O olho que não quer ver
Diz o velho adágio que “o pior cego é o que não quer ver”. Pois é certo que por vezes temos a impressão de que o próprio olho, apenas um órgão no complexo sentido da visão, passa a ter vontade própria na rebelde perversidade da cegueira voluntária. É o que transpareceu na entrevista de ontem que o Ministro Luis Roberto Barroso, no programa Roda-Viva, da TV Cultura de São Paulo.
O Ministro Barroso constituiu-se, à época de sua indicação, como uma grande esperança para o setor progressista. Em entrevista pouco anterior à sua posse, descrevia o “Mensalão” como “um ponto fora da curva”, o que dava a impressão de ser uma visão crítica sobre os óbvios arroubos meramente moralistas do STF pelos quais a corte se conduziu, dando a impressão à sociedade de que aquilo que ali se julgava era algo realmente extraordinário e novo na política brasileira, nascida corrupta, crescida corrupta, e consolidada corrupta, sob as barbas longas e grisalhas no nosso sistema de justiça e dos órgãos fiscalizadores.
Se o Ministro exibe ao longo da entrevista um extenso cabedal filosófico pertencente ao mundo humanístico e iluminista, permeado de prudência, racionalidade, amor à ciência e devoção à democracia, escorrega pateticamente no “lavajatismo”, chegando a rezar o credo daquela classe média bem descrita pela filósofa Marilena Chauí, peça litúrgica que pretende nos levar a acreditar, nas suas próprias palavras, que “a eleição de 2018 foi uma resposta da sociedade que acreditou ser o certo o caminho do combate à corrupção”.
Nada pode ser mais contraditório e paradoxal do que em poucos minutos ouvir, da mesma pessoa, um discurso humanista e cientificista e o discurso raso do “o que aconteceu na Petrobrás foi crime”, como se a empresa fosse a sede das eventuais atividades criminosas e como se o tempo destas práticas fossem restritos aos governos do PT. Mas tudo pode piorar. O Ministro prossegue na sua exegese histórica afirmando que “a sociedade mudou depois da Lava-a-Jato, tornou-se menos leniente com a corrupção, e que os costumes mudaram”.
Temos então o tal olho que parece ter vontade própria de não querer ver, conectado a um cérebro que parece não ter processado adequadamente tudo o que o olho viu e ainda sem condições ou vontade de processar tudo aquilo que continua vendo.
Uma rápida passada de olhos no que está acontecendo hoje na gestão das OSS (Organizações Sociais de Saúde), aqueles monstrengos nascidos da maior fábrica de corrupção e corruptos da história recente da República, a Lei 9637/98, considerada constitucional pelo STF (já na presença do Min.Barroso, julgada 14 anos depois da instauração da ADI 1923) bastaria para se enxergar o contrário. A sociedade tornou-se ainda mais cega e leniente com a corrupção, e seus agentes ainda mais ousados, como se a crença na impunidade tivesse mesmo se ampliado aos múltiplos. Numerosos alertas foram feitos desde a sanção daquela lei, e não faltaram alertas de ministros mais antigos da corte (4 votos pela inconstitucionalidade) entre os quais o desesperado voto memorável do Min.Marco Aurélio Mello, que certamente já podia olhar a paisagem devastada pelo retrovisor, dado o alargado prazo entre a impetração da referida ação e seu julgamento.
Como ex-procurador do Estado do Rio de Janeiro, o direito de ignorar as práticas sistemáticas nas relações entre o público e privado que já levaram à prisão de 4 ex-governadores do RJ, de juízes, procuradores, de conselheiros do Tribunal de Contas do RJ, deveria ser algo não digno de ostentação, se não bastasse ainda o cenário do Estado de S.Paulo, onde quase nada se investiga e o pouco que se acha é arquivado sem prossecução criminal dos agentes em troca de acordos de indenização e leniência que poucas mães ofereceriam aos seus filhos.
Assim, a estreita visão espacial e temporal do Min.Barroso não combina com a amplitude e o estofo que exibe ao discorrer sobre as virtudes do iluminismo e do estado moderno, deixando-nos a árdua tarefa de buscar as raízes profundas do comportamento de um sistema ótico que na obsessão de formar uma imagem desejada perde-se nas aberrações cromáticas e geométricas próprias das lentes de má qualidade.
Estas contradições, embora humanas, não nos ajudarão a curar as doenças sistêmicas do Brasil. O Ministro Barroso frustrou-nos, definitivamente. Ingênuos fomos nós, que assistimos ao programa na esperança de algo realmente novo.