A Passarela dos Sem Noção

Nunca me vi como um ensaísta, mas este é o termo correto para aqueles que como eu escrevem expondo suas opiniões, críticas e ideias acerca de temas variados de forma livre e sem regras, sem um estilo definido.

Esta liberdade para escrever me permite expressar sentimentos que ficam guardados por uma semana. Escrevo todas as sextas-feiras quando começa o final de semana aqui em Israel. Por muitos dias fico pensando no que escrever e, não raro, chego ao computador sem qualquer propósito e as palavras começam a ser digitadas dando forma ao texto.

Esta semana fui surpreendido por uma notícia que chamou atenção pelo seu significado, mais do que pelo seu propósito. No Mato Grosso foi realizado um desfile de adoção dentro de um shopping.

Recebeu o nome de “Adoção na Passarela”. Uma das organizadoras do evento foi a Seccional Mato Grosso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT) e o Pantanal o Shopping foi a sede. Ambos já emitiram notas se desculpando.

Eu acredito de verdade que os organizadores tinham a melhor das intenções. Existem centenas de crianças aguardando por adoção e pensaram que as colocando em uma passarela teriam visibilidade para conseguirem uma família.

Claro que as pessoas normais entendem da importância da adoção voluntária. Óbvio que nos comovemos ao saber do número de crianças que aguardam uma família e que talvez nunca encontrem. Isso é de cortar o coração. Tudo que for possível em prol delas é válido. Tudo?

Como é que pessoas sensatas concluem que expor crianças já sentimentalmente machucadas em uma passarela que pode, ou não resultar em uma adoção, vai melhorar a situação delas? O que acontece com aquelas que vão voltar para o abrigo?

Pode parecer maldade, mas não há como não relacionar um evento destes com as feiras de escravos, ou desfiles de animais domésticos para adoção. A participação destas crianças, expostas desta maneira, só piora a situação delas a longo prazo.

Vamos imaginar o contrário. Uma feira de pais adotivos. Casais desfilando em uma passarela para crianças escolherem com quem desejam serem adotadas. O que aconteceria com os casais rejeitados?

Talvez se tivessem realizado um evento que proporcionasse aos pais interessados em adoção a conhecerem os abrigos, o sistema legal e finalmente as crianças em um ambiente controlado e supervisionado, o efeito tivesse sido outro.

De toda maneira, o caso nos faz refletir sobre as causas de tantas crianças aguardarem por adoção. São inúmeras e vão desde mães solteiras que entregam seus bebes, até de crianças retiradas de famílias destroçadas onde eram abusadas. Não existe nenhuma boa razão, somente tristeza.

Aquelas que não são adotadas ainda bebês, têm menos chances de conseguirem uma família. As que não são brancas também perdem pontos. Finalmente aquelas com qualquer tipo de necessidade especial, dificilmente vão deixar o abrigo. Esta é a triste realidade com honrosas exceções.

Por isso eu disse logo no inicio que acredito que os organizadores podem ter tido a melhor das intenções, mas foram extremamente infelizes no que fizeram e por isso tantas críticas, inclusive a minha.

Não esperem deste governo nenhuma atitude para melhorar a situação destas crianças. O aumento do desemprego e da pobreza extrema com a fome vai levar mais crianças para o estado de vulnerabilidade crônica e consequentemente para os abrigos. Estas crianças privadas de alimentação correta terão seu desenvolvimento prejudicado para toda a vida e terão suas chances de adoção diminuídas.

A estagnação econômica faz vítimas que não podem se expressar e muito menos se defenderem. Nós precisamos ser suas vozes. Dia 30 de maio todos às ruas.