Ao Silvio Tendler, doce companheiro de utopias

Era outubro de 1938. O rádio reinava entre os veículos de comunicação. Um jovem de 23 anos ocupa o microfone e transmite, com requintes teatrais, o que parecia ser uma invasão de marcianos. Pânico em arquibancadas e gerais. Ouvintes apavorados pulando nos carros e acelerando para lugares ermos, fora do alcance dos monstrinhos imaginários. Os mais atrevidos improvisaram barricadas e, armados, esperaram pelo pior. Foi um salve-se quem puder que nem te conto.

Tudo não passava de radioteatro. O locutor-ator era Orson “Cidadão Kane” Welles, interpretando na CBS uma versão livre do clássico Guerra dos mundos, de H. G. Wells. Orson, enfant terrible de sua geração, não era calouro nas ondas do rádio. Pouco antes do célebre barata voa de ficção científica, deu voz e alma ao personagem central da série policial The Shadow, de grande sucesso. Em 1943, a rádio Nacional, a inigualável PRE-8 da minha infância, chupou a ideia e lançou O Sombra, uma espécie de teatro de mistério. Saint-Clair Lopes interpretava, com voz sinistra, o personagem central.

Ficou célebre o bordão que anunciava o programa no rádio a válvula que embalava a imaginação dos ouvintes. “Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe”. Sujeito de sorte. O mal não vem com copyright no berço. É camaleônico, multimídia, surpreendente. Um que aprendeu isso no lombo, literalmente, foi o Hitchcock.

No capítulo que dedicou a ele no livro Saudades do século XX (século, aliás, pródigo em males), Ruy Castro lembra o que o genial cineasta contou sobre sua infância: “Fui educado pelos padres. Com eles aprendi o medo”. Os jesuítas, escreve Ruy, o açoitavam com uma vara de guta-percha, tivesse cometido ou não o que eles classificavam como pecado. É bom lembrar que as crianças dificilmente saberão como se define um pecado e, no início do século passado, ultrapassar certas linhas dominadas pela religião podia resultar em chicotes, palmatórias e feridas psicológicas. Desconfio que mestre Alfred teria gostado, e se divertido, se as aves rebeldes da obra-prima Os pássaros tivessem arremetido contra os que tanto mal lhe causaram. Os sádicos provariam um pouco de seu veneno perverso.

Estou lendo o livro de reminiscências de uma autora argentina vanguardista do século passado. Em Cadernos da infância, Norah Lange menciona uma de suas quatro irmãs que, quando pequena, sofria de pilhérias humilhantes das manas. Nessas ocasiões, apelava para o que de mais subversivo seria numa tradicional família da época. Sem atinar com os motivos da maldade que a magoava, punha a culpa no Além e na Magia. Murmurava baixinho, mas peremptória: Deus é mau, Deus é mau… No lugar dela, acho que eu não diria diferente. Como é que uma entidade apresentada como poderosa, sábia e onipresente permitia tantas e tamanhas maldades, tantos e tamanhos sofrimentos? Onde estava o Sombra numa hora daquelas?

Os primeiros contatos do Menino com a religião também foram assustadores. Com a morte inesperada do Grande, foi escalado para dizer a oração dos mortos duas vezes por dia, durante ano inteiro. Sem pausas. Era possível não fazê-lo? Certamente, mas quem poderia assegurar que a transgressão não resultaria em pena severa? Quem saberia o que anda pela cabeça de um justiceiro tão implacável que levou à morte todos os primogênitos egípcios no episódio do Êxodo? Honestamente, nem o Sombra saberia traduzir tanta maldade. Pelo sim, pelo não, repeti 730 vezes a tal oração, cuja tradução do hebraico ninguém fez para mim. Sons de inconformismo e brutalidade. Medo, maldade, morte. Não há rima, nem solução.

Na sala de espera da fisioterapeuta, puxo conversa besta com uma mulher que também esperava atendimento. Depois de desfiar um novelo de identidades (“sou socialista, leio tudo sobre natureza, sou espiritualista”), garantiu fundamento científico para almas e espíritos. Bem, aí mexeu no meu calo de estimação. Disse-lhe que o Sol está em lento processo de extinção. Pode durar uns bilhões de anos, mas nossa estrela mater vai desaparecer e, com ela, todas as formas de vida na Terra. Neste momento fúnebre, para onde irão ectoplasmas e outras invisibilidades? Ela não se perturbou. Garantiu que “encarnaremos” em outros corpos celestes. Como não estaremos aqui para presenciar a metamorfose cósmica, posso apenas fazer um desejo: que o Sombra sobreviva nas futuras encarnações e ajude a entender o mal que se esconderá nos corações estelares.

Abraço. E coragem.