Não sei se eram todas, mas existiam escolas judaicas no Rio sob autogestão. Comissões de pais cuidavam da administração, avaliavam a concessão de bolsas de estudo, debatiam linhas pedagógicas. E não apenas as chamadas progressistas, que o faziam por convicção ideológica. O Colégio Hebreu Brasileiro, na Tijuca, com suas tintas conservadoras, era gerido pelos pais de alunos, entre eles o meu. As candinhas diziam, cala-te boca !, que, depois das reuniões, rolava uma cervejinha no bar da esquina, uns tremoços talvez, ninguém era de ferro. A espelunca guardava os segredos daqueles homens castigados por vidas sem poesia.
Num carnaval triste, manhã tão tristonha manhã, o coração do Grande não suportou os pesos que carregava. Disse adeus e foi-se embora. Atônitos, descobrimos o valor que davam ao seu trabalho voluntário, para o qual sacrificava parte da vida afetiva. O Colégio resolveu, então, homenageá-lo. Inauguraram um retrato na secretaria, daqueles bem comportados, meu pai olhando para um infinito que jamais alcançou. O Menino, então, teve uma visão.
O prego onde seria pendurada a imagem começou a se mexer. No início, não acreditou. Coçou os olhos, apurou a vista, mas o metal insistia em se mover, de início lentamente, depois mais atrevido. O mais estranho é que ninguém percebia. Muitos anos depois, lendo o poeta Manoel de Barros, soube que o olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê. Os solenes apenas viam. O Menino teve seu momento transviado.
O prego-libélula ficou à deriva por muitos anos. Silencioso, mas desejante. À espera do porto de outro olhar. E ele chegou. O colégio foi demolido, móveis e documentos velejaram para o exílio e as cinzas, os homens pensaram outras raízes. Um dia, visitei a diretora do colégio onde ganhei maioridade religiosa (que perdi quase em seguida). Divulgava uma videoteca com grande valor pedagógico, oferecida sem custo a todos os colégios judaicos do Rio. Sinal de uma patologia grave, ninguém se interessou. Ao reconhecer meu sobrenome, a diretora pediu que aguardasse um pouco e se retirou para uma saleta contígua. Voltou de lá com uma moldura, que me ofereceu. Antes de identificá-la, percebi um leve movimento, que logo se transformou num voo arisco. Era meu prego-libélula, que, finalmente livre do metal, se aninhou numa folha de mangueira. E partiu em busca de outros Meninos.
Virei a moldura. Era ele, Zissi, meu Velho, que, agora, deixara de procurar o infinito e se satisfazia em achar meus olhos. Podia, enfim, compartilhar sua indiscutível solidão. Saímos por aí, acordando de um sonho estranho, coração de vidro e corte. Coloquei a moldura no meu pequeno altar doméstico, recorte de lembranças que degelam a cada dia. Ali, eu cuido das nossas feridas, dos nossos desassombros. E sou feliz. Somos felizes.
O argentino Alberto Manguel, falando sobre o ato de ler, garantiu que, em meio a um monte de livros, haverá sempre um que está à nossa espera, quietinho, escrito, sabe-se lá como, pensando em nós. Circuitos misteriosos que dão sabor à vida. Buscar esta beleza, em imagens ou letras, é, parafraseando Manoel de Barros, uma solenidade de amor.