A força de Olavo

O fenômeno Olavo (Olavo de Carvalho e seus seguidores) me intriga já a alguns anos. Recentemente, um artigo da escritora Elaine Brum publicado no El País, tendo como tema a ascensão de Bolsonaro como representante do homem mediano brasileiro ao poder inspirou-me a um paralelo que deixei delineado em um prefácio que escrevi para o livro “Mistérios da Lua”, de Antonio Farjani.
A história começa cedo, na minha adolescência e termina em um passado relativamente recente, quando eu tive acesso a um conjunto de informações científicas e históricas que preencheram gigantescas lacunas nos meus campos de conhecimento em uma ciência que muito prezo, a saber, a Física. Em um curtíssimo espaço de tempo, tive a percepção do quanto fui (e somos) maltratados na nossa formação escolar geral, que por muitos anos nos despeja quantidades irracionais de conhecimento tido como científico (e de fato, na maioria das vezes o é) mas desacompanhadas de qualquer ferramental que nos permita avaliar o peso e o valor desses conhecimentos. Uma determinada fórmula, uma ferramenta de cálculo, uma tabela periódica de elementos químicos, a imagem teórica de um átomo ou de um cromossomo, tudo isso, nos é apresentado como um simples fato, quando na realidade resultam muitas vezes de décadas de pesquisa ou da vida inteira de um(a) certo(a) cientista. O conhecimento é apresentado desprovido de humanidade, de conexão histórica, de contexto e quase sempre de significado e aplicabilidade prática.
A consequência de todo esse destrato com a ciência e com o conhecimento é que ele passa a ser tratado como banalidade, como peça de consumo, descartável, reciclável, inútil muitas vezes. Quantas vezes, como médico, observei esta confusão entre conhecimentos sólidos e baseados em fortíssimas evidências, e conhecimentos derivados até do folclore mais picaresco, trazidos às vezes à mesa em estado de equivalência.
Por outro lado, para aqueles que não frequentam a academia mas de alguma forma tem alguma sede de conhecimento, o confronto com o volume de informação que se produz a cada segundo no mundo pode produzir experiências frustrantes, trazendo ainda a sensação de distância, de exclusão dessas fontes de geração de conhecimento e uma total falta de controle e compreensão. Junte-se a isso alguns exageros e distorções do cientificismo, que chegam mesmo a desprezar qualquer conhecimento que não tenha sido obtido pelos métodos cartesianos, levando muitas pessoas a sentirem-se massacradas pela não militância acadêmica, esta, acessível a uma fração muito pequena da população.
Esses “excluídos” do mundo científico existem em todas os extratos sociais, inclusive entre aqueles com diploma superior sem pós-graduação sensu strictu (formação de pesquisador/docente). O que não faltam são médicos, engenheiros, advogados, historiadores, farmacêuticos, clérigos, etc., sem qualquer noção de filosofia da ciência e metodologia científica, e que habitam essas zonas de desconforto nos campos da intelectualidade.
Para esses excluídos, surge um “igual”, um homem sem formação acadêmica, mas inteligente, articulado, e certamente com muita cultura, mas com grande grau de oportunismo e capacidade de formar esse forte vínculo com seus “semelhantes”, entitulando-se autodidata, apresentando-se como bem sucedido. Com ideias bizarras e que se contrapõem a quase tudo e a quase todos, transforma-se em verdadeiro herói e mito, dando vazão a todas as fantasias que os aterrorizados exilados da ciência cultivam para suprir suas carências e necessidade de afirmação. Para estas pessoas, um homem com a capacidade de explorar habilmente as contradições de um mundo complexo e eventuais fragilidades da ciência é um verdadeiro sacerdote, que sabe explorar muito bem as questões de fé.
Assim, Olavo de Carvalho é sintoma de um mundo (ou país) onde o conhecimento mal transmitido e o ferramental insuficiente para compreendê-lo gera legiões de apavorados em busca de um porto seguro “intelectual”, que funcione ainda, nesta fúria contestatória, como uma espécie de “vingança” contra toda essa complexidade, aliando-se a isso a incapacidade que temos hoje de construir uma necessária crítica ao cartesianismo e ao racionalismo quase desumano que em certos territórios faz hoje da ciência algo próximo de religião e da academia, quase um “Vaticano”.
O tamanho do sintoma e suas nefastas consequências políticas só nos dá a dimensão da doença que habita nossa sociedade. Ela é sistêmica, adquiriu caráter contagioso e pode ainda tornar-se genética, transmitindo-se à próxima geração. Paradoxalmente, apenas a abordagem histórica e científica pode nos permitir observar que tudo isso é apenas repetição. Já ocorreu e tem um ciclo a percorrer. Paciência, é o que precisaremos para atravessar esta onda.