Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos (Fernando Pessoa)
Antevéspera de Pessach. No jantar inaugural, costuma-se ler a história oficial, de veracidade no mínimo duvidosa, sobre o êxodo, a saída dos hebreus da escravidão egípcia. Há um momento em que se fazem quatro perguntas, muito apreciado pela meninada. É o Ma Nishtaná, ou Di fir cashes, como diziam, em ídish, nossos avós. Uma delas transcende, hoje, o sentido original: em que essa noite é diferente das outras ? Essa que se aproxima, assombrada por um vírus, se diferencia, sobretudo, por nos fazer distantes de quem amamos. As imagens virtuais são apenas um gato mambembe para o contato pessoal, insubstituível. Resta um punhado de memórias e o redesenho dos significados que associamos a essa história. Uma atualização permanente, aprovada pelos sábios que, ao longo dos séculos, perceberam a importância de incorporar vivências e percepções à narrativa.
O Menino navegava, maravilhado, por aromas e sabores da mesa, solene apenas no início. Em pouco tempo, farelos de matzá, restos de hrein, gotas de vinho sacramental e respingos de yuach, o caldo de galinha dourado e fumegante, enfeitavam a toalha, misturados com as canções da Agadá e os causos dos adultos. Para ele, o ovo cozido mergulhado em água salgada, simbolizando as lágrimas vertidas pelos escravos, era iguaria digna de uma estrela no guia Michelin. O clima acolhedor d’antanho era meio quebrado pela separação, afetiva e social, da família. Os da zona norte não celebravam junto com os da zona sul, o que nos fazia, os de calças curtas, exercer preferências. Cruel para as crianças, que sonham com unidade em terra de separação.
Disse que a história oficial não pode ser confirmada. É verdade, mas o Pessach é uma das argamassas que criaram uma certa unidade no povo judeu. Como explicou o historiador Jaime Pinsky: “Um povo é um grupo com a consciência de um passado comum. Não é fundamental que o passado comum tenha realmente existido, basta a consciência da existência dele: ao escolher a herança judaica, cada indivíduo passa a ser depositário de um universo de valores”. Que valores o Êxodo convoca ?
Começo com um antivalor. Para convencer o faraó a libertar os hebreus, deus providenciou dez pragas. Nenhuma delas foi exclusiva da família real egípcia e sua corte civil e militar. Todas atingiram indistintamente todo o povo egípcio, condenando-o à fome e à doença. Ao transformar as águas do Nilo em sangue, por exemplo, uma hecatombe ecológica que exterminou a vida do rio, liquidou pescadores e suas famílias, retirando uma das principais fontes da alimentação dos pobres. O assassinato dos primogênitos, última das pragas, foi de uma perversidade inominável. Atingiu do faraó ao mais miserável dos escravos não-hebreus. Punição coletiva, hoje condenada pelas leis internacionais, como demonstração de poder. A se crer na onipotência divina, tudo poderia se resolver sem sangue, sem violência. O pai amoroso do “Povo Eleito” demonstrou vaidade agressiva e sede de vingança. Mau exemplo, o lado negro do Pessach.
Pensando bem, essa nuvem aterrorizante ainda flutua por aí. Pois não é que uma praga invisível resolveu separar pessoas, desenterrar velhos desesperos, exilar projetos de vida ? Junto com ela, tentações totalitárias emergem como gafanhotos egípcios.
A travessia do deserto por 40 anos, clímax do processo de libertação, levou a uma terra diferente. Terra do leite, para saciar a fome, e do mel, para adoçar as vidas. No entanto, levou a novos valores, como era, supostamente, a vontade de Moisés ? Ninguém pode saber, mas a gente pode especular sobre o que gostaríamos que fosse o novo, o renovador, que enriquece a liberdade. O que, por exemplo, acontecerá quando terminarmos de atravessar a epidemia que enfrentamos ? De Paraisópolis à Rocinha, do Complexo do Alemão à Vila Nova da Cachoeirinha, da Maré às palafitas do bairro do Pina, do Vidigal às famílias de Magé que moram em residências condenadas, uma multidão de novos escravos, sem direitos, vivem empilhados em casas minúsculas, sem ventilação, esgoto, água. Dez por cento da população brasileira vive hoje em “aglomerados subnormais”. Quase 14 milhões estão na miséria extrema. Todos invisíveis nas nossas rotinas. Continuarão assim ? Continuaremos a vê-los apenas na televisão, como realidade distante, intergaláctica ? Quando, onde, como, começará seu processo de libertação ?
Em 1943, na primeira noite do Pessach, a Organização Combatente Judaica iniciou o levante do gueto de Varsóvia. Armados precariamente, os últimos sobreviventes do gueto enfrentaram o exército nazista, dispostos a deixar um exemplo de dignidade e respeito à vida. Sabiam que não poderiam sobreviver, mas deram o grito de liberdade nas condições mais extremas. A escolha da primeira noite do Pessach não foi acidental. Coincidiu com a herança libertária que uma passagem da Agadá, a narrativa oficial, bem sintetiza: Sentirás o Êxodo como se você mesmo tivesse saído da escravidão do Egito. O grito dos perseguidos, dos humilhados e ofendidos, não pode ficar confinado nas muralhas do gueto. Sua dor deve ser a nossa. Um valor que, em grande parte, ainda é apenas um desejo distante.
David Bogomoletz, de saudosa memória, criou um pequeno roteiro de Pessach há quase vinte anos. Termina do mesmo jeito como quero terminar: Maldita seja a escravidão/seja de quem for,/exista onde existir,/em todos os tempos e todos os lugares,/para todo o sempre,/amém !
Assim, apesar dos pesares e com esperança viva, embora em quarentena, Chag Pessach Sameach para todos.
Abraço
Jacques