O dia em que Putin Bolsonarizou a esquerda

O impacto do discurso de Putin feito ao mundo anunciando o registro da vacina produzida em seu país contra o COVID-19 em grupos intelectuais da esquerda foi impressionante. Sempre tive em relação a Putin uma relação de respeito e temor. Respeito pois considero-o há pelo menos duas décadas o maior estrategista vivo neste recanto do Sistema Solar. Temor pois seu poder, inteligência e capacidade política têm efeitos hipnóticos sobre muitos de seus observadores, seguidores e admiradores.
Putin é um sujeito ambicioso que surfa na onda pós-soviética com uma prancha cheia dos charmes e da carga cultural do exército vermelho, da derrubada dos nazistas, da contraposição ao ocidente. Mas a Rússia de hoje é capitalista, tem um sistema de poder que cultiva um amor platônico com o fascismo, tem na sua estrutura política máfias que reduziriam Sérgio Moro ao nível molecular antes que conquistasse um mero rodapé de um jornaleco de bairro, e acima de tudo isso, a alma russa, apreciável em grande estilo na antológica cena de “Chernobyl” onde os operários da mina de carvão dão simpáticos tapinhas nos ombros do então ministro das minas soviético transformando seu vistoso terno de linho claro em uma bandeira de carbono. E para completar, no campo dos costumes, o governo Putin é uma vergonha.
Dito isto, quero deixar claro que tenho profunda admiração pela ciência russa, soviética e pós-soviética. Certamente há uma subvalorização das conquistas científicas daquele povo. Por exemplo, a tecnologia de invisibilidade de aviões americanos aos radares deriva de um físico russo. O foguete Próton-Soyuz que lançou Gagárin ao espaço está em operação até hoje e por décadas foi o método mais barato de se levar homens e equipamentos à órbita da Terra. Muito da cosmologia moderna deriva de contribuições russas à Relatividade Geral de Einstein. Na biotecnologia não é diferente. Dominam todas as tecnologias. São uma potência científica e cultural de primeira grandeza.
Assim, fica difícil acreditar que a atitude de Putin em anunciar algo que ainda não existe possa causar tanta comoção e comemoração por parte de pessoas que cultivam sentimentos anti-imperialistas, anticapitalistas, antiamericanas, quando o que ele faz e exatamente reproduzir o comportamento de alguém que está em uma mera competição por poder político e hegemonia científica. Por quê “não existe”? Porque uma vacina só existe quando foi minimamente testada em algumas milhares de pessoas, e para isso não basta dizer que “produziu imunidade persistente” porque anticorpos medidos 60 dias após o teste não permite dizer que a imunidade é persistente. E mais que isso, seu desempenho deve ser aprovado por autoridades de abrangência internacional. “Registrar” sua vacina na autoridade sanitária russa, que certamente sofre pressões políticas neste cenário, e anunciar isto ao mundo como conquista científica não passa de bazófia. Alguns argumentam que isto é preconceito contra “qualquer coisa que saia do establishment ocidental”. Não é. Pois nenhuma nação ou laboratório até o momento, mesmo os que estão em fases mais avançadas de testagem de vacinas de diferentes tipos, anunciaram ter o produto “vacina”. Não vemos Xi JinPing posando de herói da vacina, mas sim declarando que a vacina produzida lá será um bem público.
Uma das maiores críticas que a esquerda faz ao bolsonarismo é sobre a aversão à ciência desta corrente de “pensamento”. Da mesma forma, a esquerda demoniza a indústria farmacêutica acusando-a de desvios éticos de todas as naturezas, de projetos hegemônicos, de ocultação de dados, e outras indecências. Então, por quê estas mesmas pessoas rendem-se à idolatria em relação à Rússia e seu líder que anuncia a “primeira” vacina para a COVID-19, sendo que absolutamente nada de científico (em termos de números de testes, metodologias, etc) acompanhou este anúncio? Por quê esta súbita renúncia à argumentação racional que vem mostrando-se homogênea em relação a todos os potenciais produtores de uma vacina? Por quê esta confiança cega? Será só pelo fato de Putin catalisar em si mesmo a grande oposição ao ocidente e “equilíbrio de forças”, trazendo para si a carga moral das “forças do bem”, na avaliação de seus idólatras?
Torço pelo sucesso da vacina russa, da inglesa, da chinesa, da norteamericana, torço por todas. Mas não me sinto motivado a qualquer admiração especial por Putin ou a qualquer esperança adicional à sua vacina. Se ele quer o lugar de “pioneiro”, que apresente ao mundo um produto falando a linguagem do mundo, ou seja, com dados científicos. Alguém poderia questionar (e com certeza irá!) se os dados de outros fabricantes produzem dados confiáveis. Eu até poderia dizer que não há santos habitando a Terra. Mas a linguagem científica é um método sistemático de dificultação de fraudes e personalismos. E é para isso que a ciência existe, para impedir o monopólio do conhecimento e o dogma. Anunciar um feito sem dados é fraude, ainda que o anunciado venha a se confirmar à frente. Uma coisa é o fato, outra coisa é querer transformar em fato aquilo que ainda não é fato. Por isso, quando tomo algumas condutas com certos pacientes, explico: “o que estou fazendo resulta da minha experiência positiva nesta situação e não há estudo científico sobre esta situação, mas não estou fazendo nada que, diante do conhecimento prévio, represente risco.”
Seria mais honesto por parte de Putin dizer: “temos uma vacina muito promissora diante dos testes fase 1 já realizados em 76 pessoas, e vamos registrá-la em nossa autoridade sanitária e diante da emergência, vamos assumir riscos”. Se assim o fizesse, certamente seria também alvo de desconfianças. Mas seu ato foi meramente político, e parte de nossa esquerda abraçou o anúncio como uma vitória do anti-imperialismo ou como derrota de Trump, Bolsonaro e outros atores, políticos ou não. 
Em outros termos, gente da esquerda não está percebendo o quanto estão sendo “bolsonarescos” ao comprar Putin do jeito que estão fazendo. Daí o meu temor em relação a Putin. Este grande jogador conseguiu bolsonarizar antibolsonaristas.
E como conclusão, e de modo reverencial, digo: a ciência russa não merecia isto.

O Preço da Democracia – Ouvir Osmar Terra

A democracia tem seu custo. Não é um sistema capaz de causar no indivíduo a sensação de plenitude ou perfeição. Até por que, não se destina a agradar indivíduos. Ela existe para que o grupo por ela regido sinta-se seguro e em paz, ou em condições de mantê-la. Assim, pobre daquele que depositar suas esperanças de plena realização pessoal dentro desse sistema. As chances são mínimas. Pode sim, ser feliz. Mas não na plenitude. Sempre algo estará incompleto. A parcela da diferença, da dissidência, a parcela do desejo conflitante com o diferente ou divergente que foi sacrificada em nome do pacto coletivo, da negociação.

A democracia é construída sobre vários pilares que são os sistemas de valores e de conhecimento. Entre eles, os sistemas autorizativos de ensino que delimitam as profissões. Você tem o diploma de engenheiro que te habilita a construir um edifício por que esta autorização foi regulada por lei e vinculada a um sistema de ensino no qual você deverá continuamente provar sua capacidade de entendimento, aprendizado e expertise nas múltiplas facetas do conhecimento que permitem que um edifício seja construído, que atenda as necessidades para as quais se destina e que, acima de tudo, fique em pé.

Um edifício – físico ou simbólico – só fica em pé quando seus sustentáculos e alicerces existam e funcionem exatamente como os termos os definem: sustentáculos e alicerces. No simbólico, essas estruturas representam todo o conhecimento adquirido, testado e universalizado de forma que jamais tenham falhado, seja fisicamente ou no plano teórico.

A democracia moderna parte de um pressuposto não explícito de que a ciência é a fonte do conhecimento aceitável para a maioria dos que vivem sob suas luzes. Assim, embora seja saudável e construtivo que o conhecimento seja desafiado permanentemente como forma até de torná-lo mais sólido, mas os desafios ao conhecimento científico só são válidos se conseguirem apresentar resultados experimentais e práticos diferentes a partir dos mesmos pressupostos e métodos ou a partir de matrizes teóricas de raiz comum. Não é possível, por exemplo, contestar a Relatividade de Einstein sem contestar junto o Eletromagnetismo de Maxwell. E como até hoje tudo funcionou exatamente como previram as duas teorias, para demolir este edifício haverá de voltar ainda mais atrás, destruindo os sistemas de Galileu, Newton e Copérnico.

Neste cenário, aparece Osmar Terra, que publicamente e sem qualquer pudor apresenta seu sistema próprio de “conhecimento” sobre epidemias e pandemias, exatamente como aquele insatisfeito que descrevi parágrafos acima, para o qual o conhecimento que não satisfaz as necessidades e desejos pessoais pode e deve ser contestado tendo como base apenas a concepção do indivíduo, que da forma mais deselegantemente sofismática constrói sua teoria sobre fragmentos do estabelecido, e com esses fragmentos tenta montar uma imagem como um quebra-cabeças impressionista, que visto à distância pode parecer um Van Gogh, mas na proximidade não passa de rabiscos desconexos e sem significado próprio.

As argumentações de Osmar Terra sobre o “fracasso” do isolamento social não resistem à primeira camada de análise lógica, física e matemática. Não obstante, ele as apresenta com toda a empáfia e fleugma própria de uma grande academia de ciência britânica. Chega a ser chocante e revoltante o fato de uma rede como a Globo dar voz a este senhor, ainda que em contraponto com o ex-ministro Mandetta e o ex-ministro Humberto Costa, claramente harmonizados com o sistema democrático de conhecimento.

O perigo é a percepção, por parte da audiência, de que o debate posto é um debate legítimo, e que “temos que ouvir todas as opiniões” em uma democracia. Aí, o grande sofisma. A ciência só admite opiniões sobre o que ainda não foi testado ou conhecido. Não se opina sobre a virologia, sobre fisiologia, sobre farmacologia ou anatomia. O que pode-se fazer é apresentar resultados obtidos sob rigor metodológico e técnico.

O brasileiro comum costuma valorizar pessoas “de opinião”, parece ser um valor em si mesmo para certos segmentos de nossa sociedade. E aí jaz o perigo. O diferente, o minoritário, ainda mais aquele se se acusa vítima do “marxismo cultural” e de uma abstrata “ameaça comunista” que seja lá o que for só é percebida como ameaça real, motivando então uma credibilidade quase imediata.

Da mesma forma que Osmar Terra quer “enterrar” o sistema de conhecimento da democracia sob o pretexto da liberdade de pensamento e expressão, Olavo de Carvalho e toda a turba de seguidores embarca na aventura de demolição da nossa sociedade, onde cada um de seus agentes cuida de destruir algum setor do conhecimento, seja na história, na sociologia, na filosofia, e mesmo na física, matemática, medicina, direito, entre outros.

E aqui, entramos no nebuloso terreno dos limites a serem estabelecidos ao que chamamos de liberdade de pensamento e expressão. Certamente, a experimentação vem mostrando que nossa democracia não resistiu ao terraplanismo. Até a presente quadra, o preço da democracia está se tornando demasiado elevado.

Ou a democracia se reforma no sentido de fortalecer suas bases, ou será destruída quando a maioria das pessoas se convencer de que não quer pagar este preço. Fica para os historiadores e os cientistas políticos a fundação de uma nova ciência para a democracia: a imunologia democrática. Como criar anticorpos e vacinas para criaturas como Osmar Terra e Olavo de Carvalho.

NN