Samba Perdido – Capítulo 21 – Parte 01

Capítulo 21

 

“Sagrado e profano

O Baiano é

Carnaval!”

Chame Gente – Moraes Moreira 

 

Meu status em casa saltou para as alturas depois do sucesso no vestibular. Como prêmio, Rafael resolveu me dar um Fusca 1973 azul claro, que apelidei de Blues Boy. Ainda que barato e velho era um carro e, que me lembre, amigos de lares muito mais prósperos tinham recebido apenas um tapinha nas costas por não fazer mais do que sua obrigação. 

Li esse gesto como uma tentativa de reconciliação dele com um filho incompreensível que se recusava a ouvi-lo e que fugia da sua companhia. Nosso convívio era difícil. De gerações completamente diferentes, nascidos em mundos opostos, havia um fosso nos separando em termos de perspectivas, de familiaridade com o que estava à nossa volta e do que buscávamos da vida.

Num mundo longe das minhas descobertas, a realidade do Rafael estava difícil. Já beirando os 80 anos, lutando bravamente contra os problemas normais da idade avançada, haviam dificuldades imprevistas com o presente. Apesar do patrimônio acumulado, o Brasil tinha se revelado uma decepção. Quanto mais convivia com o “jeitinho brasileiro” nos negócios e com autoridades tortas, menos gostava do país. Com os dias do milagre econômico num passado distante, quase três décadas depois da sua chegada, o país estava em queda livre e havia uma nova política de restrição às importações. Essas duas pancadas atingiram seus negócios em cheio. Mesmo que achasse desnecessário expressar suas angústias, elas estavam sempre à flor da pele.

No meio das suas preocupações estava o meu futuro. Apesar da predileção indisfarçada pela Sarah, talvez o seu único verdadeiro amor na vida, Rafael silenciosamente queria que eu chegasse a alturas que o seu passado o havia barrado; a respeitabilidade de um diploma universitário e a estabilidade de uma profissão.

O destino e o instinto de sobrevivência haviam dirigido a sua vida, ao passo que eu tinha escolhas, ou pelo menos achava que tinha na altura. Diferente dele na sua juventude, tinha a liberdade de me misturar com todos a minha volta e de curtir sem ser vítima de preconceitos e sem ter medo de passar necessidade. Talvez por isso, para ele, a tempestade existencial na qual tentava conciliar o mundo de fora de casa com o que se passava dentro dela, era algo que escapava à sua compreensão e ao seu respeito. Talvez agora, comigo na faculdade de economia, essa bobagem iria acabar e os estudos a sério poderiam ser a salvação de uma personalidade mimada e egoísta.

*

Sem se importar com os conflitos mudos em casa, o verão carioca estava no auge, e com ele a temporada de curtição. Agora pré-universitário, sem a paranoia do vestibular, só queria saber de praia e de aproveitar as outras maravilhas que minha cidade tinha para oferecer. Meu querido Blues Boy prometia ser uma grande ferramenta para essa tarefa, porém, antes de ganhar as chaves, havia a barreira da carteira de motorista. 

A ideia da minha pessoa no volante causava arrepios em casa. Isso era devido a uma aula de direção que Renée havia resolvido me dar em Teresópolis quando adolescente. A caixa de câmbio do carro da família, um Opala bege, era manual e saía da coluna de direção. Logo na primeira tentativa, embaralhei as instruções e ao invés de sair devagar em primeira, acelerei o carro em marcha à ré. Se minha mãe não houvesse tido o instinto de puxar o freio de mão na hora, teríamos caído em um despenhadeiro bem atrás da gente. O valor cômico da cena não foi captado pelo meu pai de 77 anos que estava nos observando fora do carro e ele passou mal. Nunca houve outra aula.

Porém, na época em que ganhei o fusca, o que os dois não sabiam era que seu filho já tinha começado uma carreira secreta de motorista. Ela tinha começado no dia em que decidi colocar um anúncio no jornal oferecendo aulas de violão. Com a mesada definhando devido aos problemas nos negócios, precisava de dinheiro para manter o nível de farra e essa foi a melhor ideia que veio à cabeça.

Dois dias depois o telefone tocou. A voz dela era rouca, algo que sempre me deu um certo tesão. Enquanto processava isso, a cabeça já estava “Caralho, uma aluna!!”

Tentei soar profissional. “Sim, as aulas são particulares para iniciantes. Também dou aulas de bossa nova para alunos mais avançados.”

“Ai, adoro bossa nova, mas nunca toquei violão. Quanto tempo você acha que levaria para aprender?”

“Bom, isso vai depender da tua habilidade e do teu esforço. Por que você não tenta uma aula, e daí a gente avalia?”

“Ah, não sei, esse número é de Ipanema. É muito longe. Eu moro na Tijuca, conhece?”

Menti. “Conheço, claro. Posso ir aí, mas como disse no anúncio são vinte e cinco cruzeiros na casa do aluno.”

“Não dá para fazer a primeira aula de graça? Só para eu sentir se vou gostar ou não?”

Considerei as coisas, mesmo se aquela a voz no telefone fosse a de uma deusa a Tijuca era longe demais. “Olha, não dá, principalmente porque fica tão longe.”

Para minha surpresa, ela concordou. “Então, está bem. Que dias você pode vir? Só posso nos fins de semana.”

Blefei. “Um instante, deixa eu ver minha agenda.” Esperei um pouco e respondi. “Tenho uma abertura no sábado à tarde da semana que vem, às três, pode ser?”

“Para mim está ótimo.”

Animado, peguei o endereço e depois de desligar comecei a planejar as aulas. Ia imitar o Romualdo. Primeiro, exercícios para fortalecer os dedos, depois acordes e depois as primeiras músicas fáceis. Só isso já daria quatro ou cinco aulas, cem cruzeiros no meu primeiro mês como professor… nada mal.

No sábado seguinte, lá estava eu, violão em punho, sacrificando um dia ensolarado de praia na linha 464 rumo à Tijuca para dar minha primeira aula na vida. Me senti bem dando os primeiros passos para ganhar meus primeiros trocados. Pedi para o motorista me avisar quando o ponto chegasse. Quando desci, segui as informações e consegui achar o prédio. Estava na hora e, nervoso, apertei o botão do apartamento no porteiro eletrônico. Depois de um tempinho ela atendeu e mandou subir. 

O apartamento era apertado. A sala era decorada com móveis de fórmica organizados em torno de uma televisão enorme, uma cortina feia cobrindo a janela de alumínio e fotos de família penduradas na parede. A aluna, Marineide, foi uma decepção. Parecendo tonta demais para aprender o instrumento, era mais nova que eu, maquiada mas com um bigodinho mal disfarçado, cheirando a perfume barato, unhas pintadas e com uma blusa semitransparente cobrindo o corpo roliço, ela me convidou para entrar. Em pé na sala, confuso, senti vontade de sair correndo daquela roubada mas me segurei e fui profissional.

Tentando parecer sério, perguntei: “O teu violão?” Depois de um silêncio inconfortável sob seu olhar extra terrestre, continuei. “Você disse que ele está todo desafinado. Posso dar uma olhada?”

“Ah, claro!” Ela voltou a estar presente, mas parecia nervosa. “Ele está no meu quarto. Se importa em dar a aula lá?”

Com uma estranha desconfiança de que o motivo que ela tinha me chamado ali não tinha nada a ver com aprender violão, entrei no quarto apertadíssimo e exageradamente arrumado. O violão estava fora da capa, na cama.

“Tem um banquinho para me sentar aqui no quarto? Prefiro dar aula vendo o que o aluno está fazendo.”

“Claro! Tem um banquinho na cozinha; serve?”

“Serve, claro. Obrigado” Enquanto ela foi para cozinha, tirei meu violão da capa e saí afinando o dela sentado na cama.

Ela voltou com um copo d’agua gelado, mas sem o banquinho. Eu já tinha afinado o violão.

Bebi a agua e toquei uns acordes nele. “Nossa! Tá todo afinado! Ai, estou doida para aprender, você acha ele bom para o meu tamanho?”

“Ele é pequeno, mas vai servir.”

Ela se sentou do meu lado na cama. “Posso experimentar?” Ela passou as unhas afiadas, que eu ia ter que pedir para ela cortar, nas cordas. “Viu? Não sei tocar nada.”

A fim de começar a aula e sair dali o mais rápido possível eu perguntei: “E o banquinho?”

“Você tem certeza de que precisa do banquinho?”

“Sim, não vai dar para te ensinar nada sem sentar de frente.”

“Tá bom, vou trazer, mas posso ouvir você tocar uma música antes de ir lá pegar?” Achei estranho, talvez quisesse me testar, por isso toquei Aquarela do Brasil num arranjo complicado que impressionava.

Quando terminei, dava para ver que ela estava impressionada. “Nossa, gato, como você toca bem!”

Estava pronto para começar a aula. Ela levantou, mas em vez de ir pegar o banco e sem pedir licença, ela se ajoelhou na minha frente se apoiando nas minhas pernas. 

“Sabe o que é? É que sou apaixonada por violeiros e quando eu ouvi tua voz no telefone, achei ela tão gostosa que senti que tinha que te conhecer pessoalmente.”

Fiquei sem resposta e sem ação. Depois daquilo, me deu uma olhada safada, tirou o violão da frente, abriu minha braguilha e colocou a mão dentro. As “joias da família” reagiram no ato. Sem pedir permissão, ela baixou meus jeans e aplicou seus talentos. A aula estava encerrada.

Feia, não muito inteligente e deveras comum, a Marineide não fazia o meu tipo mas era safadíssima e só saí de lá tarde da noite. Houve mais “aulas” e, viciado no que estava me dando, atravessei as barreiras de minha vida social esquizoide e acabei a apresentando aos amigos de baseados e de música. 

Foi aí que o carro entrou em cena. Num fim de semana prolongado, minha ex-possível aluna tornada amante, colocou o carro do pai dela à disposição para a galera ir para Mauá. Como ela não tinha ideia de como usá-lo, confiou na minha habilidade inexistente como motorista. O entusiasmo levou a melhor sobre o medo O paraíso hippie ficava a quatro horas de carro, duas horas e meia rodando pela rodovia mais importante do país, a Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio, e o resto subindo por estradas de terra entre as montanhas e resolvi encarar aquilo sem carteira de habilitação, contando com o pouco conhecimento adquirido com minha mãe em Teresópolis e pelo que tinha ouvido falar. .

Quando o dia chegou, passei a noite na casa dela e partimos bem cedo para a casa de Kristoff para apanhar ele e o resto da galera. Tive sorte, porque de madrugada não havia nem trânsito nem policiamento. Depois de atravessar vários sinais vermelhos, Marineide, que até então não tinha dado um pio, gritou apavorada.

“Rique!!! Você vai entrar numa contramão!”

“Cacete! É mesmo!”

 Não pensei duas vezes e virei totalmente o volante. À toda, o carro começou a derrapar, mas os pneus obedeceram, conseguindo evitar por poucos centímetros um poste que pareceu ter passado pela nossa frente em câmera lenta. Por um milagre chegamos no Leblon e pegamos a galera, todos achando graça em segredo da minha garota bigoduda, mas também contentes com a independência de poder viajar de carro. De lá fomos rumo à avenida Brasil e saímos da cidade. Como chegamos em Mauá sem um arranhão permanece um mistério, mas ao sair do carro com as pernas ainda bambas tinha aprendido a dirigir.

Sem nem imaginar a possibilidade dessa aventura, Rafael insistiu que eu pegasse aulas de direção em vez de comprar uma habilitação no departamento de trânsito, o Detran, como todos faziam. O teste que aplicavam era quase impossível de passar; a ideia era forçar a propina. Como estava prestes a viajar de férias, chegamos a um consenso: eu pegaria as aulas e eles pagariam um preço mais baixo para comprar a habilitação sem a prova, em vez de pagar mais caro para que recebesse uma carteira sem nunca ter sentado em frente a um volante.

Depois de duas semanas de aulas, fui à central de testes onde entrei no carro com o dono da autoescola e dois examinadores que mais pareciam membros do esquadrão da morte. 

Sem olhar para mim, um dos inspetores virou para trás e perguntou: “Esse pagou?”

O dono curso respondeu afirmativamente. 

Depois disso, tive somente que dar uma volta no quarteirão para receber um certificado que me deixaria “preparado” para o trânsito maluco do Rio de Janeiro.

*

Voltar

Início

Samba Perdido – Capítulo 20 – Parte 03

Haviam mais contradições. Em alguns finais de semana, deixava de lado a pretensão hippie, arrumava o cabelo, colocava uma camisa com colarinho, sapatos de couro brilhantes, cinto e calça social para ir às gafieiras. Resquícios dos dias de glória do samba nos anos 1930 e 1940, a maioria ficava em torno da Praça Tirandentes, na Lapa. Não era apenas a arquitetura que permanecia intacta, as orquestras de samba que tocavam ali também. Elas eram autênticas, lideradas por sambistas da antiga encantados por estar virando moda de novo tanto na Zona Norte quanto na Zona Sul.

Ainda mantinha a amizade com o Davi e com a galera “brima” e ia com eles. Mas quem dizia que ia lá pela dança ou pela experiência autêntica estava mentindo. Para nós, a atração maior era o monte de mulheres bonitas provenientes do lado “errado” da Floresta da Tijuca, algumas novas na cidade, interessadas em jovens do lado “certo” da cadeia de montanhas. Depois das danças de rosto colado sob luzes imitando as de discotecas havia as cervejas, os beijos introdutórios e as trocas de números de telefones. Vindos de mundos diferentes, o anonimato protegia ambos os lados e permitia casos rápidos sem a pressão dos círculos sociais mais chegados. Era raro sair de lá sem resultados. Seguindo a mentalidade da época, estávamos fazendo o que se esperava de machos latino-americanos e por mais frio que possa parecer, era isso que as atraía.

Apesar dasses sucessos, ser tímido com as garotas que interessavam e corajoso com as que não, nunca levaria a uma vida afetiva saudável. O esforço para criar uma aura bacana na esperança de atrair uma garota à altura dos meus sonhos não estava dando certo. Talvez por não ser sincero o bastante, não ter a familia suficientemente rica ou por ser esquisito demais, ou talvez por pura impaciência, o que eu queria não se materializava. Ainda por cima, havia um demônio subversivo me dizendo que a felicidade num relacionamento resultando em casamento e familia era uma fantasia que só existia na cabeça de burgueses.

*

A pressão em torno do vestibular estava aumentando exponencialmente.  A um mês da prova, a música e as festas teriam que ficar em segundo plano. Se não colocasse trabalho duro na equação, nada de universidade boa nem de tolerância em casa. Isso pedia medidas radicais e por isso fui para Teresópolis para passar duas semanas me preparando isolado.

No dia da primeira prova, acordei de madrugada. Sem conseguir pegar de novo no sono, fui para a praia para me acalmar. O nascer do sol estava espetacular e o mar estava calmo e convidativo. Mergulhei, nadei, peguei umas ondas e relaxei. Quando saí, percebi um homem na passarela olhando para mim. Parecia um Zé Pilintra vestindo um terno de linho branco, chapéu. Ele era alto, usava um bigode curto, e na hora me veio em mente Alec, meu avô por parte de mãe. Aquele encontro bizarro me deu calafrios na espinha, mas o encarei como um bom presságio.

Fui para casa, tomei banho e café da manhã e saí para pegar o ônibus rumo a uma velha escola primária no final do Leblon. Quando saltei me juntei às centenas de outros estudantes esperando no portão. depois de uns dez minutos, funcionários vestidos em jalecos vieram para nos deixar entrar. O primeiro passo era ver a sala onde deveríamos ir em um quadro de avisos. Achei a minha, entrei e fui me sentar no fundo numa cadeira escolar com braço dobrável, a parte de baixo cravejada de velhos pedaços de chiclete.

Quando deu nove horas, os portões fecharam e os inspetores, todos na faixa dos vinte anos, passaram pelas carteiras nos entregando lápis e borracha. Um pouco depois, alguém mais graduado entrou, fez a chamada e nos colocou a par das regras: nada de cola, nada de conversa e quando dissessem que o tempo acabou todos teriam que entregar as provas imediatamente. Depois disso, nos deram grossos envelopes de tamanho A4 contendo as provas e um cartão onde deveríamos marcar as respostas de múltipla escolha.

Os exames eram divididos em quatro dias. Confesso que nas provas de física e química, fui com algumas fórmulas importantes anotadas na parte de baixo das minhas calças, mas nas outras, português, matemática, línguas, história, biologia e geografia, joguei limpo.

*

Com medo do pior, no fim de semana quando os resultados seriam anunciados nos jornais, Kristoff e eu fugimos para Mauá. Acampamos perto da Maromba onde a única ligação com o mundo exterior era o telefone pago de uma pousada. No domingo que saíram os resultados, seria mais seguro ficar sabendo da notícia à distância. O plano era ligar para a Sarah que tinha passado pelo mesmo processo e não me julgaria tanto caso tivesse me dado mal.

Quando atendeu o telefone, ela já tinha procurado por meu nome. Para a absoluta surpresa de todos, eu havia passado para a UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, no primeiro semestre do seu conceituado curso de Economia, considerado o melhor do Rio e um dos melhores do país. A teoria de ser contra tudo que o vestibular representava evaporou na hora.

“Caralho, mana! Tu tá falando sério!? UFRJ, primeiro semestre??!!!”

“É, seu cagão, e ainda vai ter a moleza de estudar na Urca. ” Ela tinha cursado a mesma universidade mas no Fundão do lado do aeroporto. Mas na hora aquilo não importava, ela tinha deixado de lado sua distancia e estava contente.

“E os velhos?”

“Estão nas nuvens. Não acreditaram também. Tu é muito sortudo, mano! Um dia você ainda vai me explicar como você conseguiu essa façanha depois de tanta vagabundagem.”

“Ah, quem tem os genes da Dona Renée consegue qualquer coisa, ela nunca te contou?”

A gente riu um pouquinho. “Eles saíram para Teresópolis faz uma meia hora, ficaram esperando você ligar, mas acabaram desistindo.”

“Foi o que eu calculei.” Demos mais risadas. “Obrigadão mana, um beijo.”

“Um beijo e parabéns mano. Pode curtir à vontade aí e aguarde uma recepção de gala na volta.”

Antes de desligar, o Kristoff me deu uma cutucada e me lembrei: “Você também procurou pelo nome do Kristoff?”

“Procurei, passa o telefone para ele que eu quero dar a notícia eu mesma.”

Ele tirou o telefone da minha mão apressadamente, “Fala Sarah, tudo bem?”

A reação dele foi uma risada alta. “Ha, ha, ha, nem dá para acreditar!” Ele tinha passado para biologia para a mesma UFRJ, um dos cursos mais difíceis de se entrar, com 20 estudantes por vaga.

*

Depois daquele telefonema estávamos os dois nas nuvens. Para comemorar a ocasião especial, a gente resolveu experimentar a mais recente coqueluche alucinógena da galera: chá de cogumelos. Mauá era conhecida por tê-los e o clima estava perfeito para que brotassem, ensolarado após alguns dias de chuva pesada.

Corremos para as pastagens próximas, mas não encontramos nada. Nossas esperanças se reascenderam quando alguém nos disse que certamente encontraríamos alguns nas pastagens de Campo Alegre, um vilarejo a 40km. O problema era que o nosso único meio de transporte era nossos pés, mas tínhamos bastante obstinação para sair numa caminhada de quase um dia inteiro para colher nossos fungos dourados.

Fomos na hora. A caminhada exaustiva valeu a pena: encontramos um campo cheio deles e colhemos o que conseguimos sob o olhar ameaçador do touro dono do pedaço. Tínhamos que ser cuidadosos: havia duas espécies parecidas de cogumelos nas pastagens. Os dois eram do mesmo tamanho e com o mesmo formato. O que queríamos tinha listas pretas na parte de baixo, o outro tinha listas brancas e era venenoso. Quando terminamos, depois de um momento de euforia, caímos na real e lembramos de que ainda tínhamos a longa caminhada de volta pela frente.

De volta ao acampamento, cansados, aproveitamos os últimos minutos de sol para um mergulho merecido no rio. Quando estávamos prontos para a noitada, resolvemos não fazer um chá já que daria trabalho demais, simplesmente abrimos a bolsa, dividimos a colheita, três para cada um, e os comemos. Eram parecidos com cogumelos comuns só que tinham um sabor mais marcante. Contudo, naquela altura o aspecto culinário era irrelevante.

Já estava escuro quando voltamos para a estrada, dessa vez com os instrumentos debaixo do braço. Tivemos sorte de pegar uma carona. O dono do carro era um casal mais velho de paulistas procurando uma pousada depois da Maromba. Eles estavam ansiosos para saber se tinhamos dicas de bons restaurantes bons e lugares para conhecer na área. No banco de trás, olhando pela janela, tentando responder suas perguntas, comecei a sentir a cabeça ficar leve. Quando saímos e vimos as luzes do carro se distanciar no escuro da estrada de terra, já nos encontrávamos em território psicodélico.

Estávamos na praça da Maromba – um quadrado de terra delineado por poucas casas, um armazém, um bar e uma igreja. Para não sair numa tangente incontrolável, tivemos o bom senso de ir ao bar. Sendo o único nas redondezas, era o lugar onde a malucada se encontrava à noite para levar um som. As únicas outras luzes ao redor vinham do armazém no outro lado do terreno baldio.  O pessoal da terra se reunia lá para beber bebida barata em torno de uma mesa de sinuca. Os dois grupos respeitavam o espaço do outro. Uns completamente chapados de um lado e os outros igualmente passados por uma mistura fatal de cachaça com o famoso mel da região do outro.

Já havia dois caras sentados na mesa principal do nosso bar dedilhando alguma coisa no violão. Perguntamos se podíamos afinar com eles e saímos tocando. Com quatro pessoas tocando o pessoal foi chegando. Depois de um tempo, Leandro, a estrela musical da nossa turma, que mais tarde se tornaria o guitarrista predileto do Cazuza e que chegou a tocar com Roberto Carlos, apareceu e fez o som decolar para as alturas. Mais tarde, autointitulado padrinho dos músicos de Mauá, o lendário e veterano Serginho do Mel, também apareceu do nada pedindo para gente fazer uma levada de blues. Mais pessoas foram se juntando e no final, deveria ter uns sete ou oito músicos captando o que os espíritos tinham a dizer sobre a beleza das montanhas e o que a lua prateada e as estrelas acima dela estavam achando daquela noite.

A população de doidos da Maromba acabou comparecendo em peso e, eufórica, se juntou participando com o que quer que pudesse aumentar a energia – cantando versos improvisados, batendo palmas, batucando nas mesas e nas paredes frágeis do bar ou simplesmente dançando. Como num quadro louco de Van Gogh, a música, o lugar e as pessoas se misturaram num transe que durou horas.

Não me lembro como aquela explosão de psicodelismo terminou e nem onde dormi. Só sei que de manhã, quando fomos tomar nossa dose diária de leite tirado da vaca e quase todos da noite passada estavam lá na fila. Enquanto esperávamos a coitada da vaca dar seu leite para aquela malucada, todos comentavam o quanto o som tinha sido bom. Aos poucos fomos descobrindo que todos os músicos tinham comido cogumelos, mas não sabiam que os outros também tinham e isso virou a piada da cidade.

Passamos o resto do dia curando nossas ressacas no escorrega, um tobogã aquático natural que ficava depois da Maromba, se espatifando na água gelada depois de pegar velocidade nas pedras. Aqueles choques térmicos nos trouxeram de volta à vida normal e à lembrança de que tínhamos deixado o pesadelo do vestibular para trás com uma vitória.

Voltar

Início

Samba Perdido – Capítulo 18 – Parte 01

Capítulo 18

 

“Terra…

Por mais distante, o errante navegante,

Quem jamais te esqueceria?”

 

 Caetano Veloso

 

O novo destino ficava a uma caminhada de duas horas e meia pelas praias desertas. Sob o sol escaldante, encarei aquilo com as tralhas nas costas. Esse era o único caminho possível, não havia estrada nem trilha, e só dava para ir na maré baixa, já que na alta um trecho ficava perigosamente submerso. Já integrado no ecossistema, sabia a que horas ir e me safei do apuro.

O fim da andada era uma estradinha sem sinalização que subia pelo meio do mato até um plateau. A aldeia, cercada pela floresta tropical, consistia de uma formação retangular de cabanas em torno de um campo de gramado enorme e bem tratado. No final do tapete verde em frente do mar, fechando o que todos chamavam de quadrado, havia uma igreja colonial caiada dominando a aldeia.

Foi amor à primeira vista. A tarde já estava começando a cair e as sombras das casinhas estavam começando a cobrir o gramado. O cheiro gostoso de pasto verde foi um refresco depois daquelas horas cansativas, secas e quentes ao lado da agua salgada. A beleza era impressionante, a pureza do ar conferia ao oceano lá embaixo uma tonalidade turquesa profunda que ficava maravilhosa ao refletir o azul marinho do céu. A sofisticação cênica daquela pequena comunidade parecia incompatível com seu isolamento.

Sem saber onde ia passar nem aquela nem as outras noites do resto do mês que planejava ficar ali, parei no único bar de Trancoso, localizado na também única esquina do quadrado, logo na entrada da aldeia. A construção era simples; um balcão estreito de frente para uma pista de dança ampla – certamente de lambada – onde havia algumas mesas espalhadas. O teto era seguro por troncos de madeira. Havia várias pessoas de fora bebendo cerveja e curtindo o fim de tarde ali. Quando viram um violão puxaram assunto na hora.

“E aí? Sai um som dessa viola?”

“Claro que sai! Mas agora não dá, acabei de chegar a pé de Ajuda, só dá para beber uma cerveja.” Não queria tocar mas também não dava para dar uma de antipático. Antes de ir pegar minha gelada e sentar para relaxar falei. “Se tem alguém aí que quiser tocar, à vontade.”

Um cabeludo mais velho sentado com uma estrangeira hiponga bonita, loura de olhos azuis, se levantou e perguntou: “Se importa?”

“Sem problema nenhum!”

Tirei o violão da capa e ele deu uma conferida enquanto fui pegar minha cerveja. “Um Del Vecchio antigo! Isso é artesanal! Tu é doido de trazer um violão desses para cá!”

“A viola está adorando o Sul da Bahia, não se preocupe com ela.” 

Sem se impressionar com minha resposta, mas fascinado pelo instrumento o cabeludo intenso sentou num banco, posicionou o violão como quem sabia o que estava fazendo, deu uma verificada na afinação e saiu tocando uma das Bachianas do Villa-Lobos deixando todos de boca aberta.

Quando terminou, o cara que tinha me dado as boas vindas falou: “Caralho, mineiro, tu tava escondendo o jogo! Esmirilhou!”

“Tô meio enferrujado, tava precisando tocar. Esse violão é bom demais! Não resisti.”

Depois da primeira, vieram mais duas Bachianas, todas soando especiais naquele lugar. Quando terminou passou o violão de volta. Antes que tivesse que inventar uma desculpa para não ter que passar o vexame de tocar depois dele, ele perguntou:

“Como é teu nome?”

Disfarçando a pressa em colocar a viola de volta na capa respondi. “Rique.”

“Valeu, Rique, gostei do violão. Meu nome é Carlos, mas me chamam de Mineiro.” Ele olhou em volta como quem busca aprovação e continuou.” A gente está na concentração antes de bater uma pelada, os de fora contra os da terra, você pode jogar? Tá faltando um no nosso time.”

Com todos pressionando, não tinha como dizer não. “Vambora! Só que vou avisando logo: sou pereba ”

“Aqui só tem pereba, vamo nessa!”

Aquela resposta era típica de quem jogava bem e não deu outra. Quando o jogo começou senti o quanto as noitadas, a farra e a caminhada tinham me afetado. Estava numa forma vergonhosa e a cerveja antes do jogo não estava ajudando. A grama e as pedras estavam castigando as solas dos pés. Mesmo assim, tentando não dar vexame, fiquei na “banheira” quase o jogo inteiro e consegui marcar um gol. Contudo, mais competitivos por estar defendendo a honra da terra e bem mais em forma, os nativos venceram de goleada. 

Depois do jogo voltamos para o bar para amargar a derrota com mais cervejas. Já estava escuro e menos intimidado pela habilidade do mineiro, mais solto pelo jogo e pelo recarregamento etílico, tirei a viola e comecei a tocar cedendo a pedidos insistentes. Como em Ajuda, não demorou muito para que outros músicos se juntassem e ajudassem a disfarçar minha perebagem musical. Para meu alívio, talvez horrorizado pela minha inabilidade, o mineiro saiu logo com sua estrangeira loira. O dono do bar acendeu a lamparina de querosene e nossa música ficou quebrando o silêncio do resto do vilarejo. 

Conforme a noite foi avançando, as pessoas começaram a ir embora. Quando o bar já estava quase vazio, alguém me interrompeu. “E aí, carioca, vai ficar aonde hoje à noite?”

“Ainda não sei, se bobear acho um canto no gramado e estico o saco de dormir lá.”

“Que é isso?! Vai dormir que nem mendigo?! Aqui não tem disso não! A gente te arruma um lugar!” O cara virou para o dono do bar. “Seu Manoel, tem um quarto na aldeia aqui para o violeiro?”

Seu Manoel torceu a cara. “Tem não, nessa época do ano tá tudo tomado.”

“E na casa do Chileno? não tem um quarto sobrando?”

“Chegou um casal de gaúchos lá ontem à noite.”

“E aquelas irmãs de São Paulo, tomaram a casa do Sebastião toda?”

“Só pegaram um quarto. É, talvez lá tenha.” O seu Manoel virou para o filho sentado do lado. “Raimundo, dê um pulo na casa das meninas e pergunte se pode dormir mais um lá.”

Meio desconfortável com tanta cerimônia perguntei: “Para que tanto auê? Onde eu esticar o saco de dormir tá bom. Pode ser no quadrado ou até debaixo de um coqueiro na praia, não tem problema.”

“Fica tranquilo, carioca, a gente vai te descolar um lugar.”

Me lembrando da experiência com as brasilienses, fiquei vendo o moleque desaparecer no campo escuro e depois reaparecer do outro lado em frente às janelas iluminadas por velas e lâmpadas de querosene. 

O seu Manoel já tinha simpatizado comigo. “Deixe o Raimundinho voltar, se as paulistas disserem que não, tenho uma ideia.” 

Marquinhos, o cara que tinha me dado as boas vindas, falou: “Já sei, a cabana do Pará lá perto da praia!”

“Essa mesmo, e o rapaz vai poder ficar lá de graça. Acho que o Pará já arrumou comprador, faz umas duas semanas que ele sumiu.”

Não demorou muito para o filho do seu Manoel votar: “Elas disse que não quer mais genti na casa.”

“Esquenta não, carioca.” Marquinhos me deu uma olhada maliciosa. “A gente desconfia que elas não são irmãs coisa nenhuma, mas sim um casal de sapatonas, não iam querer um cara estragando a festa, né?!”

Um cara com um sotaque gaúcho que até então estava quieto deu uma risada e falou: “Aê violeiro, vai dizer que tu não ia querer ser o recheio daquele sanduíche?”  

Achando a observação despropositada e constrangido pelo esforço do pessoal, não dei trela para a brincadeira e perguntei: “E essa casa do tal do Pará?”

O brincalhão respondeu: “O lugar é até melhor do que aqui em cima, o problema é que é um barraco de palha no meio do mato, não tem nada por perto. Chegar lá a noite vai ser coisa de Tarzã.”

O seu Manoel falou: “Não exagere, Gaúcho, o rapaz chega lá fácil.” Aí ele se voltou para mim. “Nem precisa de chave, é só chegar lá, abrir a tranca de madeira e empurrar a porta. Não se preocupe com bicho, é só deixar a casa fechada que eles num entra.” 

“Que tipo de bicho!?”

O dono do bar, um sujeito moreno de meia idade com uma barriga respeitável, deu uma risada. “Aqui só dá galinha e porco, e volta e meia um jegue, não se aperreie!”

Mesmo que soasse roubada, não dava para recusar. Meio envergonhado, aceitei a generosidade e eles passaram a me explicar como chegar lá.

“Você desce a estrada da praia por onde você subiu, essa aqui do lado. Depois de uns trinta metros você vai ver uma trilha à direita. É só seguir toda vida que você vai dar na porta do barraco. Não tem erro.”

O Gaúcho, ainda achando graça, emendou: “Te prepara porque tem um rio no meio.”

 De novo não dei muita atenção, mas por via das dúvidas perguntei: Dá para deixar o violão aqui? Amanhã passo pra pegar.”

“Claro que dá, meu filho!”

Agradeci, botei a viola na capa e dei para ele guardar. Peguei a mochila, dei boa noite para o pessoal e fui encarar o caminho. Noites sem lua como aquela em particular eram excelentes para observar estrelas cadentes, mas faziam a visibilidade nula. Na estrada de terra ainda dava para enxergar alguma coisa, mas no mato estava um breu completo. Fui me guiando pelo barulho da água correndo ao longe, sentindo a areia com os pés e me escorando nos troncos das árvores com a mão.

A visibilidade voltou quando alcancei o rio. Na clareira, percebi que a outra margem ficava a uns seis metros de distância e pensei em desistir. Em vez disso, imaginei o mico que pagaria se voltasse dizendo que tinha ficado com medo e criei coragem e comecei a travessia no leito lamacento da água morna. Conforme a profundidade foi aumentando, barulhos de sapos e de outras criaturas da noite me fizeram pensar em cobras, animais estranhos e peixes carnívoros.  Numa dada altura, a água chegou quase a altura do peito e a correnteza tornava difícil equilibrar as tralhas na cabeça.

Do outro lado avistei a porta da cabana no final da trilha de areia. Como o seu Manoel tinha dito, a tranca era fácil de abrir. A claridade criada pela porta aberta revelou uma vela colada numa mesa. Revistei a mochila e achei a caixa de fósforos e liguei a vela. A chama fraquinha iluminou as paredes de madeira com argila, o chão de areia e o telhado de palha. Os únicos móveis eram aquela mesa rústica e uma cadeira feita a mão do lado. Fiquei digerindo aquele cenário e o cheiro acre e úmido. O vento soprando do mar estava uivando alto. Ele tirava o abafado da casa mas fazia a porta, as janelas e as árvores em volta baterem balançarem em uma coreografia sinistra. Estranhamente, a luz da chama pareceu me proteger e fez com que a cabana se tornasse aconchegante. Ainda ensopado, abri meu saco de dormir, o estendi no chão e assim que deitei caí num sono profundo.

*

O sol entrando pelos buracos da janela me acordou de manhã cedo. Ainda dava para ouvir o vento que agora, mais suave, permitia escutar o canto dos pássaros e as ondas quebrando ao longe. Saí do barraco para ver como aquilo era de dia. Fora minhas pegadas deixadas na noite passada, a areia em torno da casa tinha apenas pegadas de caranguejos e de pássaros. A paisagem em volta era densa e estava colorida pelo sol ainda tímido filtrado pela maresia. Naquele momento, o mundo era apenas a cabana, o mato ao redor e a presença da praia ao longe. Aquela paz especial me levou mentalmente ao início dos tempos.

Naquele estado quase místico caminhei até a praia que não ficava longe. Assim que a mata abriu, cruzei a areia, mergulhei no mar e nadei por um bom tempo até chegar a uma distância boa da costa. Na água funda, com aquela paisagem só para mim e com o corpo recomposto pelo exercício matinal, fiquei boiando e apreciando aquele espetáculo. Aquele paraíso ficava a poucos quilômetros de Santa Cruz de Cabrália, onde os primeiros pés europeus haviam tocado o país-continente. Este era o lugar onde aquelas almas ocidentais plantaram as sementes de um novo país. Naquela hora e local ficou fácil imaginar a flotilha chegando. Será que alguém naqueles navios tinha pensado que havia algo a aprender naquela terra linda? Não teria sido uma oportunidade para começar algo novo e melhor? Talvez não fosse tarde demais. Apesar dos horrores que seguiram, a carta de Pero Vaz de Caminha descreve um encontro festivo de civilizações, quem sabe a saga ainda não pudesse terminar bem?

 *

voltar

seguir

início

 

Samba Perdido – Capitulo 16 – parte 02

O hotel Sol de Ipanema era o único de frente para o mar na Avenida Vieira Souto. Ele ficava quase na esquina com a Rua Montenegro – mais tarde renomeada de Rua Vinicius de Moraes. Era em frente dele que minha turma de amigos mais caretas; Mauricio, Jaime, Hélcio, Davi, Leo e companhia pegavam sua praia. Apesar de todas as minhas transformações, ainda era colado com eles. Aquele ponto era para lá cômodo; quase na saída da rua que caminhava de casa para ir a praia.  

Numa manhã ensolarada de sábado, ali com a praia ainda vazia, Davi e eu estávamos sentados na beira d’água descansando do bodyboard. De repente um cara magro mas com um corpo bem definido, por volta dos 40 apareceu na nossa frente e começou a jogar frescobol numa tanga fio-dental de crochê escandalosamente minúscula. O cara até que jogava bem, mas depois de um tempo de ficar olhando para aquilo ligeiramente incomodado, virei para o Davi e perguntei.

“E aí, Davi? Quer de natal uma tanguinha como a do teu amigo?”

Davi nem se dignou a responder, mas passado alguns minutos a cara dele acendeu. Ele me cutucou e cochichou no meu ouvido, “Rique, aquele não é o Gabeira?”

Davi estava se referindo ao jornalista Fernando Gabeira, um dos exilados mais famosos que, em 1969, tinha se envolvido no sequestro do embaixador americano no Rio, Charles Elbrick. A sua autobiografia O que é Isto, Companheiro?  era leitura obrigatória. Todos tinham lido, inclusive eu. Era um relato na primeira pessoa de como tinha sido o mundo das organizações de luta armada. Nele, descrevia como tinha se envolvido naquela situação, como tinha participado do sequestro do embaixador americano, como tinha sido o cativeiro do diplomata e como finalmente tinha sido preso. Depois, relatava sua estadia na prisão, sua troca junto com alguns companheiros por um outro figurão estrangeiro e na sequência, sua vida no exílio. 

O livro virou polêmico na esquerda brasileira porque, além das críticas tanto à metodologia quanto aos objetivos da luta armada, o ex-militante confessou que durante aqueles tempos heroicos tinha sido ativamente bissexual. Lançando esse escândalo na veia jugular da militância, agora exposta como retrógrada ao invés de vanguardista, surfando na onda da fama, Gabeira abriu um caminho alternativo de resistência ao regime e à burguesia, que denominou “política do corpo”. O que ele realmente quiz dizer com aquilo é ainda hoje motivo de debate. Só sei que um receituário para revolução prescrevendo honestidade consigo mesmo, rejeição à imposições de qualquer lado e pregando o sexo livre caiu bem em Ipanema.

“Sei não, Davi, só vi a recepção dele no aeroporto na televisão. Não dá para dizer, mas pela tanguinha é capaz.”

“Tenho quase certeza que é. Vou dar uma olhada na contracapa do meu livro quando chegar em casa, tem uma foto dele lá.”

De noite, Davi me ligou confirmando a identidade do cara da tanguinha, era o Gabeira mesmo. O mais estranho é que devia ter um fotógrafo na área seguindo o ex-guerrilheiro, porque no dia seguinte, jornais de um lado a outro do país estamparam suas capas com uma foto do ex-guerrilheiro em seus trajes mínimos bebendo mate gelado, em frente ao Sol de Ipanema.  

*

As praias do Rio tinham – e ainda têm – uma programação e uma demarcação territorial rígida. Isso permitia a qualquer um dizer: “Diga-me quando e onde você toma sol que eu te direi quem és.” Agora, de madrugada os pescadores de Copacabana – que também pescavam em Ipanema – dividiam o mar com surfistas. Na areia, praticantes de Yoga e Tai Chi solitários meditavam sob os primeiros raios de sol enquanto corredores e ciclistas se exercitavam no calçadão. Mais tarde, da mesma forma de quando era criança, a posse da praia passava às famílias, incluindo crianças, mães, avós, babás, cães e todos os outros componentes da vida doméstica brasileira. Depois das nove da manhã o surfe era interditado. Quando tinha onda, o mar era dos pegadores de jacaré e a tarde o domínio voltava aos surfistas. Nos fins de semana, por volta do meio-dia as famílias voltavam para casa e daí para frente, tanto as pessoas que chegavam como as que ficavam faziam as subdivisões da praia mais interessantes.

Havia o local para os fisiculturistas e para os lutadores de Jiu-jitsu. Claro que havia um local para os yuppies. Outro segmento era uma extensão da cena gay. Havia um point para os surfistas, uma área para os favelados, uma para a as “patricinhas” e os “mauricinhos” endinheirados, outra para as profissionais do sexo – não coincidentemente a mesma para os turistas – e uma área reservada para os jogadores de futebol e suas comitivas de fãs e puxa-sacos. 

O local da praia onde tínhamos visto o Gabeira, inicialmente conhecido como o Sol de Ipanema, era o Posto Nove, ou simplesmente o Nove – o nome derivado da estação de salva-vidas número nove que ficava em frente ao Hotel Sol de Ipanema. 

Fazia pouco tempo que traineiras e guindastes tinham cortado a onda da galera das Dunas do Barato demolindo a estrutura do Pier de Ipanema. Depois que a foto do Gabeira de tanga percorreu o Brasil inteiro, o Nove herdou o status de Woodstock carioca. Por décadas a área seria o reduto dos seguidores das ideologias e dos estilos de vida dos anos 1960 e 1970. Aquela era a praia dos artistas, dos músicos, dos atores e dos intelectuais – tanto os já estabelecidos quanto os que viriam a se firmar e os que nunca iam dar em nada. Alguns diziam que os Beatles haviam profetizando sobre aquele trecho das areias de Ipanema na sua música mais estranha: Revolution Number Nine.

Com a chegada da abertura política, bandeiras dos partidos de esquerda recém-legalizados passaram a balançar sobre as cabeças dos frequentadores em meio à bagunça sob o céu azul. Enquanto a festa-praia tomava corpo, os garotos da barraca do Batista corriam de um lado para o outro levando garrafas de cerveja em isopores e as caipirinhas mais saborosas das praias do Rio.

O cheiro constante de cannabis no ar era abençoado por um acordo tácito entre a polícia e a galera do Nove: uns não davam trabalho para os outros; os frequentadores se restringiam àquela área e em contrapartida os policiais não vinham encher o saco ali. Contudo, durante campanhas eleitorais, o acordo às vezes era quebrado sob a pressão de candidatos conservadores. Só que quando as batidas aconteciam, a galera afugentava os polícias com vaias e na confusão todos enterravam os flagrantes o que fazia com que prisões fossem raras.

Mas não era só a fumaça que caracterizava o local. Sempre havia rostos famosos curtindo sua praia de fim de semana, os gays que iam lá eram mais desinibidos e volta e meia haviam casais se beijando abertamente, um ultraje na época.

Foi lá também que aconteceram as primeiras tentativas de topless urbano no país. Contudo, não demorou muito para que o Nove se visse avançado demais para a caretice do país. Quando as meninas tiravam a parte de cima do biquíni, atraiam a curiosidade indesejada de um pessoal que não pertencia à área. Homens com uma atitude medieval; muitos deles jovens, alguns até aspirantes a surfista, favelados, marombeiros, pais de família branquelos e barrigudos, se aglomeravam empurrando uns aos outros para espiar aqueles peitos corajosos no céu aberto com uma mistura de fascínio e de repúdio. Muitas dessas confusões acabavam com uma chuva de areia em cima das beldades ou com intervenção policial. Uma vez, um sujeito que estava com elas resolveu tomar suas dores. Ele se levantou, baixou o calção e fez com que seu pinto encolhido pela água dissipasse a urubuzada na hora. Talvez essa fosse a política do corpo que nunca cheguei a entender.

*

Conforme os novos frequentadores foram tomando conta do pedaço, meus amigos passaram a se encontrar em outro ponto da praia, mas eu fiquei. Embora rejeitassem a “erva maldita”, o Davi e o Hélcio acabaram entrando na minha onda. Os dois também não tinham muito saco para seus papos caretas e, como eu, estavam cientes de que rolava mais possibilidades de sexo com as malucas do Nove do que com as meninas caretíssimas que tinham se juntado à nossa turma.

Eu conhecia outras pessoas que frequentavam a praia ali: os malucos do Colégio Andrews, gente que tinha conhecido na balada e nos shows e membros da esquadrilha da fumaça da Escola Americana. Não era preciso marcar de se encontrar com ninguém, só era necessário comparecer. 

O Nove era um clube. Conhecidos ou não, passávamos o dia conversando sobre mulheres, música, cinema, futebol e política. Quando o sol ficava muito forte ou se o papo ficava chato, havia o oceano em frente nos convidando para dar uma renovada. Tomávamos longos banhos de mar, “pegávamos jacaré” quando as ondas estavam boas ou jogávamos frescobol quando não. As meninas que interessavam também iam lá. A paquera e os olhares fatais não cessavam entre as toalhas estendidas na areia. 

Na hora que o sol começava a se pôr, a areia esvasiava e o clima se tornava intimista e sereno. O Nove se tornava mágico, não só por causa da beleza da praia com a luz do sol mais branda, mas também por causa da quantidade de gente bonita, jovem e situada. Havia uma paz derivada de um dia bem aproveitado ao ar livre, os corpos curtidos pelo sol, amaciados pela água salgada e agora envoltos pela brisa do fim de tarde.

Nos melhores dias, a praia terminava com todo mundo aplaudindo o sol de pé enquanto ele desaparecia no horizonte ao lado do morro Dois Irmãos. Depois disso, todos seguiam seus próprios caminhos, normalmente indo para casa para tirar um cochilo antes de sair para alguma festa ou um show sobre os quais todos tinham conversado mais cedo na praia. Neles, aquela tribo de almas livres e bronzeadas se re-congregava.

Voltar

Seguir

Inicio

Samba Perdido Capítulo 14 – parte 02

Apesar das frustrações no departamento amoroso, se é que  podia ser chamado disso, a gente adorou o pré-Carnaval do Recife. No Rio, a classe média fugia da folia para descansar, mas ali todos faziam questão de ficar e participar. A cidade inteira entrava na onda e ficava de cabeça para baixo. À noite, havia a tradição do “Mela-Mela”. Blocos improvisados cruzavam pelas ruas abarrotadas de foliões que passavam melando uns aos outros, conhecidos ou não, com uma mistura de água, açúcar e farinha que preparavam em casa. Nossos anfitriões fizeram questão de fazer alguns sacos da coisa para a gente. É claro que era previsível que dois caras de fora seriam mais alvos do que atiradores. Nós revidamos, mas quando nossa munição acabava, tinhamos que voltar para casa parecendo dois pães franceses crus mas felizes e exaustos da diversão.

Nos fins de semana, durante o dia as pessoas passeavam em carros sem portas e em caminhões alugados jogando baldes de água nos passantes. Nas calçadas, as vítimas os aguardavam com jatos d´água de madeira de um metro e pouco de comprimento preparadas para revidar. Quando os carros passavam, era uma guerra e os embates aconteciam em meio a gritos e gargalhadas. A tia do Davi nos avisou para tomar cuidado com as coisas que as pessoas podiam colocar na água, mas nunca saímos cheirando a algo estranho.

O primeiro baile de pré-Carnaval daquele verão foi na parte velha da cidade, junto ao porto. A praça, o Marco Zero, ficava numa área que, por causa do arranjo estreito das ruas e das lojas mal cuidadas, parecia com o pano de fundo de um velho filme preto e branco passado no Oriente Médio, mas com prédios coloniais europeus e povoada por caribenhos.

O ritmo do Recife é o frevo, que para nós parecia uma batida militar acelerada com um quê de africano. Nos bailes, ele era executado por uma sessão rítmica considerável, acompanhando uma orquestra de metais tocando arranjos rápidos e complexos. O jeito tradicional de se dançar aquele ritmo envolvia agachar-se e pular no ritmo da música agitando um guarda-chuvas. Porém a multidão na Praça da Sé estava bêbada demais para acrobacias. Quando a música pegava fogo, a sensação era parecida com a de se estar em um show de punk-rock, onde ninguém sabia ao certo se estava brigando ou se divertindo. Tínhamos que ficar dando cotoveladas acima de nossas cabeças para não sermos atingidos naquela enxurrada de loucura musical.

Chegou uma hora que os organizadores pararam a música e ergueram uma garrafa de whisky nacional, anunciando “Boa noite, povo do Recife! Esta aqui uma garrafa de uísque Drury’s, o melhor do Brasil. Ela vai para o folião mais animado desta gente maravilhosa. Quem está animado aí?”

A praça foi ao delírio.

“Então vamos ver quem é o mais animado de vocês, valendo essa garrafa!”

A banda voltou a tocar e a turba caiu no frevo ainda mais enlouquecida.

*

Algumas semanas mais tarde, o Carnaval começou oficialmente e nós tínhamos duas opções. A primeira delas era ir para Olinda, a cidade histórica ao lado do Recife, onde as autoridades fechavam a cidade para carros pelos quatro dias inteiros. Fora os inúmeros blocos nas ruas da cidade, havia sempre no mínimo quatro ou cinco orquestras de frevo tocando em diferentes lugares ao mesmo tempo. Podíamos pular de Carnaval em Carnaval e nos juntar às multidões que nunca tinham menos de mil pessoas.

A outra escolha era ir aos bailes de Carnaval em Recife. Nos primeiros três dias escolhemos a primeira opção: o Carnaval de rua de Olinda, mas, apesar da animação não obtivemos sucesso com as garotas. No último dia, para tentar mudar nossa sorte, partimos para a segunda alternativa, onde talvez a receptividade feminina fosse ser maior. Foi assim que acabamos no Carnaval do Sport Clube do Recife, sede do famoso clube de futebol.

A entrada estava apinhada. O ingresso era barato e havia uma mistura de gente do povão e de gente rica, sócia do clube. No salão havia uma grande orquestra de frevo no palco. A música estava pegando fogo, o Carnaval lotado e o clima incrível. Havia pessoas dançando onde quer que podiam – na pista, nas mesas e nas cadeiras. Volta e meia tocavam o hino do clube e o refrão levantava todo mundo.

“Este ano o Sport vai ser mesmo campeão,

Todo mundo vai cantar e dizer, ninguém segura o Sport não!”

Depois de semanas de frustração, mas agora inspirados pela animação e por muita cerveja, obtivemos sucesso. A maneira de se “pegar” as garotas, quase todas de saias curtas e vestindo a camiseta do clube, era sair as agarrando pela cintura. Não precisava falar nada, o próximo passo era dançar um pouco ao redor da pista e depois arrastá-las para um canto do lado de fora e lá tentar chegar o mais longe possível.

Depois de fazer isso com várias, “peguei” uma morena maravilhosa. Como as outras, a levei para o escuro ao lado da barraca de cerveja. Ela era bem nova, com certeza menor de idade, cabelo macio, carnuda, deliciosa de se pegar. Quase não deu para ouvir o nome dela por causa da música alta, mas entendi que se chamava Gê. Com ela o amasso foi mais intenso do que com as anteriores. O jeito que ela me deixava pegar nela e a maneira com que se esfregava na minha “barra de balas drops” me diziam que, pela primeira vez na vida, havia a possibilidade de levar a coisa para o próximo nível.

A certeza bateu quando ela falou no meu ouvido: “Ah, seu carioca gostoso, estou ficando louca.”

Embriagado pela cerveja e pela a sexualidade dela, sem motivo para ter vergonha na cara respondi: “Você já me deixou louco faz tempo, está sentindo isso? Ele está doido para te conhecer todinha.”

“Aff, seu maluco, deixa eu sentir. Hmmmm…, ela apertou, deu uma olhada safada e disse: “Assim eu não aguento. Vem comigo!”

Ela pegou na minha mão e foi me guiando. A gente se afastou do Carnaval. Depois de passar por umas casinhas dentro do clube chegamos num portão semiaberto e entramos na área da piscina do clube. Depois de mais amassos, descemos uma escadinha e fomos parar na sauna que estava vazia e com a luz desligada.

“Num se preocupe, carioca, eu sou sócia do clube e ninguém vem aqui à noite.” Estava tudo escuro, mas dava para ver ela se sentar em um dos degraus. “Venha cá, meu lindo.”

Apesar de mais nova, ela parecia ter mais experiência na coisa. No meio dos beijos, ela me agarrou e perguntou. “Não tiraste a camisa ainda?! Tire agora!”

Enquanto colocava a camisa no chão, ela foi se esfregando e entendi que era para eu também tirar a camisa dela. Em silêncio, acabamos nus. Depois da delícia da pele contra pele, ela se recostou de joelhos num dos degraus. “Eu gosto assim. Vem.”

Foi a melhor coisa que já tinha experimentado na vida.

*

O ônibus saía às dez da manhã do dia seguinte, quarta-feira de cinzas. Cheguei na rodoviária virado e exaurido pela Gê. A gente tinha amanhecido na beira da piscina, ido tomar café numa padaria e depois passamos para pegar minhas coisas. Ela ficou me esperando embaixo enquanto me despedia de meus anfitriões. Querendo que ficasse, acabou vindo até a porta do ônibus para os últimos amassos na frente de todo mundo.

Embarquei sozinho, o Davi ia ficar com uns amigos que tinham vindo para o Recife.

Por coincidência, alguns dos membros da banda que tinha tocado no Carnaval do Sport Club Recife pegaram o mesmo ônibus. Não eram frevistas mas tocavam as marchinhas de carnaval enquanto a orquestra de frevo descansava. Eram todos ligados à escola de samba Unidos de Vila Isabel e ainda estavam em clima de folia. A festa continuou pela viagem inteira: 43 horas com muita bebida e batucada no ônibus até voltarmos ao Rio. Quando cheguei em casa, tomei café e depois de um banho mergulhei na cama de onde não saí pelas próximas 24 horas. Tudo seria diferente depois daquela injeção na veia de frevo, suor, Recife e Gê. Meu tempo de aprendizado teórico sobre o Brasil tinha acabado. Agora só queria saber das aulas práticas. Volta e meia pensava na minha recifense, mas apesar de a gente ter trocado telefones, nunca mais tivemos contato.

Voltar

Seguir

Início