Autor: Charles Schaffer
No século XXI, a guerra nunca acontece apenas no campo de batalha. Ela se apresenta em dois palcos simultâneos.
O primeiro é o território físico envolvido por drones, bombas, foguetes, artilharia, tanques etc. O segundo é o espaço simbólico: vídeos, fotos nas redes sociais, Reels no Instagram, manifestações e números que disparam em manchetes antes mesmo de o pó baixar.
No caso da guerra na Faixa de Gaza, o Hamas aprendeu a jogar nos dois campos. Mas, se no campo militar tem sofrido derrotas avassaladoras, é no campo midiático que ele tem dado um show de organização e eficácia.
A cada ataque israelense, a máquina de comunicação do grupo terrorista entrega à imprensa um pacote pronto com números exatos de mortos e feridos (só civis, e separados por crianças, mulheres e idosos); imagens fortes, algumas reais, outras reaproveitadas de conflitos passados, e até mesmo produzidas com ajuda de inteligência artificial; e, ainda, declarações emocionais de civis, mães, prontas para virar lead jornalístico.
O efeito é imediato: a notícia corre antes mesmo da verificação. Os editores precisam alimentar o ciclo ininterrupto de uma imprensa que não se restringe mais ao papel jornal entregue na porta ao dia seguinte.
Quem disponibiliza o conteúdo rapidamente e de forma dramático conquista espaço, sai na frente. Jornalismo e jornalistas também têm seus algoritmos analógicos, não apenas as redes sociais.
E isto o Hamas faz com excelência. Do outro lado, temos uma Israel que quase sempre começa seu comunicado sempre com um frio e desinteressante “estamos investigando”.
É como no exemplo de Erving Goffman em A Representação do Eu na Vida Cotidiana: o juiz que demora a apitar a falta perde autoridade. Não há var, ao menos instantâneo, nos campos de batalha.
O público pode até ouvir depois que o lance foi limpo, mas a imagem já foi criada. Na guerra, como no teatro, o tempo de entrada no palco é tão importante quanto o texto da fala.
Segundo o Ministério da Saúde de Gaza que é o Hamas, mais de 60 mil palestinos, todos civis, nenhum combatente, teriam morrido desde outubro de 2023. Destes, crianças e mulheres somariam aproximadamente 70% das vítimas. Esses dados, mesmo questionados e demonstrados como inverídicos, viraram padrão em veículos como BBC, Al Jazeera e até relatórios da ONU.
Israel diz ter eliminado cerca de 20 mil combatentes do Hamas e que a proporção é de 1,4 civis mortos para cada terrorista. Fez isto de forma tímida nas redes sociais, com frieza técnica e de forma genérica. E não insiste, não reitera, não detalha. Israel raramente apresenta listas nominais, fotos ou contexto individual que confirmem essa conta. E quando o faz, faz dias ou semanas depois.
Essa distância entre números não é apenas disputa de estatística. É um conflito sobre a própria definição de verdade, algo que Jean Baudrillard já explorava ao dizer que a Guerra do Golfo de 1991 “não aconteceu” porque foi mediada por imagens e discursos que se sobrepuseram à realidade física.
O público internacional não vê cadáveres identificados como combatentes; vê imagens de crianças ensanguentadas.
A guerra de dados é desigual porque o Hamas oferece imagens que despertam empatia imediata, enquanto Israel oferece gráficos e investigações futuras.
Em Gaza, Israel domina militarmente, mas não midiaticamente. É o oposto de Mosul, onde a força dominante controlou também a narrativa. E a percepção da opinião pública, tal como apresentada pela mídia em geral, se molda mais pela velocidade e emoção do que pela verificação e precisão.
Para Pierre Bourdieu, quem tem o domínio da linguagem impõe o discurso. Teríamos assim, como categorias de percepção em Gaza, a “criança vítima” versus o “terrorista abatido”.
E o Hamas, ao classificar rapidamente, está impondo a sua versão antes que a outra parte consiga reagir.
Parafraseando um provérbio, “não basta estar certo, é preciso parecer estar certo”. E no momento certo.
A credibilidade, como no árbitro de futebol, depende da performance imediata. O Hamas entende que a primeira imagem e o primeiro número, verdadeiros ou não, são os que colam na mente.
Israel parece atuar como se isto não fosse importante, como se houvesse tempo para “corrigir o placar”. Isto, no teatro midiático, não acontece.
Ainda com Goffman, o uniforme do médico, o jaleco branco, a batina do padre — todos elementos que antecipam confiança.
O Hamas, para o público internacional, veste o jaleco da vítima: suas mensagens vêm revestidas de emoção, de tragédia, de um absoluto desamparo.
Israel veste o terno do advogado: racional, técnico, frio. Mas no tribunal da opinião pública, quem conta a história com lágrimas quase sempre vence.
E não adianta lamentar, colocar a culpa nos outros.
A responsabilidade por essa derrota no palco midiático não é da ONU, nem da BBC, nem de um suposto viés antissionista ou antissemita.
A responsabilidade é única e exclusiva de Israel, que, tendo todos os meios técnicos para disputar a narrativa, pela verdade dos fatos, e parece ter optado por não disputar.
A história da guerra se apresenta como um filme para a audiência, na guerra das imagens quem chegar primeiro leva.
E, neste filme, Israel tem permitido que o papel principal fique com seu inimigo.