Entre as manias que eu tenho, uma é gostar de papel velho. Muito velho de preferência. Na trilha dos Cavalcanti, mania é coisa que a gente tem mas não sabe por quê. Já tentei entender. Será por causa do cheiro de passados, sempre a catar histórias que merecem relembramento? Talvez apego às consultas em dicionários e enciclopédias impressos, que quase nunca se restringiam ao vocábulo buscado e se desdobravam em novos territórios? Sei lá. As pilhas de recortes de jornal antigo recusam-se a morrer e, obrigado a elas, me trazem inspirações.
Dia desses, esbarrei em reportagem publicada durante a pandemia sobre o ator Mario Frias, repelente secretário de Cultura do governo Bolsonaro. Ele fez parte do Esquadrão da Morte da Cultura, completado pelo goebbelsiano Roberto Alvim, Regina Pra Frente Brasil Duarte e Sérgio Salve a Escravidão Camargo, o inacreditável presidente racista da Fundação Palmares. Camargo referia-se aos militantes do movimento negro como “escória maldita”. Foi o “negro da corte”, escalado para mascarar o caráter profundamente preconceituoso da malta que lhe deu o pequeno poder.
A reportagem menciona também o comportamento apoplético do atorzinho medíocre nas dependências da secretaria. Foi flagrado várias vezes aos gritos, ofendendo funcionários. O distinto andava armado pela Esplanada, reencarnando a palavra de ordem “Viva la muerte!” dos falangistas espanhóis em sua cruzada contra intelectuais e educadores. Como muitos de seus pares, Frias encarava a cultura como matéria de trabuco e chumbo grosso.
Por que exumo esta triste memória, que hoje parece tão longínqua? No início desta década, fomos abalroados por uma pandemia e um governo troglodita, que se orgulhava em dizer que veio para destruir. Os tempos eram tão ásperos, tão melancólicos, tão traumáticos, que muita gente boa proclamou que sairíamos do buraco para viver o extremo oposto. Acreditaram, alguns “previram”, que a espécie humana seria capaz de aprender com as hecatombes e rever conceitos, modos de vida, relacionamento com as diferenças. Ledo e ivo engano, como diria o Cony.
O que temos no cardápio de hoje? Na essência, nada mudou. O capitalismo triunfante, especialmente na variante financeira, continua a ser o que sempre foi: um sistema predatório, excludente, belicoso, arrogante. A riqueza produzida por centenas de milhões concentra-se nas mãos de poucos. Pela primeira vez, fruto da impiedosa destruição ambiental, há o risco concreto de extinção da espécie humana. O poder político é cada vez mais dependente de grupos econômicos monopolistas. O trabalho é cada vez mais exaustivo e repetitivo, às vezes fantasiado de “empreendedorismo”. Cresce o número de vítimas de doenças mentais, a solidão atinge níveis epidêmicos. Desaprendemos a ouvir os silêncios. A expectativa do aprendizado pelo desastre não se sustentou.
Um dos aspectos mais perversos desta imensa trituradora é a ilusão de progresso que mascara ambição, tramoias de bastidores e indiferença. Veja, por exemplo, o programa Reviver Centro, do Rio, apresentado por marqueteiros como recuperação da zona central da cidade, esvaziada principalmente pela pandemia. Do que se trata? Dois exemplos. O tradicional edifício A Noite, na praça Mauá, que sediou a rádio Nacional da era de ouro do rádio. Esvaziado, vai se transformar num cabeça de porco gourmet, com 477 apartamentos (!). Outro caso, agora na rua do Acre, envolve 153 apartamentos. Em nenhum deles os imóveis chegam a 50 metros quadrados (o mínimo não passa de 22).
Qual é a consequência destas iniciativas? Revitalizar uma região degradada? Não vejo como. A ideia é alugar os apartamentos em curtíssimas temporadas, estilo BNB. O resultado será criar não moradores, mas circunstantes, sem qualquer ligação orgânica com a área onde apenas estarão, sem ser. Moradores de verdade vivenciam o lugar onde moram, montando histórias, criando referências, fertilizando vizinhos. O centro tende a se transformar, pelo plano fantasioso, em dormitório sem personalidade, pastoso. Com grandes lucros para incorporadores, que terão sinal verde para, como contrapartida, explorar terrenos na zona sul.
Caberá às novas gerações decidir se naufraga junto com o imenso barco à deriva ou monta barricadas para resistir. Quem sabe lembrando uma bela passagem dos queridos Milton Nascimento e Ronaldo Bastos: Resistindo na boca da noite um gosto de sol.
Abraço. E coragem.