Entre críticas políticas e acusações infundadas de antissemitismo
A recente declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, classificando como genocídio a tragédia humanitária em Gaza, desencadeou uma onda de críticas e acusações de antissemitismo. Para parte da opinião pública, sobretudo em setores da comunidade judaica brasileira, o presidente teria ultrapassado os limites ao se posicionar de forma tão contundente contra o governo israelense.
No entanto, é fundamental contextualizar tais declarações. O debate sobre as ações de Israel em Gaza não é exclusivo do Brasil, tampouco restrito a líderes estrangeiros. Diversas vozes dentro do próprio Estado de Israel, incluindo ex-primeiros-ministros, generais, intelectuais e líderes religiosos, já expressaram críticas ainda mais duras à condução da política de Benjamin Netanyahu.
O filósofo religioso ortodoxo Yeshayahu Leibowitz, laureado com o Prêmio Israel por Contribuição Vital, já, nos anos 1990, denunciava a conduta dos colonos judeus nos territórios ocupados, comparando-a ao comportamento nazista e cunhando o termo “Yehudonazim” (“judeus nazistas”).
Em 2016, o então vice-chefe das Forças Armadas, hoje líder do Partido Democrático declarou, durante a cerimônia oficial do Dia do Holocausto, que a memória daquela tragédia deveria levar os israelenses a refletir sobre os processos sociais e políticos atuais, identificando neles ecos dos horrores vividos na Europa do século XX.
Ex-líderes políticos também não pouparam críticas. Ehud Barak afirmou que Netanyahu representa um perigo existencial para Israel e que tanto o líder do Hamas, Yahya Sinwar, quanto o ministro Itamar Ben-Gvir parecem atuar como cúmplices em uma estratégia de incitação mútua. Já Ehud Olmert classificou as ações de Israel em Gaza como “crimes de guerra”, acusando Netanyahu de prolongar o conflito por interesse pessoal.
Essas declarações, vindas de figuras centrais da política e da segurança israelenses, mostram que as críticas de Lula não são uma exceção isolada, nem configuram antissemitismo, mas parte de um debate muito mais amplo, existente dentro e fora de Israel.
De fato, mais de um milhão de israelenses têm saído às ruas, todos os sábados, para protestar contra a guerra, exigindo o fim da morte de civis inocentes em Gaza e denunciando a erosão da democracia no país. Não se trata de antissemitismo, mas de oposição a uma política governamental específica. O mesmo vale para Lula.
O papel da diáspora judaica
Entre os argumentos levantados contra a fala do presidente está a ideia de que “os judeus brasileiros não devem se envolver na política israelense”. Essa afirmação, porém, ignora a própria história do sionismo e a relação entre Israel e as comunidades judaicas fora de Israel.
Um dos princípios centrais do judaísmo é Kol Israel arevim zeh bazeh, todos os judeus são responsáveis uns pelos outros. Ao longo de todo o século XX, as comunidades judaicas desempenharam papel decisivo no apoio político, financeiro e moral ao Estado de Israel, incluindo mobilizações em tempos de guerra, programas de voluntariado e participação em congressos da Organização Sionista Mundial.
Nos últimos anos, porém, cresceu a percepção de que o apoio incondicional ao governo israelense precisa ser revisto. Em 2017, foi criado o movimento SISO (Save Israel, Stop the Occupation), que buscava engajar judeus da diáspora na pressão por um acordo de paz e pelo reconhecimento do Estado Palestino ao lado de Israel.
A deterioração política nos últimos três anos, marcada pela ascensão de partidos de extrema-direita, messiânicos e ultraortodoxos, agravou ainda mais a situação. Entre os problemas denunciados estão:
- o aumento da violência contra palestinos na Cisjordânia;
- o uso desproporcional da força militar em Gaza;
- a aprovação de leis discriminatórias contra cidadãos árabes israelenses;
- a tentativa de reforma judicial que ameaça o equilíbrio democrático do país.
Essas políticas não apenas enfraquecem Israel internamente, como também alimentam o antissemitismo global. Ignorar esse vínculo é fechar os olhos para a realidade.
Responsabilidade ética e histórica
Israel foi fundado como lar do povo judeu, herdeiro da tradição ética e moral dos Dez Mandamentos. O que se vê hoje, contudo, é a corrosão desses valores. Diante disso, todo judeu, em qualquer lugar do mundo, não só tem o direito, mas também o dever de se manifestar.
É necessário deixar claro que Israel não se confunde com seu governo e que os judeus não se confundem com Netanyahu. Cabe às comunidades judaicas no mundo protestar, elaborar manifestos e pressionar contra políticas que configuram crimes de guerra e atentados contra a democracia. Assim como já fazem as comunidades judaicas nos Estados Unidos e na Europa, é hora de a comunidade judaica brasileira demonstrar que a solidariedade ao povo judeu e a Israel não significa submissão a um governo específico.
Albert Einstein resumiu bem essa responsabilidade moral:
“O mundo não será destruído por aqueles que fazem o mal, mas por aqueles que observam sem fazer nada.”
— O terceiro Estado não será destruído pelo fundamentalismo judaico e messiânico, mas por aqueles que se calam ao ver a destruição do Estado judeu democrático.