al sur al sur/está quieta esperando/Montevideo (Mario Benedetti)

Lá tantas vezes que não me sinto turista. A Montevidéu que encontrei desta vez se chama memória.

Numa rua típica, baldosa persistente, argamassa quieta, estava a Fundação Mario Benedetti. Do lado de fora, como em tantas outras casas montevideanas, não se suspeita os tesouros que esconde. O grande intelectual, que não teve filhos, nem deixou herdeiros, deixou ordens claras do que fazer com seu imenso legado. Um conselho de curadores, todos voluntários, respeitam a vontade do Mario, preservando sua imensa biblioteca, as obras de arte que ganhou, seus móveis mais significativos. No fundo, um pátio cálido, que convida ao silêncio. Este é o ano de seu centenário de nascimento. As comemorações já começaram e têm a cara do uruguaio universal, identificado com a cidade e suas gentes. Muitas atividades ao ar livre, em forma de diálogo e acolhimento. Polindo, em suma, a memória de um tempo fora do tempo.

No centro da cidade, uma taberna vasca. Preferia uma flamenga, mas resolvemos arriscar. Mais uma vez, uma casa-surpresa. Do lado de fora, apenas a fachada meio ferida pelo tempo. Sobe-se a escada, e … voilà ! Corrimões de madeira centenários, uma porta com vitral colorido que dava acesso ao ginásio de pelota vasca. E tinha gente praticando. Na taberna, boa comida e pessoas conversando sem celular (gente estranha aquela, sem pescoço torto e de olho atento). A construção celebra a imigração do País Basco. Memória viajante.

Afastado do centro, está o Museu da Memória. Criado para lembrar o período ditatorial (1973-1985), que, como no Brasil e em outros países da América Latina, institucionalizou o terrorismo de Estado, fica num casarão que pertenceu a um general. No século XIX, era sua casa de veraneio e, conta-se, lá os adversários eram servidos aos leões que mantinha enjaulados. É um lugar impressionante (embora um tanto maltratado por falta de manutenção e de informações mais detalhadas sobre o acervo impactante). Quem assistiu o filme Uma noite de 12 anos, que reconstitui a situação dos chamados reféns da ditadura uruguaia (entre eles, Pepe Mujica), não tem como ficar indiferente. Lá estão os uniformes reais dos presos políticos (dá calafrios a semelhança com os de campos de concentração), portas das celas, objetos produzidos pelos prisioneiros, fotos dos que foram assassinados e os corpos desapareceram. O objetivo do museu não é clamar por vingança, mas, tal como fazem os judeus com o Holocausto e os japoneses com a barbárie nuclear em Hiroshima e Nagasaki, lembrar para que não volte a acontecer. Memória de dor e de luta.

Não pude evitar um certo desconforto com dois aspectos. O museu fica muito afastado da região central. Talvez por isso, tenha poucos visitantes. Éramos os únicos quando lá fomos. Seria essa uma evidência de desapreço pela história recente do país ? Foi quando lembrei das Marchas del Silencio, que acontecem todos os anos no mês de maio. São grandes manifestações de massa, que reivindicam a localização dos que, sob a custódia do Estado, desapareceram durante a ditadura. Esquecimento ou permanência ? Em qual ponta estaria a verdade ?

Foi quando me deparei com a fotografia de um desaparecido, em exposição numa estrutura em forma de viveiro. Próxima do chão, ela estava quase encoberta por um galho de árvore. Percebi que havia duas formas de apreciá-la. A primeira, projetando o crescimento das folhas do galho. Fatalmente cobrirão a foto, fazendo desaparecer pela segunda vez, simbolicamente, o fotografado. A segunda seria enxergar as folhas como uma proteção da imagem, perpetuando-a.

Qual das visões prevalecerá ? A resposta está no povo uruguaio. Memória em construção.