É angustiante dormir sem saber que vai acordar (David Uip)
Desde que comecei a escrever crônicas semanais, em 2011, percebi como era delicado o balanço entre memórias pessoais, familiares, e a vivência social e política. Como interessar leitores por assuntos tão singulares como os desvãos de um Menino na Tijuca desaparecida ? Sei que isso não é nada fácil. Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de literatura, disse que tudo que escrevia tinha a marca da rua Krochmalna, em Varsóvia, onde passara a infância. As primeiras lembranças têm digitais pesadas. Como compartilhar, entretanto, sem cair na frágil idealização do passado e dando toques de universalidade a experiências íntimas ?
Peço licença aos meus golems, às lembranças primitivas, para olhar o que todos, coletivamente, estamos vivendo. Lente embaçada pela falta de uma troca ao vivo com meus interlocutores habituais, isolados como eu. É uma crise que, advertiu o doutor Drauzio Varella, “estamos enfrentando no escuro, uma tragédia de dimensões imprevisíveis”. E ela nos manda, de cara, um aviso, que lembra o filme O mensageiro, de 2009 (Woody Harrelson em grande forma). Soldados são escalados para comunicar, pessoalmente, a morte em combate de militares. Visitam as famílias, e começam dizendo “lamentamos informar” (regret to inform). Pois, meus caros, lamento informar que não há mais ilhas desertas para onde levaremos nossos discos e livros preferidos, nossas comidas prediletas, nossos amores reais ou devaneados. E os aeroportos viraram apenas uma estranha paisagem.
Nossa alma racional insistirá em perguntar onde tudo começou. As redes sociais, esse oráculo diversionista que lambuza monitores e retinas, adoram escalar culpados de ocasião. Coisas como “vírus chinês” acalmam espíritos xenófobos e alimentam o imaginário, tão antigo quanto Charlie Chan, do oriental dissimulado, arredio, pérfido. Prefiro deixar a pergunta no ar. Afinal de contas, os processos de transformação da natureza são lentos e complexos. Quando, por exemplo, começa a erupção de um vulcão ? Certamente que não é quando aparece a fumaça no topo da montanha. Uma estalactite, formação calcárea que resulta do gotejamento de água nas fendas de cavernas, cresce à razão de 0,5 a 2,5 centímetros por século. Assim sendo, se você visitar uma caverna dez anos depois de iniciado o gotejamento, não será capaz de perceber o que está em curso. Pode não parecer, mas nosso planeta funciona como se uma membrana delicada, invisível, conectasse águas, vegetais, rochas, animais, gentes. Rompê-la é uma aposta no desastre.
Afora a sensação de que seremos abalroados por um fenemê se sairmos de casa, o que será que mais angustia na presente turbulência ? Respondo por mim. Não saber a profundidade da borrasca, a duração da crise, é terrível. Como no samba da União da Ilha, em 1978: Como será o amanhã/responda quem puder. E ninguém pode. Todas as rotinas derreteram, as referências mais triviais entraram em colapso. Uma jornalista, isolada com três filhos, contou sua experiência. Sacudidas nas suas certezas mais elementares, as crianças reagem do seu jeito. Uma disse que as paredes pareciam falar com ela. A realidade dá lugar aos fantasmas que nos atormentam em qualquer crise. O discurso dos corpos embaralha os parágrafos. Que mundo resultará deste filtro infernal ? Com que roupa nós sairemos do samba que o coronavírus nos convidou ?
Há quem se iluda e acredite, como Raskolnikov, que a redenção virá depois da purgação dos pecados. Passada a peste, dizem, nascerá uma nova humanidade, mais solidária, mais preocupada com equilíbrios vários. Outros procurarão atalhos para sair da dor, buscando iluminação nos astros. Pode ser. Como diria P. T. Barnum, esperto empresário circense americano, nasce um otário a cada minuto. Estou alinhado com os céticos, mas comprometido com responder e atuar diferente. Neste momento de enorme instabilidade, evoco o belíssimo samba de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho: Que a vida não é só isso que se vê/É um pouco mais/Que os olhos não conseguem perceber/E as mãos não ousam tocar/E os pés recusam pisar/Sei lá não sei/Sei lá não sei. Pois é: sei lá não sei.