Costumamos olhar para o planeta como se ele estivesse aí apenas para nos servir. Senhores da Vida e da Morte, todas as formas de existência deveriam prestar-nos vassalagem. Até mesmo na capacidade de brincar julgamo-nos inigualáveis. Como assim brincar? Sim, esse negócio de movimentar-se com prazer, sem pressão por sobrevivência ou estresse, alegre. Nada que exista na Natureza tem disso, orgulhamo-nos.

Devagar com o andor, alertam pesquisadores potiguares. Observando grupos de símios, que não eram miquinhos amestrados, perceberam comportamentos que são claramente brincantes. Macaquinhos irmãos brincam juntos, sem qualquer intenção de domínio. Quando a fêmea dá à luz apenas um filhote, outros pequerruchos o adotam, atraindo-o para a algazarra sem compromisso, criando vínculos pelo contato lúdico. Mesmo adultos podem ser observados, por exemplo, jogando pedras ou galhos para o alto, sem buscar qualquer recompensa. Não estamos sozinhos na arte do fazer nada sem culpa.

O brincar do Menino exigia, não raro, improviso e invenção. Com recursos poucos, brinquedos eram criados a partir de restos de madeira, metal, vidro. Times inteiros de futebol de botão nasciam a partir de casca de coco, botões de armarinho e fichas de ônibus. Caixas de fósforo marca Olho recheados de chumbo transformavam-se em Poy, Gilmar, Pompeia, Castilho, Yashin e Barbosa, guarda-valas invencíveis. Partes da estrutura de cadeiras velhas renasciam como potentes Winchester a caçar búfalos e mascarados. Meias recheadas com jornal velho adentravam o campinho de pelada a espantar Maracanazos, enfeitar dribles humilhantes e vencer campeonatos épicos. Rodinhas de bilha sustentavam bólidos construídos com tábuas de caixotes velhos e engenharia delirante. Varetas de bambu, papel colorido e linha branca número 10 desovavam pipas e, com elas lá no alto, o vento fazia mágica. Sensação passarinheira de pilotar o voo elegante.

A Natureza acolhia os folguedos. Quem nunca pisou em terra molhada, tomando banho de chuva, não sabe o que perdeu. Quem nunca sentiu o aroma de capim molhado tem grave falha na biografia. Por falar em capim, carrego na perna uma cicatriz-troféu. O Menino fazia uma expedição no matagal formado por capim navalha, planta ardilosa e com fio matador. Um passo em falso e, zás!, um corte respeitável. E desrespeitoso. Não me abati. Continuei naquele teatro, mimetizando Tarzan e Jim das Selvas. Sobrou a cicatriz, troféu das boas infâncias.

Nada disso é vivido pela geração de hoje, grudada em telas planas que convidam à preguiça. Verdade que campinhos de pelada já não há, terra para manusear e pisar a cidade comeu, espaço para soltar pipa disse adeus e foi-se embora. A infância sai atordoada, com prejuízos que só serão medidos mais adiante em adultos que terão memórias pobres de emoções importantes nesta fase da vida.

Minha neta veio passar um dia conosco. Nestas ocasiões, gosta de ir comigo a um sebo aqui perto. E lá fomos. Ela queria pesquisar livros da saga Harry Potter. Encontrou três, que lhe produziram um sorriso desbragado. Perguntei-lhe se já havia assistido os filmes baseados nos livros. Todos eles, respondeu de pronto. Ué, então pra quê ler as histórias que já conhece?, levantei a bola. Ah, nos filmes fico com dúvidas sobre muitas cenas e nos livros posso esclarecer tudo, respondeu convicta. O segredo, pois, está nas letras e no estímulo à imaginação que os livros desencadeiam. Uma pré-adolescente que já sabe das coisas e não se viciou na comida pronta das telas. Lindo ponto fora da curva.

Artistas populares gostam de ser chamados de brincantes. Quando trabalham, dizem que estão brincando. Manoel de Barros, o grande poeta pantaneiro, considerou-se a vida inteira um menino, que fabricou seus próprios brinquedos e garantiu que o quintal de casa era maior do que o mundo. No poema “O menino que carregava água na peneira”, primor de doçura, a mãe de um garoto cheio de “despropósitos” diz-lhe: “Meu filho, você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens. E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos”. Felizes os que conseguem carregar este espírito no mundo que confunde cara feia com seriedade. Abençoados os que brincam, improvisam, inventam, cultivam cicatrizes memoráveis, quebram bibelôs, não esquecem do chicote-queimado e consertam almas tristes.

Abraço. E coragem.