Há muitos anos um estudante perguntou à antropóloga cultural Margaret Mead: “O que consideras o primeiro sinal de civilização em uma cultura?”. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um fêmur quebrado e cicatrizado. Ela explicou que no reino animal quebrar um osso da perna era morte certa. Porque não poderás mais correr para fugir do perigo, ir ao rio para beber água, ou caçar comida. Animal com perna quebrada era carne fresca para os predadores. Um fêmur quebrado cicatrizado é prova de que alguém teve tempo de ficar com o homem caído, tratou sua ferida, o levou a um lugar seguro, cuidou até completar sua recuperação. Ajudar alguém durante a dificuldade é onde começa a civilização. Incrível como em revistas, jornais, na Filosofia ou na Psicanálise, a palavra solidariedade é quase ausente. Entretanto, uma calamidade mundial, como está sendo essa pandemia, vem desencadeando a responsabilidade mútua.

Solidariedade é uma palavra derivada do francês “solidaire”, cunhada no século XVIII – inteiro, sólido, firme. Expressa a qualidade de solidário, um sentimento de identificação com o sofrimento dos outros. É também uma responsabilidade recíproca, e ajuda as pessoas desamparadas. Creio que vivemos tempos nos quais se evidencia o quanto o excesso de individualização que se vive é perigoso. Recordo das três perguntas do sábio Hilel no Talmud: “Se eu não for por mim, quem será por mim?”. Óbvio que cada pessoa ao crescer precisa aprender a se cuidar, algo como ser seu próprio pai e sua própria mãe. E aí vem a segunda pergunta: “Se for apenas por mim, o que será de mim?”. Essa é a pergunta essencial da solidariedade, porque, cada vez mais, uns precisam dos outros hoje e amanhã. Solidariedade é o caminho, não há outro tratamento para nossa humanidade doente no seu individualismo. A terceira pergunta de Hilel é: “Se não for agora, quando?”. É agora, nesses tempos de solidão real, não virtual, que cresce a importância da solidariedade.

Um dos caminhos da Psicanálise para se pensar a solidariedade é a dívida simbólica. Dívida da criança, que antes mesmo de nascer está sendo inscrita como sujeito no mundo simbólico da linguagem e da cultura. Toda pessoa é assim um antigo futuro sujeito: antigo pelo passado dos pais e e gerações passadas e futuro porque há uma vida pela frente. Essa dívida simbólica só se paga, em parte, pelo que damos aos filhos ou aos demais. Dívida no sentido de ajudar ao outro, de contribuir com a comunidade, com a natureza, fazer o bem. Ser solidário é expressar a gratidão de viver, retribuir o que recebemos do intercurso com o mundo. Um mundo com graves desigualdades sociais, com alguns líderes egoístas, mesquinhos, narcisistas. São faces da humanidade que atacam a dívida simbólica, atacam vida, atacam a saúde da população.

O coronavírus, para ser combatido, requer isolamento de mãos dadas. Nessa verdadeira pausa da vida, há chances de olhar as flores, aumentar os amores, aliviar as dores cotidianas do isolamento. Tempo para nos humanizar. Angustiante está sendo a vida dos pobres, sempre os que mais sofrem. Vamos ter que aprender a solidariedade esquecida, praticada pelos imigrantes, quando o capitalismo era mais humano. O terror do neoliberalismo pode ser visto na série “Na Rota do Dinheiro Sujo”, série norte-americana sobre as milícias dos lucros a qualquer custo. O primeiro da série é a história do famoso banco norte-americano Wells Fargo, que mentiu em suas corrupções em busca de lucros bilionários. A direção do Banco mentia de forma deslavada, tanto como se faz hoje no Brasil.

Quanto a nós, vamos manter o norte, seguir à risca as orientações da medicina, pois chegarão dias melhores. Lembro o poeta Tiago de Mello: “Faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar”. Precisamos viver o hoje e imaginar outro amanhã para o nosso país e para o mundo.