Vinícius de Moraes precisava de um pouco de solidão. Pegou o bonde e saltou numa rua de terra batida, com poucas casas e iluminação precária. Era a Ipanema dos anos 40 e o barulho do mar bailava uma valsa com a sombra trêmula e os pensamentos longínquos do poetinha.

Perto de um casarão, ouviu o som de um piano. Alguém o dedilhava com a hesitação dos principiantes. No silêncio da noite, os dó-ré-mi competiam com o canto dos grilos. O poeta sorriu e naquela paisagem quase rural vieram as primeiras palavras que comporiam A espantosa Ode a São Francisco de Assis. “Tudo é magia! Lembras-te? o silêncio fantástico das noites/E a alma bêbada de emoção? e nenhum pouso”.

A trilha sonora do Menino incluía poucos pianos. Famílias de classe média baixa sequer tinham espaço em casa para alojar o instrumento. Os tios paternos foram exceção. Arrumaram um jeito de acomodá-lo e deram-lhe o uso tradicional para as “moças prendadas”. Estas deveriam saber cozinhar, costurar, administrar a casa, sufocar a sexualidade e, como atração da companhia, tocar algum instrumento musical. Viravam, assim, bons partidos nos campeonatos amorosos. Minha prima aprendeu a tocá-lo e aproveitou para transgredir o destino. Certo, aprimorou o gosto musical, mas também tornou-se professora, conquistou independências.

Portátil, o acordeon sentou praça na minha casa. Não para mim, mas para a Irmã. Com método Mario Mascarenhas na veia, deu algumas sanfonadas, mas não foi muito longe com o instrumento de segunda mão comprado a duras penas. Como será que morrem os instrumentos? Não conheço criança alguma que tenha aulas de acordeon, fantasma de fole que ressuscita apenas em época de festas juninas.

Quem frequentou cinema nos anos 50 e 60 há de lembrar de Adelaide Chiozzo. Era acordeonista e atriz nas chanchadas da Atlântida. Depois da introdução com a imagem de um imenso chafariz, vinham histórias com roteiro padrão: mocinho com muita Glostora no cabelo (em geral o Cyll Farney, ótimo baterista e boa pinta profissional; seu nome real era Cilênio Dutra e Silva) flertava com mocinha virginal (Eliana Macedo como poule de dez) e abatia José Lewgoy, o vilão preferencial de sotaque agauchado e sempre ingênuo. No meio de tudo, correrias e trapalhadas de Oscarito, Grande Otelo, Ankito, Zé Trindade, os irmãos Ema e Walter D’Ávila, Dercy Gonçalves. Muitos números musicais, para os quais o Menino torcia o nariz. Com um pouco de sorte, apareciam vedetes que faziam a imaginação e certas partes da Baixa Eslobóvia estremecerem (Norma Bengell, Carmem Verônica, Íris Bruzzi, Renata Fronzi). Foram uma espécie de ensaio geral do cinema brasileiro, com grande aceitação popular. Adelaide Chiozzo e seu acordeon eram habitués da coisa toda.

Hoje, os sons das ruas cariocas podem tudo, menos inspirar poemas e respeitar solidões. Ande-se nos bairros e é quase certo que haverá invasão de latidos de cães neuróticos, praga que não para de crescer, ao lado de outros decibéis homicidas. O número destes animais, especialmente os nanicos agitados, multiplicou-se com a pandemia e os donos são indiferentes à barulheira dos totós. Às vezes desconfio que, numa brincadeira do tempo e da geografia, Mussorgsky compôs Uma Noite no Monte Calvo inspirado nos descontroles da bicharada carioca. Os mesmos que me despertam sentimentos inconfessáveis. Au, au, é uma ova!

Abraço. E coragem.