A uma certa Menina, que, aos 8 anos, descobriu os Beatles e acabou se descobrindo.
O olhar estava longe. Cheguei perto e perguntei ao meu sogro, à época já virando os oitenta, o tradicional vi gueistu (como vai, em ídish). Sem se desviar do ponto distante, falou baixinho: foi tudo tão rápido … Não entendi. Olhou para mim e disse, com uma pontinha de melancolia: a vida, Jacquinho, a vida … Surpresa. Entre a vivência judaica na Polônia, a fuga com a chegada dos nazistas, a passagem pelo gueto de Xangai durante a guerra, a direção do último jornal em língua ídish no Brasil, sua trajetória intensa evocava tudo, menos imagens velozes. Tudo muito trabalhado, muito conquistado, sublimando memórias trágicas, construindo um espaço e uma identidade. Como rápido ? Mais tarde entendi o que ele quis me dizer.
Quando os jornais lembraram, dias atrás, que fazia meio século que os Beatles acabaram, espantei-me. Como assim, meio século ? Tão rápido ! Este pequeno mistério do tempo, o cronológico meio divorciado do emocional, faz sentido. Quem não viveu a década de 60 tem dificuldade em compreender a beatlemania. Sem redes sociais, o telex como a última palavra em tecnologia de comunicação, um quarteto vestindo terninhos apertados e usando cabeleiras que escandalizaram os habituados ao Príncipe Danilo, virou enorme fenômeno de massa. Do jeito que dava. Vendendo discos, tocando no rádio, se apresentando em todos os cantos, às vezes em condições precárias, filmando com Richard Lester. Letras edulcoradas enlouqueciam adolescentes, havia concertos em que eles sequer ouviam as próprias vozes, abafadas por gritos histéricos de devoção. Parece que uma geração inteira aguardava aquilo para se soltar.
Pode parecer exótico, mas, desde o surgimento dos requebros sensuais de Elvis Presley, o rock foi atentamente acompanhado por uma espécie de polícia de costumes. Quando o filme Rock around the clock, estrelado por Bill Haley e seus cometas, foi lançado em 1956, telegramas das agências noticiosas comentavam que os jovens “endoideciam” e se atiravam “às mais grotescas extravagâncias”. Não raro, as sessões eram seguidas, na rua, por “dança bamboleante e frenética”. No Rio, o delegado de Costumes e Diversões (sim, isso existia !), preocupado com a chegada do filme na cidade, determinou vigilância especial nas salas de projeção. Não satisfeito, sentenciou: “Eu aconselharia aos pais dos jovens que se têm deixado transtornar pela música em questão levá-los ao médico psiquiatra, pois alguma coisa estará errada em suas mentes”.
No caso dos Beatles, que jamais saíram do figurino bem comportado no palco, foi fascinante acompanhar a rápida carreira. De besteiras como She loves you, Love me do e I wanna hold your hand ao repertório sofisticado que inclui A day in the life, Here comes the sun e She’s leaving home, foi um salto enorme. Depois dos últimos concertos nos Estados Unidos, em 1966, decidiram terminar com as apresentações ao vivo. De Sgt. Pepper’s (considerado por muitos o melhor disco de música pop de todos os tempos) em diante, só se reuniam em estúdio. Em 1966, aliás, Lennon, numa de suas famosas provocações, disse que “somos mais populares do que Jesus Cristo”. Foi o suficiente para desencadear reações enfurecidas nos Estados Unidos, especialmente no sul. Promoveram-se fogueiras com LPs da banda e pequenas manifestações de “desagravo” a Jesus. A Ku Klux Klan participou alegremente dos fogaréus.
No Brasil, era comum fazer versões em português para os sucessos internacionais. Bolerões, então muito em voga, surfavam na onda. Blue gardenia, originalmente cantada por Nat King Cole, ganhou versão gravada por Cauby Peixoto. A tempestade beatlemaníaca gerou filhotes na mame loshn brasileira. Os que estão há muitos anos na estrada lembrarão Renato e seus blue caps: Feche os olhos (All my loving), Menina linda (I should have known better) e Até o fim (You won’t see me). Também Ronnie Von, o Pequeno Príncipe da Jovem Guarda, cantando Meu bem (Girl), com ensaiado ar blasé. A turma da Geração Paissandu tinha outras preferências, mas os bailes domésticos e em clubes eram vitaminados pelo abrasileiramento do Fab four.
A separação do quarteto de Liverpool foi especialmente lamentada por ter acontecido num momento em que a banda demonstrava amadurecimento artístico e elevadas doses de criatividade. Prova disso é a carreira solo de John. Ele declarou várias vezes, não sem certo rancor, que estava farto de repetir cançõezinhas românticas. Desabrochou feminista (Woman is the nigger of the world), ativista politico (lutou pela libertação do militante antirracista John Sinclair), pacifista, cronista da própria dor (Mother, um ajuste de contas público com seus pais), poeta do desencanto (God, em cuja letra aparece, pela primeira vez, “o sonho acabou”). Harrison, o beatle caladão, lançou um álbum triplo no mesmo ano da separação do grupo. Não consigo dimensionar o que aconteceria se tivessem permanecido juntos, mas a vida real está fora dos manuais de autoajuda e dos conselheiros de receita pronta. Relações são mesmo complicadas, tempestuosas, tensas, nem sempre negociáveis.
John, Paul, George e Ringo estão na galeria existencial da minha geração. Muitos de nós ouvíamos suas músicas sem entender uma palavra, analfabetos que éramos em inglês. Fazíamos, então, um scat singing e, voilà !, tudo em casa. Uma música composta por Paul McCartney (embora atribuída também a Lennon) sintetiza o que sentimos pelo privilégio de ter acompanhado os Beatles desde o início. É Black bird. Diz: Black bird singing in the dead of night/take these broken wings and learn to fly/all your life, you were only waiting for this moment to arise. Acho que nosso sentimento, o das multidões que ouviam a banda era esse mesmo: uma revelação. Como se tivéssemos passado a vida aprendendo a voar, e o momento do primeiro voo tivesse chegado.
Abraço
Jacques