por Richard Klein | 16 jan, 2021 | Brasil, Comportamento, Crônica, Livro
Capítulo27
“...Até onde a gente chegar
Numa praça
Na beira do mar
Num pedaço de qualquer lugar.”
Dia Branco, Geraldo Azevedo
A próxima parada foi Aracajú, a capital de Sergipe. Apesar do nome bonito e de uma música inspirada do Caetano exaltando a cidade, o lugar não desceu bem. Chegamos a noite e de cara pareceu uma cidadezinha de interior sem charme com ruas desertas e quase sem comércio. Sabiamos onde queriamos ir: praia da Coroa do Meio, um bairro de classe media alta com uma praia legal indicada por um amigo de Salvador. Nos sentindo como astronautas num planeta estranho, saimos perguntando como chegar lá e nos deparamos com um povo reservado que nos via como extra terrestres certamente por causa do ar largado, das roupas mal tratadas e das mochilas.
Conseguimos finalmente chegar no nosso destino mais sem graça do que o esperado. A única coisa que curtimos era que dava para acampar na praia deserta. Quando armamos a barraca já era por volta das nove e meia. Olhamos em volta e vimos que apesar da discreta elegância da vizinhança tudo parecia fechado. Apesar disso, a fome nos fez esquecer o risco de deixar as tralhas ali e saimos à cata de um lugar aberto. Depois de uns dez minutos achamos um bar aberto. Ele era de frente para a praia e parecia ser movimentado durante o dia, mas parecia vazio. Subimos para a esplanada e um garçom de uniforme sujo nos recebeu e nos conduziu a uma mesa. Tlavex para nos agradar, ele nos colocou ao lado da única outra mesa ocupada, a de duas beldades que pareciam de fora. Elas sorriram e começamos a papear. Elas eram paulistas pertencentes ao “público alvo” de Pedro: trinta e poucos anos, cultas, bem de vida e interessadas em espiritualidade oriental. Depois que a comida e as cervejas vieram, tentando disfarcar a fome entre garfadas e goles de cerveja, descobrimos que uma delas levava o Rajneesh tão a sério que tinha gasto uma pequena fortuna para passar uma temporada no seu Ashram no Oregon. Contamos o que estavamos fazendo ali e conquistamos a sua simpatia Uma delas se engraçou tanto com o Pedro que depois de pagarmos a conta, partiu com ele para a barraca a fim de aprender seu “caminho para a sabedoria”. Naquela altura, já havia me acostumado a ver ele se dando bem e levava minha desgraça com bom humor.
Embora a outra também fosse atraente, não rolou química nenhuma. Isso não impediu que fossemos para um passeio pela praia onde matamos uma ponta generosa que tinha guardado. Depois de um papo desconfortavel e seco, voltamos para o bar onde ela decidiu manter seu “eu interior” para si mesma e retornou ao hotel.
Sozinho naquela noite menos que interessante de Aracajú fiquei esperando que liberassem a barraca. Do nada, como num filme surrealista, apareceu um grupo de lésbicas bêbadas que saiu debochando do garçom, falando um monte de besteiras e rindo alto na maior sarração e beijação. Certamente eram as únicas mulheres abertamente homossexuais no estado inteiro.
No meio da confusão apareceu um cara local de visual esquisito que sentou-se na mesa ao lado, colocou os pés em outra cadeira e saiu puxando conversa.
“Caralho, meu irmão! Fumei uma maconha boa pra caralho! tô viajando legal!” Ele virou para mim e perguntou. “E você? tá doidão também?”
Aquilo foi estranho. Tudo me dizia que o sujeito não estava chapado coisa nenhuma. O bigode mexicano, os sapatos brilhantes e a camisa engomada para dentro da calça me diziam que pertencíamos a tribos diferentes. “Não, tô legal aqui, curtindo a noite.”
“Porra! Eu quero ficar mais doidão ainda! Apresenta aê um do bom para a gente fumar!”
“Desculpa, mas não fumo essa coisa.” Pela reação quase hostil, deu para ver que ali tinha problema.
“Porra, cara! Senti que tu tem! Vai enrustir?” e deu uma risada forçada.
Eu já tinha desmascarado o cara, mas se era para jogar seu joguinho resolvi sacanear. “Chapado como? Tipo um ferro quente? Não estou entendendo.”
O cara insistiu. “Você é carioca, não é? Tou doido para experimentar a de lá, aperta um para a gente!”
“Sou do Espirito Santo, amigo! Apertar o quê? Tem alguma coisa frouxa nessa mesa?” Dei uma balançada nela. “Não… Ela está firme. Não estou entendendo.”
A conversa continuou até o cara resolver sair sem perder a pose. “Não vai apresentar, né brother? Tá bom, vou nessa. ” Ele tirou o pé da mesa, ajeitou o cinto, arrumou a camisa e desceu do platô piscando para mim e mandando um sinal de legal.
Depois que foi embora, o garçom veio falar comigo. “O senhor fez muito bem em não dar trela para aquele sujeito. Ele é capitão da polícia. Tava doido para morder uma grana do senhor.”
“Eu percebi na hora. Obrigado.” Deu vontade de perguntar porque ele não tinha me avisado logo. Agora era fácil. De qualquer forma continuei no bar, tentando me certificar que o policial tinha desaparecido. Lá pelas tantas, o Pedro apareceu para me dizer que ia dormir no hotel.
“Porra, Richard! Como é que tu não ficou com a outra? Tu não viu que ela tava dando mole?”
Sem saber se ele estava me sacaneando ou não, respondi: “Tu não sabe que sou uma merda nisso?”
Ele deu uma risada. “A minha falou que ela tinha gostado de você, mas que você nao fez nada. Meu irmão, tu paga para vacilar!”
Depois que sairam felizes da vida fui para dar uma volta na beira do mar e fiquei pensando naquilo. Quando desencanei, talvez por estar relaxado de novo, a chapação voltou com o vento noturno. Depois de um tempo, tomei corajem e voltei para a barraca ainda receoso que o cara do bar fosse lá me acordar no meio da noite para me levar. Quando entrei, deitei deixei a porta da barraca aberta para ficar apreciando a noite gostosa la fora. Com a visão das ondas quebrando no escuro, seu barulho e a tranquilidade em volta, bateu uma paz ímpar. Talvez se não existessem humanos naquele lugar e aquelas casas sem-graça, Aracajú seria um lugar gostoso. Fiquei pensando na paulista, se ela tinha me dado mole ou não, e quando e se curtiria transar com uma mulher mais velha. Com aquilo rodando na cabeça acabei pegando no sono e dormi bem.
No dia seguinte, o Pedro veio me acordar cedo. Apesar do dia sem uma nuvem no céu, o sofrimento continuou: a praia era terrível, as pessoas eram feias e a comida incomível. Era hora de voltar para a estrada.
*
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por Richard Klein | 26 dez, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica, Opinião
Quem passava o verão em Porto Seguro eram turistas convencionais do Brasil inteiro. A gente estava ali para se juntar à malucada de Ajuda e Trancoso, por isso dois dias depois estavamos de saida. Só que o retorno foi decepcionante. O paraíso de dois anos atrás parecia um outro lugar. Agora a principal atividade era o turismo. A temida luz elétrica já havia chegado e, com uma balsa melhor, havia carros estacionados por tudo quanto é canto. A vila estava abarrotada e tinha se tornado muito mais estruturada com bares mais elegantes, restaurantes e pousadas exclusivas. É claro que a inflação de vinte procento ao mês tinha chegado lá também e tudo estava mais caro. Cheguei a perguntar por pescadores que conhecia e descobri com tristeza que a maioria tinha deixado o vilarejo depois de vender seus barcos e suas casas a preço de banana.
Para mim, a santidade do lugar estava sendo ofendida pelo clima semi urbano e por cortes de cabelo estilo anos 1980 e a maquiagem gótica que alguns visitantes – e até mesmo alguns jovens da terra – estavam usando . Não queria ter contato com a maioria das pessoas ali e o sentimento parecia mútuo.
Para piorar as coisas, comecei a reparar que a agenda do Pedro na viagem era a de se enturmar com o pessoal mais “interessante”, leia-se mais abonado, ligado às artes, à neo-sofisticação mística-zen e em produtos alternativos. Essa turma era mais velha e com vidas estáveis. No geral estavam o mesmo circuito que a gente, só que de carro e parando em pousadas confortáveis.
Em Ajuda havia agora uma hierarquia ditando que aquele grupo era melhor que o resto. Eles alimentavam esta percepção se isolando em pousadas exclusivas e em praias afastadas, igual ao que o Gabeira tinha feito a dois verões passados. Para Pedro, seu público alvo era uma porta de entrada para um mundo de conforto financeiro e de sucesso profissional. Não que tivesse qualquer coisa contra aquelas pessoas, mas amizades por interesse não tinham nada a ver com o que estava fazendo ali.
À noite, com todos relaxados pelos dias mágicos daquelas praias, as pessoas se juntavam em rodas de violão num espírito mais comunal. Afinal de contas, esse sentimento era o motivo pelo qual todos tinham viajado de tão longe. Nessas horas, ficava claro que todos estavam atrás de uma experiência parcida com a que eu tinha tido na primeira vez, só que para mim aquela energia já tinha alçado voo.
Contudo, a magia eterna da música continuava viva e com esforço e sinceridade dava para fazê-la presente de novo. Naquele segundo verão em Ajuda, já tocava faziam cinco anos. Tinha melhorado a técnica e tinha incluído um monte de músicas e estilos novos no repertório. Também estava começando a dominar as manhas de cativar o público, algo aprendido em rodas e festinhas da escola e agora da faculdade. Quando um pequeno público se juntava a volta, era com o maior prazer que tocava noite à fora. Com alguns bares agora pagando músicos amplificados, as sessões aconteciam na praia onde a luz elétrica ainda não tinha chegado. Era comum encontrar um ou outro cara com um instrumento. A gente saía tocando e o pessoal ia se chegando. Se rolasse o clima certo, saía cantando.
Começava com músicas mais intimistas e psicodélicas como Terra, de Caetano Veloso, Caravana, de Geraldo Azevedo e Chão de Giz, de Zé Ramalho. Conforme a atenção ia aumentando, tocava algumas do Milton Nascimento, do Beto Guedes, dos Secos e Molhados, do Fagner e do Belchior. Depois de estabelecer o clima, introduzia uns clássicos da bossa nova como Wave e Garota de Ipanema. Do início suave, engrenava numa parte mais ritmada: músicas dos Novos Baianos e do Djavan, forrós de Luiz Gonzaga, algum rock nacional da Rita Lee e do Raul Seixas. Animado e cantando junto, o pessoal estava pronto para sucessos mais ritmados do Gilberto Gil e do Caetano Veloso. Com todos em ritmo de festa, mandava canções carnavalescas de Alceu Valença e de Moraes Moreira e para fechar a noite recorria ao Jorge Ben.
Havia vários músicos na area. Às vezes, não era eu no volante e quando isso ocorria fazia o mehor para adicionar lenha à fogueira música para que a magia acontecesse e que Ajuda voltasse a ser Ajuda. Era uma alegria sentir as pessoas serem maiores do que a aura negativa tomando conta do pais, voltando a ser elas mesmas e curtindo junto sob o céu estrelado.
Nem todos apreciavam a este experiência. Ficar ouvindo um violeiro acústico era considerado ultrapassado por muitos, principalmente pelos mochileiros heavy metal acampados no mesmo terreno baldio onde outrora tinha dividido a cabana com as brasilienses. Durante o dia, o clima era horrível: a praia vivia lotada e barulhenta. Gente das cidades vizinhas chegava de carro e, para se mostrar, ligavam o som nas alturas colocando música para lá de brega. Na vila, havia muita gente agressiva, ninguém se conhecia direito e o pessoal da terra estava antipático e dinheirista. O Arraial d’Ajuda estava estragado e queria ir embora. Trocar Ipanema por aquilo não fazia sentido.
Não era possível que Trancoso fosse dar tanta decepção. A eletricidade ainda não tinha chegado lá e o acesso continuava difícil. Mesmo se esbaldando em encostar no monte de gente “interessante” passando o verão em Ajuda – que eram as pessoas que mais gostavam do que eu tocava – Pedro também estava de saco cheio de ser tratado como um turista. Foi fácil convencê-lo de que se trocassemos de vila, a experiência seria mais autêntica, mais em conta e haveria um número igual ou talvez maior de pessoas “interessantes” para conhecer.
*
Dessa vez não foi necessário cruzar rios profundos no meio do nada e no escuro, afinal tínhamos uma barraca que montamos num canto do quadrado assim que chegamos. Contudo, as coisas haviam mudado em Trancoso também. Não encontrei ninguém conhecido e até o dono do bar havia mudado: Seu Manuel tinha sido substituído por um sujeito sizudo e antipático de Eunápolis.
Em nossa primeira noite tivemos uma introdução à nova realidade. Estava dormindo e o Pedro me cutucou: “Aê, Rique, tu ouviu isso? ”
Confuso e meio puto por ter sido acordado perguntei: “O que?”
Ele sussurrou: “Tem alguém mexendo com as nossas paradas lá fora.” Fiquei alerta na hora. “Shhh, abre a barraca quietinho e vamos pegar esse merda agora.”
Segurei no zíper da barraca e abri o mais rápido e mais silencioso possível, só que o cara ouviu, tomou um susto e saiu correndo. Quando conseguimos sair da barraca já era tarde demais. O louro falso de cabelos encaracolados e de shorts já estava longe, correndo protegido pela luz da lua.
O Pedro ainda gritou: “Volta aqui, ladrão filho da puta!”
A gente tinha dormido com nossas carteiras dentro da barraca por precaução. De qualquer forma, fomos checar as mochilas e foi um alívio ver que ainda estava tudo lá. No dia seguinte, vimos o ladrãozinho na praia todo enturmado jogando vôlei com a moçada. Como não podíamos provar nada, a única coisa ao nosso alcance foi ficar encarando ele com a cara fechada, o que ele fingiu ignorar.
Tomar cuidado para não roubarem minhas coisas não foi a única coisa que aprendi naquela noite. Quando começou a clarear me dei conta que os mosquitos de Trancoso usavam as barracas dos campistas como centros de convenções. A claridade revelou um tapete deles cobrindo as paredes de nylon. Da outra vez, não tinha sido assim no barraco no meio do mato, devia ser o abafado quente que os atraía. Depois de ver aquilo não dava mais para dormir ali dentro. A única maneira de conseguir algum alívio foi sair com o saco de dormir, se deitar na sombra de uma casa e deixar que o vento os levasse.
*
Ao contrário de mim, um vara pau desengonçado em quem se podia contar as costelas e com cara de viajandão, Pedro tinha o corpo de um jogador de polo aquático. Com olhos pequenos e maliciosos, voz grave, pele cor de caramelo e cabelos encaracolados meio louros, ele fazia sucesso com o sexo oposto. Com um talento natural para aquilo, era supertranquilo, ia direto ao ponto e sabia as palavras certas e a hora certa de dizê-las.
Depois de uma semana e pouco no Sul da Bahia, os insetos e os ladrões não eram as únicas coisas me incomodando: minha falta de sucesso com as mulheres comparada com os triunfos dele estava difícil de digerir.
À noite, enquanto ele se dava bem, quando não estava tocando e todos estavam se divertindo perto de fogueiras, ocasionalmente a seriedade da minha situação fora dali tomava conta de meus pensamentos. Como seria o futuro naquela faculdade que não era para mim? O que aconteceria com a crise econômica cada vez pior e com a idade do meu pai avançando? Onde estava a namorada que se importava comigo e que gostava das mesmas coisas que eu? O quanto as coisas teriam que piorar até que elas começassem a melhorar?
Me sentia como se tivesse alcançado o topo de uma montanha em meio a uma linda paisagem para descobrir que do outro lado havia um depósito de lixo. Aqueles problemas eram como a parede de mosquitos na barraca: podia espantá-los temporariamente, mas eles voltariam não importa o que eu fizesse.
Muitas pessoas estavam na mesma situação: essa era uma geração de classe média órfa da prosperidade e da ideologia libertária e igualitária dos anos 70.Agora estava desprotegida da crise econômica e despreparada para lidar com ela. Alguns nos viam como um nicho de mercado. Um dos exploradores era Rajneesh, atualmente Osho, um guru indiano radicado nos Estados Unidos. Em Trancoso, só se falava dele. Baseando-se na psicologia ocidental e em filosofias orientais, ele pregava que o caminho para a iluminação espiritual era através da aniquilação do ego por meio da exaustão da libido. Criador de uma seita mundial em torno dessas teorias, suas terapias tinham forte conotação sexual, algo que duvidava ser autêntico na sociedade tradicional hindú. Naquele verão havia inclusive vários iniciados e iniciadas usando camisa/uniformes laranjas e carregando um colar de contas com a sua foto. Cheguei a ler alguns do seus livros; eram tão bem escritos que cheguei a ficar tentado a participar – muitas gostosas estavam fazendo isso – mas o preço exorbitante dos encontros e estadias nos seus Ashrams me convenceu a ficar de fora.
Havia paralelos entre a filosofia do mestre indiano com o discurso do Gabeira. Os dois pregavam mudanças pelo uso do corpo. A diferença era que o ex-exilado estava interessado em se promover como autor e como político enquanto a seita era voltada para tirar dinheiro dos seguidores. Encontramos pessoas que tinham chegado a conhecer Rajneesh, ou o Bagwan, pessoalmente no seu centro gigantesco no estado do Oregon, nos Estados Unidos, um caro privilégio. Elas falavam em cair aos prantos ao ver seu olhar “penetrante e amoroso” que havia “libertado suas almas”.
*
As praias de Trancoso continuavam maravilhosas, bem mais tranquilas do que as de Ajuda. Igual ao que tinha acontecido na minha ida anterior, todos frequentavam de dia. Ficávamos sentados – a maioria brancos de centros urbanos – conversando, olhando para o horizonte azul claro e curtindo a brisa suave nos refrescando enquanto balançava as árvores e o verde logo atrás. Num flagrante contraste com minha primeira visita, ao invés de falar das maravilhas do aqui e agora, o assunto principal eram os livros daquele guru estrangeiro, velho e barbudo e as suas terapias tântricas para alcançar a iluminação espiritual. Nas cabeças daquelas pessoas ele era o único que, por uma quantia fixa, podia deixá-los em um estado de paz semelhante ao que tinha sentido apenas por estar sentado ali há dois verões atrás. Para começar um quebra-pau ou se tornar impopular com a galera, era só lembrar que ele estava desfrutando o seu sucesso em outro país, sendo conduzido de Rolls Royce no seu Ashram dando tchauzinho para seus seguidores que pagavam uma pequena fortuna para estar ali.
Eu ficava na minha, pensando que esse era “o” produto que todos queriam: se desligar da realidade num orgasmo infinito. Isso não era novidade. Vender uma ficção reconfortante como um refugio de uma realidade hostil já era – e ainda é – feito pelas grandes religiões há séculos. Já tinha problemas suficientes com a minha para brigar com os outros por causa disso.
Era compreensível que em um lugar com Trancoso, ninguém quisesse falar sobre suas angústias naqueles tempos sombrios, mas para que ficar falando o tempo todo sobre o Rajneesh? Meu instinto me dizia que as infelicidades, como as daquele momento, estavam além do nosso controle, da mesma forma que as bênçãos que havíamos recebidos nos bons tempos. Tínhamos o poder de decidir como reagir aos contratempos, mas nenhum guru ou pílula mágica poderia abrandar o que o destino tinha guardado para nós. Podíamos tentar transformar a realidade. Deixar a realidade nos transformar? Para mim, nunca!
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por Richard Klein | 12 set, 2020 | Brasil, Crônica
Se esquecêssemos a desigualdade social refletida tão simples e claramente na nossa presença ali, o povo de Ajuda vivia bem e ainda não tinha sido tocado pelo “Brasil Novo”. Sem interesse, malícia, nem conhecimento para explorar turistas, ganhavam a vida usando seus barcos artesanais para trazer seu sustento do mar. Alguns alugavam quartos ou cozinhavam para fora para completar o orçamento. O pessoal da terra era curioso a nosso respeito e nós a respeito deles. Às vezes, nos honravam com convites para conversar e ouvir suas histórias sobre a comunidade, suas lendas, o mar e a natureza que nos cercava.
“Tem vários pescador que viu uma luz branca aparecê de noite no meio da pescaria. Quando eles via de perto, aparecia uma mulher vestida de branco lá de dentro. Todos os que viram aquilo acabaram morrendo no mar de um jeito ou de outro.”
“U mió mês de se pescar é março, a corrente traz muito peixe do Sul para cá, o mar fica mais frio e de vez em quando nóis pega até tainha.”
“Aqui dá cação, principalmente por volta do mês de junho, mas é ruim pras rede. Eles rasga tudo e depois nóis tem que remendá tudo de volta. A gente mata eles com peixeira, mas é, difícil. O bicho é grande, maior que sinhô. A carne nem é muito boa, é dura. A gente tem que cozinhá várias veiz até amassiá, que nem carne de sol.”
“Nos rio daqui tem peixe sim sinhô, mas é tudo pequeno. Tem muçum, o sinhô conhece? Já experimentaste? É feio como a peste, mas é muito saboroso. Tem que saber cozinhá.”
“Nadá?! Nós não sabe nadá não, quando um cai na água, nóis vai lá e traz ele de volta do jeito que dá.”
“Ôceis num pesca no Rio de Janeiro, não? E aprendeu a nadar por quê? Oxente, se eu tivesse o dinheiro que oceis tem, mandava fazê uns três barco e fazia os outro pescá para mim. Que nem aquele minimo de Salvador tá fazeno. Eu ia ficá rico que nem ele!”
Os visitantes mais sortudos que estavam lá há mais tempo eram convidados para sair nas pescarias, mas isso nunca aconteceu comigo.
O pessoal de fora, todos na faixa dos vinte a trinta anos, era uma mistura de estudantes universitários, professores, jornalistas, artistas e profissionais de todos os tipos. As conversas longas e frequentes refletiam a paz e a beleza do lugar e a explosão de liberdade de expressão que se seguiu à repressão do regime militar. Todos faziam questão de dar a sua opinião sobre tudo; de futebol à ecologia, da política ao sexo.
“Quando a eletricidade chegar aqui, vai mudar tudo e para pior. Eu sou do Mato Grosso, lá tem um monte de aldeias como essa. Quando modernizam, o povo mais humilde acaba virando favelado e quem se dá bem é o pessoal das cidades vizinhas maiores que chegaram sabendo como lidar com dinheiro.”
“Pois é, eles são muito ingênuos. Não valorizam o que possuem. Eu sou do interior do Paraná, e lá é igual. Os nativos, não têm parâmetros para comparação. Os caras de fora vêm na malícia e deitam e rolam em cima deles.”
“Vai ser uma pena ver essa natureza toda ser transformada em resorts à lá americana mas pode crer que vai virar.” Profetizou um.
“Pois é, mas ficar aqui sem luz elétrica é bom demais, a gente tem que aproveitar enquanto dá.”
Todos concordaram.
“Mudando de assunto, se vocês querem ver natureza de verdade, têm que ir para Caraíva. No ano passado fiquei lá o verão inteiro. Foi muito, mas muito bom!”
“Caraiva? Os nativos disseram que não dá para chegar lá nem a pé!”
“Que dá, dá, mas é difícil por causa da maré e dos rios no caminho. Teve um maluco de Belo Horizonte que saiu de Trancoso e conseguiu, mas levou dois dias. A gente foi de barco. Tem um que sai de Porto Seguro toda sexta-feira, leva umas três horas.”
“E como é que é lá?”
“Muito louco, parece uma aldeia perdida no meio do Amazonas. Tem uma reserva indígena do lado, os caras nem falam português direito, só que o bicho pega com os nativos. Tem muita briga, principalmente depois que os índios descobriram a cachaça. Quando bebem, enlouquecem.”
“Você entrou em alguma confusão?”
“Ah, não, com o pessoal de fora eles são diferentes. A gente dá roupa, traz ferramentas, facões e isqueiros. Por isso adoram a gente.”
“É contra a lei, não é?”
“É, pela lei eles nem poderiam comprar esse tipo de coisa mesmo se tivessem grana, mas os caras precisam para lidar com o mato. Fiz amizade com um monte deles. Eles são muito doidos, não conhecem o conceito de propriedade privada.”
“Como assim?”
“Tipo assim, você vai para a praia e quando volta tem um monte de índio sentado na tua sala, tranquilos, sem pedir desculpas nem permissão. Teve um dia eu estava transando com a minha namorada e quando a gente acabou, nos demos conta que tinha uns cinco ou seis debruçados na janela olhando para nós em silêncio. Só faltaram aplaudir… minha namorada ficou puta!”
Todo mundo deu risada.
Quando o papo ficava mais sério, todos concordávamos que esses eram os últimos dias de um mundo no qual a natureza era maior do que o homem.
“Épocas de mudanças são um problema, decisões que parecem pequenas acabam tendo consequências enormes.” Falou um cara mais velho que, se não me engano, era professor de universidade. “Essa geração está presenciando toda essa devastação e vai ser cobrada pelo que deixou fazer e pelo que não fez no futuro.”
“Pode crer, vão dizer que deixamos a coisa rolar.” comentou um hippie bom de percussão.
O professor continuou: “Não sou muito otimista, acho que vamos ser vistos como os porcos que estragaram o planeta em nome de farra.”
Uma menina com cara de estudante de mestrado emendou: “É verdade, somos o vírus e a cura, tudo depende das decisões que vamos tomar ou que vão tomar por nós. O xis da questão é acreditar ou não que a gente pode fazer uma diferença.”
Discussões à parte, havia algo de especial no ar. Nenhum de nós jamais havia sentido esse tipo de conexão coletiva antes. Era como se estivéssemos em uma realidade paralela, destilada por séculos de ideais utópicos e pela camaradagem criada na resistência clandestina ao regime. Naquele paraíso tropical, essa proximidade permeava festas, a música, risos, relacionamentos e amizades que aconteciam. Elas tinham uma qualidade e uma sinceridade muito diferentes do que normalmente aceitaríamos como realidade imutável nos grandes centros urbanos.
*
A experiência não tocou Davi como a mim. A meu ver, ele estava se reprimindo ao escolher se misturar com uma galera de universitários mais caretas. Eles eram parte importante das conversas, mas participavam somente marginalmente de nossa “sociedade secreta”. Não estando ligados à erva, perdiam um elemento essencial. Não era uma questão de tirar uma onda ou de se enturmar por estar fumando maconha, mas pelas dimensões e perceptivas que ela parecia abrir nos papos e até na integração com os arredores.
Uma frase de efeito do Gabeira resumia bem a diferença entre nossas perspectivas: “Sem tesão, não há solução.” Esse era o pensamento dos envolvidos naquela microrevolução quixotesca. Nela, as coisas se resumiam a ações ao invés de palavras. Queriamos um mundo onde as pessoas vivessem mais proximas à natureza – a interna e a externa, sem distinções -, sem hierarquias, principalmente a hierarquia da mente sobre o corpo. Ninguém queria saber de dogmas, tanto à esquerda quanto à direita, muito menos as vindas dos altares da vida. Naquele verão utópico, quem precisava do peso da história, da escola, da tradição e da ciência pairando sobre suas cabeças?
O caminho para o fim da nossa amizade culminou quando conseguimos rachar uma cabana maior com três garotas de Brasília que ele havia arranjado perguntando ao pessoal local. Assim que as conheci, as achei feias e certinhas demais e portanto, fora da minha zona de interesse. A antipatia foi mútua: minha atitude de carioca descontraído que não estava nem aí para as praticidades de uma convivência diária contrastava com seus esforços em serem sociáveis e seus pedidos para que dividíssemos as tarefas domésticas. Talvez estivessem certas ao me considerar um riquinho preguiçoso e mimado, acostumado a ter uma mãe e uma empregada sempre correndo atrás dele. Só que com 17 anos, era imaturo demais para compreender isso e as descartei como “mocréias” chatas.
Um dia após a praia, já de saco cheio da minha preguiça, exigiram que eu preparasse a refeição daquele dia. Avisei que nunca tinha cozinhado na vida, mas, talvez achando que isso fosse uma desculpa esfarrapada, se recusaram a ouvir e me forçaram a embarcar na primeira aventura culinária da minha existência. O fogão era uma grelha apoiada em alguns tijolos que ficava na área atrás da casa. Meu primeiro passo procurar por lenha seca e papel para acender o fogo, o que era quase impossível com o vento que estava soprando. Depois que tive a ideia de pegar uma cartolina que encontrei para proteger a chama, finalmente consegui. Quando as chamas diminuíram, seguindo as explicações do Davi, coloquei uma panela velha sobre a grelha, com água, óleo, sal e o espaguete.
Como bom filho de Aries fiquei agachado curtindo as chamas arderem e aproveitei o fogo para acender uma ponta que achei no bolso. Tudo estava correndo bem até levantar para adicionar os ovos. Enquanto afundavam na água fervente, percebi que o resto dos ingredientes não estavam borbulhando como deveriam. Quando cutuquei com o garfo, senti que o macarrão tinha se tornado uma massa uniforme grossa e grudenta. Mesmo para um iniciante era óbvio que aquilo estava errado. Só que quanto mais tentava concertar a coisa, mais ela lutava de volta dificultando os movimentos do garfo. O que era para ser uma refeição à base de espaguete se degenerou em um bloco de massa incomível. Para tornar as coisa ainda pior, percebi que os ovos haviam sumido lá dentro. Comecei a escavar a “coisa” numa tentativa de salvá-los, mas o garfo ficou preso antes de desaparecer naquela deformidade.
Depois de um pânico inicial, achei aquilo engraçado. Respirei fundo e tomei coragem para dar a notícia dentro da casa.
As meninas estavam esperando com fome.
“Aê, vocês não vão acreditar, o macarrão virou um tijolo e engoliu os ovos e até aquele garfo. Vocês querem ver? Tá hilário!”
“Como assim?”
“O macarrão ficou todo grudado e acabou, sei lá, fundindo num bloco de massa sólido. Nem tô conseguindo nem tirar da panela.”
“Não estou acreditando, você sabia que a panela é da casa? Sabe quanto custou a massa e os ovos? Não deve saber? A empregada não foi comprar, né?”
“Olha só, foi um acidente!” Elas estavam sérias e nervosas e eu não estava gostando do rumo que a conversa estava tomando. “Está todo mundo de prova que avisei que nunca tinha cozinhado na vida.”
“Como é possível um marmanjo da tua idade não saber cozinhar um macarrão?!”
“Isso não vem ao caso. Eu avisei, foi um acidente, se vocês quiserem eu pago o macarrão de vocês, mas baixa a bola aí, porque gritar não tem nada a ver.”
“Ah, e você vai pagar o nosso jantar?”
“Compra mais macarrão, cozinha um arroz, sei lá, se é para pedir desculpas já pedi, só não enche!”
Havia coisas melhores a fazer do que ouvir aquelas três garotas gritando comigo e saí da cabana, deixando elas falando sozinhas. Mais tarde, naquela mesma noite, caiu a última gota. Estávamos todos num boteco, e depois de beber demais, a mais nova, que era a mais sossegada e a mais atraente das três, me pediu para a trazer de volta para a casa porque estava passando mal. Estava bêbado também e no portão nos beijamos. Quando entramos e já estávamos prestes a finalizar a coisa, as outras duas entraram como um foguete, chegando perto de me agredir fisicamente. No dia seguinte me colocaram para fora. O Davi, que já estava farto das minhas doideiras, também não gostou e ficou do lado delas.
Peguei minhas tralhas resignado e um tanto zangado e fui bater na porta da cabana de uns uruguaios camaradas que me acolheram na hora. Só que não demorou muito para descobrir que o clima na casa dos caras era caótico demais, até para mim. Era gente entrando e saindo da casa 24 horas por dia para zoar e se chapar. Por outro lado, talvez pelo acontecido, o Davi decidiu voltar ao Rio mais cedo do que o planejado. Agora sozinho no Sul da Bahia, carregando o gosto amargo da rejeição, seguindo recomendações, resolvi me mudar para Trancoso, o próximo vilarejo ao sul.
…
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