Tudo é e não é (João Guimarães Rosa)

Duas ou três vezes por ano exumo fragmentos de minhas raízes judaicas. Elas são parte de mim, que sou muitos. Prestes a começar o Ano Novo judaico, está na hora de convocar minhas memórias ligadas aos chamados Dias Terríveis, intervalo de 10 dias entre o Rosh Hashaná (início da celebração) e o Iom Quipur (clímax do processo). Como judeu não praticante, elas fogem dos manuais e ritos que dão sentido religioso à passagem do tempo.

Um bom começo é a cena final da (ótima) série Shtisel. O ambiente da história é uma comunidade de judeus ultraortodoxos, que interpretam o judaísmo de forma rígida e com regras arcaicas. As mulheres, por exemplo, são periféricas naquele mundo, condenadas apenas à procriação, subservientes à tirania masculina. Não podem mostrar seus cabelos em público (usam perucas, o que lhes dá uniformidade artificial) e seu vestuário é controlado (as noções estéticas são radicalmente pudicas).

Um jovem começa uma rebelião silenciosa através do desenho. Artista talentoso, reproduz figuras humanas, o que é vedado pelos mantras religiosos. A tensão entre tradição e mudança percorre toda a narrativa.

Bem, na cena final estão sentados à mesa o jovem rebelde e seus pai e tio. A conversa corre tranquila. O pai diz que encontrou o livro de um herege, o judeu polonês Isaac Bashevis Singer (prêmio Nobel de literatura em 1978). De forma surpreendente, ele concede que Singer acertou numa passagem. O herege, enfim, podia ter razão. Que passagem era essa? Os mortos não vão a lugar nenhum. Todo mundo tem um cemitério interior e os mortos estão aqui o tempo todo. Ato contínuo, surgem em cena todos os personagens que morreram durante a história, servindo-se de pão preto, pepino azedo, arenque e outras maravilhas que me fazem levitar. Todos conversam amigavelmente. Os mortos, afinal, não estão esquecidos.

Meu fragmento judaico do Ano Novo são as memórias dos meus mortos. Muitos. Cada um deles me conta mundos, olhares sobre a vida, maltratos e estratégias de estar na família e fora dos guetos materiais e psicológicos. Alguns, e aqui seriam algumas, me servem banquetes inesquecíveis, gostos e aromas identitários. Até hoje, são insuperáveis na memória gustativa os vareniques, kreplach, borsht, yuach, guefilte fish, licor caseiro de uva preta, tsholent, kneidlach, holodets, strudel. Das cozinhas modestas saíam muito mais do que pratos de comida. Saíam afetos e a névoa calma do passado. Na mesa do Rosh Hashaná, sentia estes carinhos.

Meus mortos falavam pouco e, por serem tão econômicos nas palavras, não pude conhecê-los como mereciam. Sobraram muitas lacunas e um desejo irrealizável de preenchê-las. Maurício Rosencoff, uruguaio, tupamaro nos anos de chumbo, prisioneiro de ditadores, escreveu um pequeno livro primoroso: As cartas que não chegaram. À maneira de Rosencoff, muitas mensagens familiares não vieram. Hoje, teria perguntas que bastem a lhes fazer. Os mortos, tal como as rosas, não falam. Então, vivo a inventar respostas. A imaginação no poder.

Costumo brincar quando me perguntam que presente quero ganhar no aniversário. Digo que quero uma coisa bem simples. Paz de espírito. Como até hoje ninguém encontrou loja com estoque suficiente do produto, vou mudar minha ambição e a data da prenda. Como desejo de Ano Novo, quero lucidez e curiosidade para continuar o que Carlos Drummond de Andrade escreveu para o amigo Cyro dos Anjos em carta de 5 de junho de 1953: “É uma felicidade para esse momento em que nos sentimos conduzidos à criação literária”. Criar com as palavras, brincar com elas, prosear mesmo que o interlocutor não esteja presente. Presente de Ano Novo que não vou encomendar a ninguém. Eu mesmo vou providenciar.

Nesta véspera de 5786, olho para ele como a eterna peleja que sintetizo com passagens de dois grandes artistas. Belchior poetizou que “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Milton Nascimento contra-atacou: “Sei que nada será como antes, amanhã”. Tradição e mudança. Inércia e ousadia. Velho e novo. Tevye e Perchik. Que cada um assuma seu papel no tablado e, à moda judaica, responda perguntas com novas e infinitas perguntas.

A gut ior. Shaná tová. Anyada buena i dulse.

Abraço. E coragem.