Iná, o corinho de saco-de-bosta. Aderbal, momentaneamente ensandecido, gritava a esmo:
– Bota na velha ! Arrebento um !
Dizem até que meu avô disparou duas vezes para o alto. Toda a rua na janela. Frases chocavam-se nos oitis como pássaros malucos.
– Dá um chazinho de erva cidreira.
– Chama a Radiopatrulha !
– Eu boto a tropa na rua !
Até Isolda, que morava quase em frente, pediu a Rodolfo que interrompesse as pancadas, e vieram os dois abraçados, pro portão.
Nesse instante, saltou de um Citroën o Doutor Waladão, recebido com aplausos e gritos dos moradores:
– Graças ao bom Deus !
– Aí, mocinho !
– Fala, roto-rúter !
Doutor Waladão ouviu o caso com semblante de águia, aproximou-se do Júnior, e, com a frieza dos grandes discípulos de Hipócrates, sibilou:
– Não há mais nada a fazer.
Acocorado num cantinho do sofá, o Júnior, anêmico, magricela e chato como sempre, estava, como sempre, todo borrado.