Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo ! (Riobaldo, no Grande sertão: veredas)

Quem diria, hem ? Não faz muito, a gente estava preocupado com qualidade da água, geosmina e desfile de megablocos. Hoje, tudo isso parece mais antigo do que o trono do imperador da Abissínia. Em velocidade que lembra famosa cena do filme 2001: uma odisseia no espaço (o fêmur lançado por um macaco, que gira e transita para um voo comercial para a lua), estamos às voltas com um vírus que se atreve a mexer com nossos mais ardilosos fantasmas.

O que serão os pandemônios que nos apavoram ? Nós, que aqui estamos, isolados, desprovidos das referências cotidianas, habitando uma cidade fantasma, que só conhecíamos nos bangue-bangues. No alto do pódio, tentacular, está o medo da morte. Ou de viver sem objetivos claros, que é morrer aos poucos, percebendo apenas a passagem do tempo. Como disse a Mafalda, viver não é durar. No Sétimo selo, relembrado pela morte recente do Max von Sydow, o personagem Antonius Block conversa com a Morte, sem saber quem era seu interlocutor. Angustiado, reclama da invisibilidade divina, ao que a Morte pondera que talvez não haja ninguém “lá”. Block, inconformado, diz: “Então, a vida é um terror sem sentido. Nenhum homem pode viver com a Morte e saber que tudo é nada”. Em pouco mais de 4 minutos, Bergman resumiu o grande dilema dos homens: por que e para que estamos vivos ? Cada um terá a sua resposta. A minha é reconhecer a falta de sentidos prévios e lutar para criar, sem descanso, objetivos. Pessoais e coletivos. Fácil não é, se fosse o dilema nem existiria.

Também o inesperado, o que não se controla, dá medo. Quando éramos crianças, tínhamos medo do escuro. Por que? O invisível, como o coronavírus, costuma assustar. No Bebê de Rosemary (desculpem-me as feministas, mas tenho que citar Polanski), o Diabo, protagonista assombroso, jamais aparece. É apenas insinuado e o terror quem constrói é cada espectador. Somos diretores dos nossos medos, roteiristas dos nossos pesadelos.

Solidão é lava , que cobre tudo. Amargura em minha boca, sorri seus dentes de chumbo. Solidão, palavra cavada no coração, resignado e mudo, no compasso da desilusão. Só mesmo o poeta poderia traduzir, com trauma e beleza, um sentimento que pode enlouquecer ou sequestrar o que nos faz humanos. No Iluminado, um dos meus Kubrick favoritos, o escritor (Jack Nicholson, genial) enlouquece com a quarentena nevada.

A gente precisa, sempre, do Outro. Recentemente, alguém lembrou uma história da antropóloga Margareth Mead. Reproduzo: “Há muitos anos, um aluno perguntou à antropóloga o que ela considerava ser o primeiro sinal de civilização numa cultura. O aluno esperava que Mead falasse a respeito de anzóis, panelas de barro ou pedras de amolar.

Mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um fêmur (osso da coxa) quebrado e cicatrizado. Mead explicou que no reino animal, se você quebrar a perna, morre. Você não pode correr do perigo, ir até o rio para beber água ou caçar comida. Você é carne fresca para os predadores. Nenhum animal sobrevive a uma perna quebrada por tempo suficiente para o osso sarar.

Um fêmur quebrado que cicatrizou é evidência de que alguém teve tempo para ficar com aquele que caiu, tratou da ferida, levou a pessoa à segurança e cuidou dela até que se recuperasse. ‘Ajudar alguém durante a dificuldade é onde a civilização começa’, disse Mead”.

Na ausência física dos meus afetos, tenho procurado ouvir minha casa. Ela fala, e com que eloquência ! Outro dia, aborrecido com o confinamento, ouvi um psiu. Na verdade, dois. Um veio do Radu Lupu, grande pianista romeno. Magoado, disse que eu não dava bola pra ele há tempos. Tinha razão, e lá fui eu, tecnologia antiga, relembrar o CD com Grieg e Schumann. Em seguida, uma saraivada de Irving Berlins, pareciam saídos da trilha sonora de qualquer Woody Allen. Banquetes. A casa, minha, sua, está sempre com fome de conversa. Alimente-a. Descubra velhas imagens, cantinhos esquecidos, sons do silêncio. Boa forma de espantar a má companhia que traz à tona dilemas, medos e solidões. É em casa que nos sentimos acolhidos. Agualusa lembrou de um velho amigo português, exilado em Nova York. Perguntou-lhe do que sentia falta. O amigo respondeu de bate-pronto: “Sinto falta de ser tratado por menino. No meu bairro, todo mundo me tratava por menino: o síndico, o padeiro, a senhora que vendia flores. Em Nova York, ninguém me trata por menino”. Conheço bem este menino. Ou melhor: este Menino.

Abraço

Jacques