Samba Perdido – Capítulo 29

Capítulo 29

 

“Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes acesas agora."

Tempo Perdido - Renato Russo


Acordamos e percebemos meio sem jeito que os gaúchos tinham voltado e tinham deixado a gente ficar com o quarto. Era cedo, todos estavam dormindo, digerindo a noitada boa. Tomando cuidado para não fazer barulho, continuamos onde tínhamos parado na noite anterior.

Revitalizados, saímos em silêncio e fomos para praia curtir a manhã. Só que na luz do dia, não rolou a felicidade prometida. Quando começamos a nos comunicar por meio de palavras,  descobrimos que éramos incompatíveis. Para ela, eu era um garoto mimado da Zona Sul do Rio de Janeiro, perdido no meio de um exercício de autoconhecimento. Para mim ela era uma menina desinteressante de uma cidadezinha próxima, preocupada em voltar logo para casa porque sua mãe a queria na loja da família naquela tarde. Quando nos despedimos, sabíamos que o relacionamento tinha durado apenas aquela noite. No fim de semana seguinte, a vi andando de mãos dadas com um dos gaúchos. Não me importei. O momento havia sido meu, embora a garota não fosse mais.

Por sua vez, Pedro tinha deixado de ser de muitas e tinha arrumado uma namorada. Carla era uma lourona de farmácia de trinta e muitos anos e marchand no Rio. Junto com a entusiasmo inicial havia o encantamento com a turma dela, possíveis novos companheiros de viagem, que estavam subindo a costa nordestina em caravana. Era um pessoal mais velho, descolado, que trabalhava em jornalismo, publicidade e televisão.

Sem ter como me aproximar deles, sem muito saco para as gauchices dos gaúchos e cansado dos joguetes do Pedro, passei a andar com os músicos e a malucada do artesanato. Mas logo que percebi, tinha entrado num lugar estranho. Por conta de um elitismo que rolava mesmo entre os mochileiros, aquele grupo era tido como o letárgico “clube dos hippies perdedores”. Se tornar parte dele era como ser transferido para a área dos detentos difíceis num sistema penitenciário invisível.

A verdade é que quanto melhor conhecia a galera do circuito de mochileiros no Nordeste, mais percebia que ali não tinha nada de alternativo. Fora os discípulos teleguiados do Rajneesh, ninguém tinha nada a dizer. O negócio era tirar onda. A única diferença entre eles e os caretas de sempre, era a sua crença de que seus cortes de cabelo diferentes e suas roupas transadas os faziam melhores e mais legais do que o resto. Esses eram os  anos oitenta, o início da era do individualismo exacerbado.

De repente isolado num território estranho, mesmo que maravilhoso, me vi inundado por um senso de estranhamento. Havia a contradição de que era para estar contente, aproveitando os melhores dias de minha vida talvez no melhor país do mundo para isso. Do lado de fora havia sol e curtição, mas do lado de dentro a coisa era muito diferente. A tempestade econômica, a carência afetiva, o isolamento, o beco existencial sem saída e o egoísmo como a matéria prima do tecido social faziam chover e às vezes trovejar.

Numa tarde, Pedro e eu nos sentamos na praia para conversar. Ele contou que a coisa estava indo bem entre ele e a Carla mas que não tinha lugar para ele na caravana. Sabiamos que cada um estava procurando coisas diferentes naquela viagem, mas chegamos à conclusão de que apesar daquilo estávamos juntos e seguiríamos com o plano original. Eu iria ter que aturar um hippie de araque se esforçando para parecer descolado para conseguir o que queria, enquanto ele iria ter que engolir com um cara que se julgava um hippie de verdade, mas que havia perdido a noção da realidade.

Dando sequência à aventura, depois de Canoa Quebrada iríamos começar a descer de volta para casa. O Carnaval estava chegando e íamos passá-lo em Olinda. A conversa fez a amizade voltar e depois das brincadeiras de sempre ficamos sem poder esperar pela hora de pular o frevo nas ruas coloniais.

*

Antes de voltar para a terra do melhor carnaval da minha vida, resolvemos parar por alguns dias em Natal. Três dias depois, lá estávamos nós na estrada de novo, mais bronzeados que nunca e de alma lavada depois de um mês e meio sob o sol do Nordeste. Foi muito bom sentir mais uma vez o vento e a liberdade dos caminhões na rodovia.

Natal se mostrou tranquila e maravilhosa. Sendo o ponto mais próximo entre a África e a América do Sul, sua localização era estratégica. A cidade tinha servido como base para navios e aviões americanos durante a segunda Guerra Mundial e ainda havia uma forte presença militar. Talvez por isso foi a cidade mais ordeira que visitamos. O albergue para estudantes foi também o melhor em que ficamos, com quartos modernos, limpos e amplos. Com suas ruas calmas, Natal mostrava o que o Brasil poderia ter sido caso “Ordem e Progresso”, o lema positivista da bandeira brasileira, tivesse sido seguido.

Após duas noites na Casa dos Estudantes fomos acampar na praia da Redinha, na época um lugar quase selvagem do outro lado do rio Potenji, que bordeia a cidade. A areia branca e fina de suas dunas enormes mais tarde faria de lá um dos melhores lugares do mundo para a prática do kitesurf e um cenário ideal para a gravação de vários comerciais de praia, nacionais e internacionais. Por ficar no ponto onde o continente Sul Americano se curva para o oeste, o vento na região era forte e as ondas eram de longe as melhores que vimos na costa nordestina. O problema era que a água era infestada de caravelas, um tipo de água-viva cujos tentáculos causavam uma ardência de dar febre; daí apesar de estarmos doidos para pegar jacaré preferimos ficar na praia bebendo cerveja.

Por causa de sua aura militar, Natal não era bem cotada no circuito mochileiro. Este porém ficou evidente na praia da Redinha onde fora os pescadores nativos e algumas famílias da capital que tinham casas de veraneio ali, não tinha mais ninguém. Apesar de lindíssimo, o agito do lugar era inexistente. De qualquer forma, a experiência deu uma ideia de como deve ter sido explorar a costa Nordestina em gerações anteriores.

*

Não aguentamos a calmaria e voltamos no dia seguinte. O bom daquela pausa foi que caiu como uma férias das férias. Quase não tínhamos se visto em Canoa Quebrada e aproveitamos para colocar as coisas em dia. Entre outros assuntos falamos sobre dinheiro e, para nossa surpresa, descobrimos que havíamos gastado bem menos do que o previsto. Como prêmio pela frugalidade, resolvemos nos dar de presente uma passagem de ônibus até o Recife.

Na manhã seguinte, num raro dia nublado acordei cedo e me ofereci para ir à rodoviária comprar as passagens. Como viajaríamos naquela mesma noite, levei a mochila para já deixá-la no guarda-volumes.

Saí pelas ruas semi desertas achando graça da sensação que causava pelo visual. Na rodoviária, na hora de pagar as passagens a atendente disse que não dava para comprar o bilhete do Pedro porque não estava com sua identidade. Irritado, insisti e ela acabou me aconselhando a tentar pegar uma autorização na delegacia de polícia da estação. Fui lá mas a porta estava trancada. Sem ter nada programado para aquele dia, fiquei esperando alguém chegar. Eram umas onze da manhã e por volta das onze e meia um homem magricelo, de barba por fazer e cabelos grisalhos de uns cinquenta e poucos anos apareceu.

Enquanto tirava as chaves do bolso, perguntei: “O senhor é o delegado da estação?”

O cara me olhou de cima a baixo e respondeu meio seco e estranho. “Sou sim, mas se o senhor quiser falar comigo vai ter que ser lá dentro.”

Pelo bafo dava para sentir que estava bêbado, a ponto de se esforçar para colocar a chave na fechadura. Depois de alguns segundos embaraçosos, finalmente conseguimos entrar. Antes que começasse a explicar o motivo de estar ali, ele me mandou colocar minha mochila na mesa e abrir.

“Abre esta merda agora.”

Sem acreditar no que ouvi e querendo sair logo com a autorização do Pedro concordei.

Enquanto o cara foi jogando as coisas no chão falei serenamente: “Depois que o senhor acabar a revista, posso pedir uma autorização de viagem para o meu amigo? Estou sem a carteira de identidade dele. Por isso vim aqui.”

“Autorização é o caralho, maconheiro!” O cara me empurrou de lado e começou a tirar as coisas, claro sem encontrar nada. Infelizmente – mas felizmente para a ocasião – o veneno de Maceió tinha acabado em Canoa Quebrada. Frustado e com um monte de roupa suja espalhada na mesa e no chão, o cara não desistiu.

“Cadê a porra da maconha?!”

“Eu não fumo isso. Pode procurar à vontade, o senhor não vai achar nada.”

“Ah, e isso daqui?” Ele tirou duas conchas enormes que tinha achado na praia e que ia dar de presente  para minha mãe e para a Dona Isabel.

“Isso aí são conchas.” Já me segurando para não ridicularizar o cara.

Ele deu uma sacudida para ver se caia alguma coisa de dentro delas, mas nem um barulhinho.

“Agora a gente pode falar sobre a autorização de viagem?”

“Aqui não tem autorização de viagem nenhuma.” Ele me deu um olhar torto e desafiador. “Essas conchas estão apreendidas. Vão ficar aqui comigo!”

“Como assim? Aprendidas porquê? O senhor tirou elas da minha mochila, elas são minhas!”

O cara não gostou e começou a tremer de raiva. Aflito, abriu a gaveta para pegar uma coisa. Pensei que fosse minha a autorização, mas não, ele tirou um martelo e colocou a parte de metal próxima à minha orelha.

“Tu é um veado frouxo, ouviu? Eu falei que essas duas conchas são minhas. São ou não são !? ”

Com a adrenalina já jorrando, levantei o tom: “Meu irmão, se acontecer alguma coisa comigo nessa merda, tu tá fodido, meu pai é jornalista da Globo, já ouviu falar? Ele fode você e a polícia inteira dessa rodoviária. E tu vai preso ou no olho da rua! Abaixa essa porra agora e me devolve as conchas, entendeu?”

O cara comprou meu blefe e engolindo a raiva, colocou o martelo de volta na gaveta.

Levantei, coloquei minhas tralhas e as conchas de volta e saí sem nem perguntar como que aquilo ia ficar. Voltei para o guiche para perguntar e a moça era outra. Acabou que a polícia não podia dar a autorização que eu precisava, a primeira menina tinha mentido.

Comprei a minha passagem, voltei para o albergue e deixei que Pedro resolvesse o problema de sua passagem sozinho. Viajamos na mesma noite e chegamos em Recife dois dias antes do Carnaval. Quando descemos do ônibus, do nada encontramos o Mineiro, um amigo de Salvador. Foi uma feliz coincidência porque não tínhamos lugar para ficar e ele estava doido atrás de alguém para rachar o quarto que tinha conseguido em Olinda, algo que todo mundo dizia que era impossível durante aquela época do ano. Quando chegamos, percebemos o tamanho da sorte que demos; nosso quartel general seria a duas quadras da Praça do Carmo, o centro nevrálgico da folia.

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Samba Perdido – Capítulo 26 – parte 01

Capítulo 26

 

“No Farol da Barra, o encontro é pouco
A conversa é curta, tudo é tão rápido como
se furta”

Farol da Barra - Novos Baianos

 

A próxima parada era Salvador onde iríamos ficar na casa de uma amiga com quem tinha tido um caso em Mauá. Rochele era mignon e uma gata, seu jeito inocente e sua voz suave escondia um lado selvagem e irresistível. O tom marrom da sua pele e suas feições possivelmente árabes a faziam parecer indiana. Por estar na moda, ela realçava o look usando vestidos soltos e batas e deixava seus cabelos escuros, longos e encaracolados nas pontas fazerem o resto. 

Rochele estava hospedada num apartamento perto do Farol da Barra, a Ipanema de Salvador . O bairro era bonito e tinha uma das praias mais bem frequentadas de cidade, o Porto da Barra, o posto nove de lá. Tambem tinha o Farol com vista para a lindíssima e enorme Baía de Todos os Santos. A rapaziada mais antenada sempre ia ali para curtir o pôr do sol.  Em frente, havia um espaço livre e grande onde, durante o verão havia shows carnavalescos gratuitos que atraiam multidões. Aquela maravilha ficava a um quarteirão de onde a gente ia ficar. 

O endereço perfeito não era o único motivo de estarmos ansiosos para chegar depois de um dia inteiro pulando de um caminhão em caminhão. Além de nos vermos livres dos mosquitos, teríamos um banheiro decente, camas de verdade e ar condicionado. Para mim, ainda havia a possibilidade de reviver o caso e passar noites em companhia feminina para aliviar a seca de Trancoso. 

Só que quando batemos na porta, não foi a a Rochele quem atendeu, foi um cara com sotaque francês e jeito de almofadinha. 

 “Sim, posso ajudarr em alguma coisa?”

Não acreditei, tinha conferido o endereço várias vezes com ela antes de sair do Rio e nenhum francês havia sido mencionado.  Por outro lado, a conhecia o suficiente bem para saber que de jeito nenhum estaria morando com um estrangeiro em Salvador.

Decepcionado respondi: “Desculpa, devo ter batido na porta errada.” 

Quando o cara estava para fechar a porta, coçei a cabeça e antes de aceitar que a danada tinha me dado o endereço errado de propósito, por via das dúvidas, perguntei: “Por acaso você sabe se no prédio tem uma garota carioca com cara de indiana, baixinha? O nome dela é Rochele. Talvez seja uma vizinha.”

“Ah, a Rochelle!” Ele me corrigiu com o sotaque “certo”. “Si, ela é a irrmã da Bebelle, minha namorrada, está morrando com a gente.” 

Ele abriu a porta um pouco mais, mediu a gente dos pés à cabeça e sem parecer muito impressionado, perguntou: “Quem devo anunciarr?”

Me segurando para não corrigir a pronúncia de Bebel, respondi: “Rique, um amigo do Rio, este é Pedro meu camarada de carona.”

“Um momento.” 

Ele fechou a porta na nossa cara sem cerimônia. No corredor, a gente ficou olhando um para a cara do outro sem saber se caía na gargalhada ou se chorava. Nem foi preciso dizer um para o outro que a gente tinha achado o cara babaca. Digerindo o ocorrido em silêncio ouvimos o francês bater numa porta. “Rochelle!! Teim uns carras do Rio lá forra parra falarr com você.”

 Demorou um pouco, a porta se abriu e a gente ouviu a Rochele responder com voz de sono: “Quem era?”

“Um deles falou que erra teu amigo, Rique.”

A gente ouviu os passos dela chegando e quando abriu porta lá estava ela com o cabelo desarrumado pela soneca me dando um sorriso amarelo. Ela perguntou para o francês, Alain, se a gente podia entrar.

“Clarro, clarro, por favorr, podeim entrrar.” 

O arcondicionado na sala estava uma delícia e fazia tempo que a gente não sentava num sofá tão confortável. Depois de reparar na decoração afro-baiana de bom gosto e voltamos a prestar atenção no Alain. “A Bebel foi darr uma volta com umas amigas. Posso oferecerr uma cerrveja? Vinho?”

A cerveja não dissipou o desconforto. Deu para reparar direto que não tinha lugar para a gente ali. Era um sala e dois quartos apertadíssimo. Dava para ver que o quarto da Rochele era mínimo. Mesmo se estivesse sozinho, duvido muito que ele tivesse liberado, ainda mais que não teria motivo para tal. Assim que ficou claro o motivo da nossa visita, ele falou na hora que não dava. Ele tinha razão, o apartamento era organizadinho demais para servir de base para dois malucos. Tinha outra coisa, pelo menos eu não estava com a menor vontade de encarar a frescurada que devia rolar ali. Contudo, nosso anfitrião se revelou mais gente boa que a gente esperava quando percebeu o que a cagada da irmã da namorada.

“Se vocês quiserrem, non vejo prroblema em vocês deixarrem as coisas aqui.” Vendo a decepção ainda estampada nas nossas caras, foi mais adiante. “Podem até vir tomarr banho e cozinharr. Mas vocês eston vendo; o aparrtamento é pequeno demais parra cinco pessoas. Desculpe.”

Depois de um papo estranho no qual poupamos a Rochelle, que não parecia muito arrependida, aceitamos deixar as coisas ali e agradecemos. Depois, descemos com a barraca para ver onde a gente podia acampar ali por perto. Exploramos a área e ficou claro que a única maneira para continuar naquele lugar privilegiado, perto da moleza de ter um chuveiro, uma latrina limpa e um lugar para cozinhar, era dormir no palco. 

Por ser o auge do verão, havia shows quase todas as noites ali, o que significava que teríamos que esperar até que todos fossem embora para subir no palco e passar a noite ali. 

Foi isso que fizemos.  Naquela primeira noite, por volta das duas da manhã subimos lá, desenrolamos os sacos de dormir no piso de madeira e , cansados da viagem, caímos no sono. Para nossa apreensão descobrimos horas mais tarde que não estávamos sós; havia uns mendigos dormindo embaixo do palco. Nunca interagimos, a não ser numa manhã quando um deles, visivelmente de ressaca, saiu para praticar a rotina de ginástica mais esdrúxula que tínhamos visto na vida.

A solução acabou sendo melhor que o esperado. O lugar se revelou seguro, retivemos as mordomias do apartamento do Alain e continuamos num dos melhores pontos da cidade. Talvez por não ter conseguido ficar zangado com a Rochelle, tivemos uma recaída e quebrei o jejum que estava me incomodando. Além disso, as pessoas achavam graça quando a gente explicava onde estava dormindo o que ajudava a quebrar o gelo nas conversas. 

*

No segundo dia saímos para explorar a cidade.

No início dos anos 1980 Salvador ainda estava alguns anos atrás do Rio. Mesmo assim, os efeitos nefastos a nova década já estavam começando a aparecer. A era do trio elétrico estava ficando obsoleta e novos gêneros de músicas de carnaval estavam aparecendo. Nos bairros populares, o reggae havia tocado os ouvidos, corações e mentes da comunidade culturalmente dominante na cidade: a afrodescendente. Nela, uma nova forma nova e adaptada de se tocar o ritmo jamaicano tinha surgido misturando o samba e o reggae, o samba-reggae. Esse genero dominava a cidade e onde quer que passassemos, quiosques, vendas, carrinhos ambulantes e pessoas comuns tocavam essa música alto para que todos pudessem ouvir, seja em rádios ou em toca-fitas .

O maior expoente do gênero era o Olodum, uma banda do Pelourinho, o bairro mais antigo de todo o país e um ícone da cultura afro-brasileira. No passado, as autoridades usavam sua praça central para punir publicamente escravisados mal comportados, fugidos ou revoltosos. Existem relatos de homens recebendo mais de cem chibatadas, molhando o poste de sangue e suor e depois tendo sal esfregado em suas feridas. Ao contrario do que acontecia em outras cidades pelo mundo onde os casarões das suas partes históricas eram habitados por cidadãos abastados, agora, os descendentes daqueles mesmos escravos moravam nas casas dos antigos opressores. A Unesco tinha inclusive tombado a área como patrimônio histórico mundial em 1985. O Olodum galvanizava essa herança em forma de música com orgulho das suas raíses africanas. Seu som reverberava por toda Salvador. Mais tarde, o a banda ganharia atenção internacional ao gravar com Paul Simon e Michael Jackson.

Por outro lado havia a novidade musical das bandas mais voltadas para o público branco e bem de vida que usavam teclados eletrônicos, caminhões futurísticos, aparelhagem de ultima geração e dançarinos performáticos numa tentativa de reinventar o trio elétrico. Elas eram bregas até dizer chega, tocando uma mistura facilmente digerível de salsa, soca e outros ritmos caribenhos. Fiquei aliviado ao saber que o Trio Elétrico de Dodô e Osmar e blocos afros e de afoxé como o Ilê Aye e o Filhos de Gandhi ainda estivessem ativos. Tivemos a oportunidade de vê-los juntamente com o Olodum e outros blocos tradicionais em eventos pré-Carnavalescos. Só que nenhum deles chegava aos pés do encontro dos trios que tinha presenciado quando fui com o Maurício.

*

 

Samba Perdido – Capítulo 24 – parte 01

Capítulo 24

 

“...  E passo aos olhos nus,
Ou vestidos de luneta
Passado, presente, particípio
Sendo o mistério do paneta”

Novos Baianos - Mistério do Planeta

 

No final do primeiro ano da faculdade, Pedro e eu já éramos melhores amigos e tidos como a malandragem da sala. Com a chegada do verão, deteminados a ser mais fortes que a tempestade, resolvemos dar uma volta pelo Nordeste. O orçamento desta vez seria muito mais curto devido às condições. Não havia feito nada de extraordinário naquele ano, os negócios estavam difíceis e, farto do meu distanciamento do “mundo real”, Rafael se recusou a financiar a viagem. Do lado do Pedro, sua mãe viúva também não tinha muito para colocar na mesa. Para tornar a coisa viável, tive que vender meu querido Blues Boy e ele teve que pegar parte do dinheiro que seu pai havia lhe deixado. Mesmo assim, pelos nossos cálculos, só teríamos o suficiente para ir de ônibus até Vitória, e a partir de lá, tentaríamos chegar o mais ao norte possível pegando carona e acampando.

Apesar do prejuízo e dos possíveis contratempos, não queríamos outra coisa. Seria uma oportunidade de viver um sonho de mochileiro hippie, além de um alívio imprescindível da crise na cidade grande.  Enquanto o ônibus atravessava a ponte Rio-Niterói rumo ao Nordeste, não via a hora de chegar naquele Brasil idílico onde poderia voltar a ser eu mesmo.

Sabendo que as coisas só esquentariam depois que chegássemos na Bahia, não íamos ficar muito tempo em Vitória. Sem pertencer ao Sul nem ao Nordeste, a cidade não era nem moderna o bastante para a gente curtir a balada, nem exótica o suficiente para ser empolgante. O plano era acampar na praia por uns dois dias e de lá começar a fase de caronas e chegar à Bahia o mais rápido possível.

Assim que chegamos por volta do meio dia, pegamos um ônibus rumo ao bairro da Praia do Canto onde achamos logo um quiosque na beira da areia para deixar nossas mochilas. Foi lá que rolou nosso primeiro contratempo. O dono da barraca, um mulato magro de cabelo parafinado vestindo uma roupa de surfista e com óculos escuros coloridos, nos explicou que existia uma lei que proibia acampar em qualquer lugar da costa da cidade.

“Tiveram uns malucos que tentaram acampar aqui há duas semanas atrás. A polícia chegou a noite, tirou eles à força e ainda ficaram com a barraca. Se vocês quiserem tentar, tentem, mas está avisado.”

“É só aqui ou em Vitória inteira?”

“É proibido acampar na orla inteira, se vocês quiserem montar a barraca com os mendigos na praça é com vocês.” O cara encerrou com um sorriso irônico, já preocupado com outros fregueses que tinham acabado de chegar.

Virei para o Pedro. “Cara, e agora? A gente vai dormir aonde?”

“Sei lá, depois a gente vê. Não estressa, estamos de férias!”

Aceitei a sugestão. Depois que os clientes foram embora, trocamos de roupa rapidamente atrás do balcão. De sunga, numa cidade estranha, com o oceano aberto em frente e o sol forte, não pensei mais no assunto. O que queríamos era curtir o dia e curar o desconforto de uma viagem de 15 horas. No final do dia, com o pôr do sol chegando, a pergunta sobre onde dormiríamos naquela noite voltou à tona.

“Aê, de repente o cara falou aquilo só para assustar, vai ver que ele não quer ninguém acampado perto do quiosque.”

“Pode crer, também achei o cara meio mané.”

“De qualquer maneira, é melhor a gente ficar esperto, se a polícia chegar e levar a barraca vai ser foda!”

“E se de repente a gente armar a barraca naquele gramado ali em cima das pedras no final da praia?”

“Cara, tu tá maluco? Se não deixam acampar aqui, tu acha que vão liberar ali num parque público?”

“Então vamos para a casa do estudante universitário de Vitória? Não coloquei na lista, mas deve ter uma.” A gente olhou para o balcão e ele já estava começando a arrumar as coisas para ir embora.

“Tá muito tarde para isso, mas dá um guenta aê, que vou pegar as coisas lá no quiosque que o cara está fechando.”

Quando voltei, o Pedro estava conversando com um sujeito alto e desengonçado que tinha acabado de sair da água com uma máscara e um arpão.

Pedro, cujo pai tinha sido mergulhador, estava falando sobre mergulho genuinamente interessado. “Lá no Rio o mar é mais claro, mas volta e meia fica sujo assim também. Quando mergulhava com meu velho a gente chegou até a ver polvo.”

“Conheço o Rio, mas nunca mergulhei lá. O mar é mais frio, né? A água aqui é mais barrenta, mas até que dá para ver uns peixes. O Luiz lá dentro pegou um polvo no ano passado, mas foi em Guarapari.”

A conversa foi interrompida quando o tal do Luiz saiu da água e tirou a máscara de mergulho para vir falar com a gente. “E aí? Beleza? Luiz.”  O cara estendeu a mão e apertamos.

Depois ficamos  sentados na praia já semivazia conversando. Me surpreendi com o conhecimento do Pedro sobre o assunto, embora desconfiado de que a metade do que estava dizendo era mentira. Nao sabia nada de mergulho e enquanto o papo continuava, voltei a ficar ansioso por não ter ideia de onde ia dormir naquela noite.

A uma certa altura o assunto finalmente mudou. “Somos de BH e estamos na casa do tio do Fernando aqui, e vocês?”

A gente explicou a situação torcendo que fosse rolar um convite. Luiz, um cara com toda pinta de soldado e com ar de mandão, virou para o Fernando.

“E aí? Não dá para eles ficarem no quarto de empregada?” Ele se voltou para nós e perguntou.  “É só por uma noite, né?”

 Nem precisou a gente se consultar, acenamos a cabeça na hora dizendo que sim. O plano era passar duas noites em Vitória, mas dadas as circunstâncias uma já bastava.

Sem entusiasmo, o Fernando pensou um pouquinho. “É verdade, tem o quarto de empregada. Olha, é apertado e quente pra caralho, mas é melhor que ficar dormindo na rua que nem vagabundo.”

A gente não estava numa posição de escolher. “Pô, obrigadão, pode deixar que é por uma noite só, a gente vai pegar a estrada amanhã.”

O Luiz levantou impaciente. “Então tá decidido, a casa é aqui pertinho. Vamo nessa? Fiquei com fome depois desse mergulho.”

O Fernando, ainda um pouco relutante levantou também. “Vamo nessa. Essas aí são as tralhas de vocês?”

Pegamos as mochilas, a barraca e a viola e saímos atrás deles. O conjugado ficava num prédio alto e antigo em uma das ruas de trás. Era apertadíssimo. Depois de nos acomodarmos e tomarmos um banho estávamos prontos para o rango. Quando o Luiz falou que não tinha nada na geladeira, entendemos que a gente devia pagar uma janta para os caras em retribuição. Só que se não tínhamos grana nem para uma refeição boa para nós dois, quanto mais para dois marmanjos a mais.

Pedro também não falou nada e ficou subentendido que não ia rolar. O clima ficou esquisito mas pegamos o que estava na geladeira e devoramos uns sanduíches de queijo. A fome não passou e resolvemos ir de ônibus para a zona boêmia de Vitória, Vila Velha.

Duros, com a barriga roncando, ficamos andando pelo passeio feito uma matilha de cães. Acabamos num lugar que parecia um parque de diversões noturno, cheio de trailers vendendo comes e bebes e tocando música a todo volume. Na confusão, alguém viu uma mesa vazia cheia de petiscos e de garrafas de cerveja intocadas. O Luiz, já chefe de nós todos, fez um sinal para a gente parar e ficar esperando.  Passamos uns dez minutos vigiando. como os donos nunca voltatam, chegamos junto e discretamente tomamos conta.

Fui direto numa garrafa de cerveja já aberta, mas cheia. Assim que o gelado desceu, ouvi uma voz masculina afeminada me chamando de atrevido. Olhei para o lado e não era o Pedro de brincadeira nem um dos outros dois, era uma bicha loura alta com purpurina cintilando nos cabelos e na barba, olhando para mim com os lábios hidratados.

Quase cuspi a cerveja fora. “Desculpa, a gente pensou que não tinha ninguém na mesa, daí…”

“Menino, essa cerveja tem dono.  Eu e minha amiga estávamos dando uma volta e deixamos as coisas aqui. Será que não dá para fazer isso numa noite de domingo!?”

“Olha, desculpa mesmo, quanto custa uma cerveja? Te pago uma nova.”

O cara não parecia incomodado. “Deixa de ser bobo, garoto, senta aí e bebe com a gente.”

Quando olhei para o lado e vi a “amiga” dele, um moreno também coberto de purpurina com maquiagem nos olhos e se derretendo para cima do Luiz, a ficha caiu: havíamos caído na armadilha da dupla. Estava claro que eles queriam muito mais que cervejas novas e nossas desculpas. De qualquer maneira, como os dois mergulhadores pareciam mais confortáveis com a situação, Pedro e eu saímos de fininho e deixamos o problema com eles.

Rindo do acontecido, resolvemos deixar de ser pão duros e fomos comprar uns hambúrgueres e uns refrigerantes numa das barracas. Depois fomos dar uma volta. Não demorou muito para a coisa começar a ficar chata. Estávamos cansados e voltamos à mesa para ver quando iríamos embora. A novidade era que os quatro haviam se tornado íntimos e voltar para o apartamento não estava mais nos planos.

A “loura” foi a porta voz da decisão. “A gente ficou muito amiga desses dois moços e vai levar eles para conhecer a minha casa. Se vocês quiserem vir com a gente será um enorme prazer.”

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