O ano era 1962. Multidões saíram às ruas no Brasil para comemorar o bicampeonato mundial de futebol, no Chile. Parecia enterrado de vez o complexo de vira-lata, grudado na psique nacional com o Maracanazo. A Argélia derrotava o colonialismo francês, depois de uma guerra popular vitoriosa. O planeta estremecia com a chamada Crise dos Mísseis, episódio crítico da Guerra Fria gerado pelo inconformismo imperialista com a revolução cubana. Em Copacabana, um homem triste vê demolida a casa onde morou por 21 anos.

Carlos Drummond de Andrade, o itabirano que tinha o sentimento do mundo, comentaria mais tarde que vinte anos é um grande tempo, modela qualquer imagem. Sua casa, sua coleção de memórias e quereres, já não existia mais. Aquele pedacinho de terra na rua Joaquim Nabuco, tão seu, tão cheio de gavetas, poeiras, papeis amarrotados e fantasmas, estava para se transformar num desses prédios impessoais que desfiguram a cidade. Era a mancha do futuro distópico que se projetava.

Todos os dias encontro a estátua do poeta no vai-e-vem do calçadão atlântico. Lá está ele, no calmo bronze da eternidade, vendo as pedras portuguesas no caminho de tanta gente. Certa vez, lembrando da casa destruída, resolvi convidá-lo para prosear sobre perdas e danos, assunto pra mais de légua e meia. Dei-lhe um tapinha no ombro, ele espantou a preguiça metálica (com ar de nostalgia do ferro mineiro) e me acompanhou na caminhada rumo ao passado.

Carlos observou que nunca apreciou casas muito arrumadas. Chegou mesmo a escrever uma espécie de bula contra o excesso de zelo nos cômodos. Gostava de ver as cicatrizes do uso, marcas da vida que fluía entre assoalhos, azulejos, móveis, fogões. Lembrou-se do que escrevera: “Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente. Arrume sua casa todos os dias… Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela… E reconhecer nela o seu lugar”.

Disse-lhe que podia compreendê-lo. Minha casa antiga não foi demolida, mas dela sobraram estilhaços de vidas sem conta. Muitas cicatrizes. Foram almoços dominicais com mameligue (angu à moda judaica, cortado com barbante) e lanches de pão com schmaltz (banha de galinha endurecida). Foi a olhada furtiva no buraco de uma fechadura, recolhida como se fora o oitavo pecado capital. Foi a travessura imperdoada, que convocou chinelo e ira. O pau comeu na casa de Noca!

A casa antiga não tinha fronteira definida. Ninguém disputava territórios, refugiados não havia. Da varanda modesta saía um glorioso campo de pelada, verdugo dos pés descalços e testemunha de craques que nunca brotaram. Do campo derivava um teatro de operações guerreiras alimentadas por índios de carnaval e soldados de chumbo. De tudo aquilo sobrou a sensação de que o tempo não foi perdido. Quase sem mover os lábios, Carlos sussurrou: O tempo perdido certamente não existe. É o casarão vazio e condenado.

Chegamos ao número 81 da rua Joaquim Nabuco. Do nada, lembrei de uma velha marchinha de carnaval, marotice permitida em tempos caretas: Menina vai, com jeito vai, senão um dia a casa cai. É, aquela caiu mesmo. Para meu espanto, o poeta ressuscitou um velho desenho animado, genial criação da dupla Hanna & Barbera: Os Jetsons. O ambiente esterilizado, esteiras rolantes no lugar de calçadas, nenhum espaço comum de convivência. Era assim que sentia as sobras da cidade que lhe roubara a casa em nome de um progresso monetizado e sem poesia.

Voltamos ao banco de pedra onde Carlos assiste a eternidade. Antes de reassumir a pose perene, tem tempo de me dizer: Menino, não passamos de caracóis pretensiosos. Carregamos nossas casas nas costas e tentamos habitá-las para dar um sentido qualquer ao lusco-fusco da vida. Obrigado pela lembrança e pela conversa.

Olhei em volta. O sol, exuberância cósmica, brilhava na paisagem de Copacabana. Coagulou na memória uma velha canção dos anos 60, House of rising sun. A letra é triste, mas a melodia e o título são perfeitos para o encontro com o itabirano. Voltarei a ele, e às nossas casas, nas esquinas do tempo.

Abraço. E coragem.