“Toda mulher, ao saber que está grávida, leva a mão à garganta: ela sabe que dará à luz um ser que seguirá forçosamente o caminho de Cristo, caindo na sua via muitas vezes sob o peso da cruz. Não há como escapar.” (Clarice Lispector)
Não sei quando me dei conta de que existia. Tinha sensações estranhas que invariavelmente chegavam na pergunta: o que estou fazendo aqui??? Fui enganada por adultos, que me disseram que ia passar, mas nada. Continuo na mais profunda ignorância. Sei que a vida me dava agonia. Nervos, cabelos, membros. Medo de pesadelos e por isso a insônia crônica. Cachorros uivando. A mulher de cabelos escorridos é a minha mãe. O homem de óculos e cigarro meu pai. Eu não sei precisar, tudo se confunde. Fui morena e baixinha como qualquer polinésia. Mas existir… Eu me estranhava inteira. Escamoteava esses pensamentos porque pode não parecer, mas sou uma cartesiana enrustida. Tenho um pai mórbido. Mas até então nunca tinha visto um morto. Foi quando minha cachorrinha teve filhotes. Ela ficava brava, ninguém podia chegar perto da cria. Mas estamos falando da Céu, né? Claro que fui escondida ver os cachorros. Um estava afastado dos outros que mamavam. Tentei botá-lo em pé. Nada. Não se movia. E ali entendi que estar morto é só ser algo. Não coisa viva. Chorei, chamei meu pai, ele me disse que o cachorro tinha virado estrela, enquanto eu enfiava minhas pernas nas grades das janelas e olhava o céu. Esse papo de estrela nunca colou comigo. Religião nunca colou comigo. A única transcendência que eu sentia, não sei dizer o porquê, era o retrato do menino ruivo onipresente espalhado pelos muros da cidade, o Carlinhos. Eu já era míope, confundi várias vezes com o Ferrugem. Não posso dizer que minha família não era alegre. Eu que era deslocada. Aconteciam coisas sinistras. Meu bisavô teve um infarto fulminante, meu pai chegou da escola e teve a notícia. Precisava avisar um grande amigo do meu bisavô, professor. Pegou a bicicleta e lá foi o menino magrelo, cujas orelhas se repetiram na minha filha, avisar da morte repentina. O professor estava dando milho às galinhas. E assim continuou. Olhou gravemente para aquele moleque de 9 anos e disse: “É meu filho, nós somos os deus das galinhas e as galinhas de Deus.” Essa história era contada sempre com uma certa gravidade. E eu só pensava que deus havia abandonado as galinhas há muito tempo. Esquisita. Estranha. Princesa Soraia dos olhos tristes. E por aí vai… Não me venham falar de infância idílica. Eu me virava para sobreviver na selva. Minha distração era driblar os pensamentos para escamotear essa dor de existir, era ler. Tudo. Xaropadas como Sabrina, Julia e Bianca a O Estrangeiro, de Camus. Adolescentes deveriam ser proibidos de ler esse livro. Esse daí decretou o fim da minha fase infantil. Meus bisavós sofreram muito. Perderam tragicamente dois filhos. Um, às vésperas do casamento, o ônibus que estava indo para o trabalho colidiu com um trem, tinha apenas 26 anos. O outro teve uma apendicite supurada na adolescência, aos 15 anos. Minha avó perdeu uma filha de disenteria amebiana, com um ano de idade, de uma hora para a outra. O que me comovia era que eles não se deixavam abater. A morte era trágica e triste, recebia toda a solenidade que se exigia, mas corria como num vilarejo. Acho que foi aí que percebi que conversar com quem tá no topo da idade poderia me ajudar em alguma coisa. Não que esperasse grandes respostas às minhas questões, não precisava ser nenhuma gênia pra ver que existe o que ninguém sabe. Já falei sobre minha infância estranha e aqui repito. Era uma vida que não tinha hora pra dormir nas férias, que podíamos participar das serestas e dar golinhos nas cervejas, que andávamos sem cinto de segurança no bagageiro do carro. Conheci pracinhas da FEB, conheci gente que padeceu no campo de concentração, conheci uma seita chamada Meninos de Deus que toda vez que via nas ruas tinha ímpetos de me esconder. Mais tarde soube que o líder era pedófilo e obrigava aqueles adolescentes bonitos, com seus uniformes azuis, a se prostituírem prá ele. Só os tolos desprezam a primeira impressão. Meu maior medo: o Minotauro do Sítio do Pica-Pau Amarelo… Animadamente mostrei para Alice e ela acabou com a minha infância ao vê-lo no youtube e falar sem dó: “Mãe, você tinha medo de um gordinho de cueca com máscara de boi que mugia?” Nunca mais fui a mesma. Não se pode destruir o medo alheio assim, sorrateiramente, sem avisar. Mas havia as histórias. Sim, havia as histórias. E tô aqui vendo esse corona vírus, quarentena e não tinha como não lembrar de duas pessoas. Uma, Nelson Rodrigues. Narrando o carnaval que se seguiu à espanhola na Aldeia Campista. Uma história trágica como sói ser as rodriguianas, que envolve uma mãe velha de mulher bonita, uma pessegada, uma garota que apanhava e um olho cego. A outra da minha avó. Criança, subia num caixotinho e assistia pela janela o espetáculo pavoroso dos corpos sendo empilhados numa carroça. Não tinha mais coveiro. O mundo foi tragado. Meu bisavô pegou, mas se salvou. Muitos não tiveram a mesma sorte. Talvez a proximidade com a morte. Talvez a raiz camponesa, de quem sabe que o chão é seu, sempre reparei minha avó e as irmãs nos enterros das famílias. Firmes, plantadas, com seus tornozelos em riste sem titubear. Aquilo sempre me remeteu algo ancestral, nós, as mulheres e a terra. Anos se passaram. Minha avó já falecida. Apenas uma irmã dela viva. E lá estávamos nós. Em 2013 Enterrando meu sobrinho de 3 anos que se afogou na piscina. Dor sem tamanho. A mãe da criança dopada. Eu em negação. Até a hora que uma da nossa geração falou: “Vamos ficar em volta dele”. E cada uma das primas fincou seus pés no chão. Nascemos sabendo aquilo. Existem coisas tão maiores que não são ensinadas.
Céu Bauler