Samba Perdido – Capitulo 06, parte 02

Nietzsche, o filósofo anti-religioso alemão, escreveu que grandes mudanças entram em nossas vidas como pombos pisando leve ao entrar em uma catedral, ou talvez no caso uma sinagoga. Tudo começou com uma inocente partida de futebol. Todas as terças e quintas a Escola Britânica nos levava a um campo de futebol oficial em Botafogo. Tal como a confusão que estava por acontecer, tudo naquelas partidas era desproporcional: o campo era grande demais para meninos de dez anos e a distância entre as traves era grande demais para os goleiros. Quando driblávamos um adversário e olhávamos adiante, ainda parecia haver quilômetros para se chegar ao gol. Para os passes, quase não dava para ver os companheiros e as corridas eram exaustivas. Para piorar as coisas, o professor levava as nossas atuações a sério e parava tudo para marcar o menor dos erros.

Foi um alívio ouvir o apito final. Não via a hora de pegar o ônibus da escola que nos levaria ao clube Paissandu onde iria jogar uma nova partida muito mais agradável de futebol de salão. Quando entrei o motorista perguntou meu nome, olhou a lista e me mandou descer. Alguém na secretaria tinha se confundido e havia me colocado na lista das crianças que iam voltar para casa em vez das que iam ao clube. Em pânico, sem saber o que fazer e ansioso pela confusão que o erro ia causar, contei o problema ao professor mas ele disse que não podia fazer nada. Sem querer aceitar um não como resposta, pedi uma carona a um amigo que estava indo para o clube após sua aula de judô na escola. Ele disse que sim e o professor concordou, mas não deve ter contado para mais ninguém.

Voltamos para a escola onde todos, fora nós dois, pegaram seus ônibus para casa. Fiquei uma entediante hora e meia no pátio vazio assistindo o instrutor jogando o Martin para lá e para cá ao redor do tatame.

Depois da aula, quando sua mãe chegou e ouviu sobre a carona, deu uma bronca no filho dizendo que ele sabia que não ia ao clube depois do judô. Com pressa de voltar para um compromisso em casa não ia dar para me levar até o Leblon. Contudo, entendendo a situação que o filho tinha me colocado e sabendo que não tinha como me deixar sozinho na escola, ela se viu obrigada a me dar uma carona até Copacabana, que ficava mais à mão. A caminho de casa, fiquei pensando no tamanho do problema.

Quando não apareci no clube com o ônibus escolar, dona Renée telefonou a escola para perguntar o que havia acontecido. Alguém atendeu e deu a resposta inacreditável de que não ninguém sabia. Essa era uma época em que a guerrilha urbana sequestrava estrangeiros para trocá-los por camaradas na prisão. Obviamente não pertenciamos ao grupo de risco – diplomatas e altos executivos – mas a paranoia fez com que Renée saisse ligando para todo mundo.

Ao me ver chegar em casa, a empregada já enlouquecida pelos telefonemas incessantes da patroa, entrou em parafuso. Alguém teve a ideia de me colocar num táxi para ir ao clube. Ela e o porteiro, Zé, desceram na rua e chamaram o primeiro que apareceu. Da minha parte, aquilo era uma aventura eletrizante; ali estava eu, com dez anos de idade, andando de carro sozinho com um motorista desconhecido e me abaixando sempre que passávamos por policiais porque, na minha cabeça, aquilo era ilegal.

Quando minha mãe descobriu o que havia ocorrido, ficou furiosa. As coisas pioraram quando ficou sabendo que o novo diretor, um ex-oficial disciplinador da Marinha Real, havia me culpado pelo incidente. Começaram a aparecer avisos nos murais dizendo que todos podiam fazer isso ou aquilo menos eu porque que era um irresponsável. Meus pais decidiram que a marcação era inaceitável.

Foi assim que deixei o casulo protetor da Escola Britânica para entrar no universo escolar brasileiro. Na verdade, o início da experiência não foi cem por cento brasileiro. Meus pais resolveram me colocar numa escola judaica, o Eliezer Steinbarg, uma aposta segura, até que soubessem o que fazer comigo. De minha parte, a mudança foi bem-vinda. O porém é havia obstáculos; as salas tinham pelo menos o triplo de alunos, as aulas eram em português, o currículo era mais avançado em ciências e em matemática e havia matérias que teria que começar do zero: o hebraico com seu alfabeto diferente, o iídiche e a história judaica. Quando a poeira baixou me dei conta de que, igual na Escola Britanica, era bem diferente dos meus colegas. Como era de se esperar, diante de minha situação social frágil havia novos inimigos a encarar.

*

Apesar da escolha da escola judaica e da herança cultual, meus pais – assim como todos seus amigos – se viam como ateus. No entanto, quando ficou patente que a estadia no Brasil era permanentemente, decidiram utilizar a religião para dar aos filhos um senso de identidade. Os rituais foram ficando mais presentes. Começamos a acender velas de Shabbat nas noites de sexta-feira e a observar os feriados religiosos mais importantes. Nos tornamos sócios de uma sinagoga, a ARI, a Associação Religiosa Israelita, uma congregação não-ortodoxa de judeus asquenazis – provenientes da Europa do Leste.

Embora fosse divertido encontrar amigos no templo, detestava a formalidade pretensiosa daquela congregação orgulhosamente pertencente à classe média alta. Nas datas importantes o lugar lotava. Igual a todos, íamos para marcar presença. Tinha que colocar minhas melhores roupas e ficava incomodado de ter que andar pelas ruas de Copacabana parecendo um principezinho boióla enquanto todos continuavam levando suas vidas normalmente.

No dia mais solene do calendário religioso, o Yom Kippur – o dia do perdão – a nação inteira jejuava por vinte e quatro horas e a vida girava em torno de súplicas pelo perdão divino. Na ARI, os adultos permaneciam dentro da Sinagoga se submetendo à uma maratona interminável de sessões de orações. Conforme o dia ia passando, lutavam contra suas culpas e contra a fome e a sede crescentes. Enquanto isso, meus amigos e eu ficávamos do lado de fora, de saco cheio sem ter o que fazer.

O ponto alto do feriado – e do calendário Judaico – era seu fechamento apoteótico. Concluídas as vinte quatro horas de jejum, rezas e meditações silenciosas, fechavam a arca que guardava os textos sagrados. Em seguida o rabino chamava um especialista para tocar o Shofar; um chifre de carneiro transformado em instrumento musical. Seu toque ritual soava como um trompete alto. Aquele som era como um chamado de um passado longínquo no deserto, conclamando o povo nômade a despertar para algo que ainda estava mais vivo que nunca.

*

O único milagre alcançado nessa, e em outras, datas importantes era o de nos sentirmos mais judeus. No entanto, acima das tradições religiosas e da memória do Holocausto, naquela época o que mais unia a nação era o Estado de Israel. O mundo havia ensinado à geração de meu pai que, se você fosse um judeu vivendo numa terra estrangeira o povo local podia atirar você e sua família numa câmara de gás por ódio e por preconceito. Fariam isso sem se importar no que você acreditasse ou como você fosse enquanto indivíduo. Tudo isso dentro da lei e com a benção do Estado. Para aquela geração, uma pátria judaica era a única forma de garantir a sobrevivência dos seus descendentes. O fato de que isso tivesse acontecendo na terra prometida ao seu povo na Bíblia era nada menos do que intervenção divina.

Com os triunfos militares, veio a transformação de uma nação de vítimas indefesas em uma potência militar. Uma febre eufórica varreu o mundo judaico e nossa casa não foi exceção. Rafael só lia livros escritos pelos líderes sionistas e fazia doações generosas à causa. Em nossos círculos, a mera menção dos palestinos era considerada traição. Mesmo assim, uma parte de mim não comprava aquele entusiasmo. Por toda a história da “terra prometida”, pouquíssimas partes envolvidas em seus inúmeros e infindáveis conflitos entenderam que estabilidade e segurança exigem compromissos. Uma agenda nacionalista de ateus usando a Bíblia como justificativa para tomar posse exclusiva de uma terra alheia considerada santa pelas três maiores religiões do mundo, lar de uma população que vivia lá a séculos, pronta para lutar para reaver o que era dela, acabaria certamente em tragédia.

Pude ter uma ideia clara sobre a vida em Israel por intermédio de um de meus melhores amigos, Uri. O pai dele, Ossi, cunhado do Paulo, trabalhava com meu pai. Quando jovem, serviu o exército de Israel na guerra da independência e veio para o Brasil logo depois. Nascido e criado na França, com um charme a lá Humphrey Bogart fazia sucesso com as brasileiras. Porém, como mandava a tradição, acabou se casando com uma belíssima ex-atriz israelense, mãe do Uri e do seu irmão mais novo, Dicki. O casamento acabou não dando certo e ela voltou para sua terra com os filhos

Os irmãos não queriam ir. Também não queria fossem, éramos como família. Pelo menos a amizade sobreviveu já que os dois passariam a vir todos os anos para o Rio a fim de passar as férias com o pai. os dois me fizeram ver como era difícil a vida na “Terra Prometida”. Israel era um país sitiado, sempre em pé de guerra, com alistamento obrigatório de três anos para todos os meninos e todas as meninas e com constantes ações e ameaças terroristas. Os irmãos  me fizeram reconhecer a sorte de estar crescendo no Rio. No entanto, o que mais chamava a atenção sobre a maneira deles encararem o conflito, era que enxergavam os palestinos como seres humanos, mesmo durante e depois de servirem o exército. Por outro lado, Rafael e seus amigos – que nunca teriam que enfrentar um inimigo armado em um campo de batalha – os enxergavam como sub-humanos e tinham opiniões muito mais agressivas. Eu via em Uri e em seu irmão uma forma mais saudável de ser judeu, livre da claustrofobia da comunidade judaica do Rio de Janeiro. Aquela perspectiva me ajudou a impedir que o antissemitismo, real ou imaginário, moldasse meu caráter.

*

Como é o caso com qualquer garoto “brimo”, quando fiz treze anos chegou a hora do meu Bar Mitzvá. Nessa cerimônia de iniciação seria convidado a ler das escrituras sagradas na frente da comunidade. O primeiro passo foi conseguir um professor. Nossa preferência era o cantor principal da sinagoga, o chasan Aaronson, um homem imponente com uma voz poderosa. Ao entoar as preces com sua voz ensurdecedora, balançava seu corpo freneticamente enquanto contorcia seu rosto. Inacreditavelmente, o cuspe que jorrava da sua boca acabava parando até em seus óculos fundo de garrafa. O problema era que suas aulas eram caras demais. Daí partimos para a segunda opção: um cantor baixinho e gorducho, também por volta dos 60 anos, que também usava óculos fundo de garrafa mas que cantava mais introspectivamente e usava uma indumentária menos dramática. Seu status era secundário, principalmente depois de caír em desgraça pelo de seu hábito de cochilar em frente à congregação em ocasiões importantes.

No começo fiquei fascinado pelas aulas. A parte da Torá que ia recitar versava sobre o ano sabático, algo que a partir dali consideraria um conceito utópico que, caso adotado, colocaria o mundo de volta nos trilhos. A lei ditava que a cada sétimo ano, todos os israelitas – bem como sua terra e seus servos – deveriam descansar por um ano inteiro. Ao fim de 49 anos, isto é, depois de sete sabáticos, quem quer que houvesse comprado terra nesse período, deveria devolver a propriedade aos donos originais para que, no final, ninguém se tornasse mais rico ou pobre que os demais.

O professor dava aulas em casa em Laranjeiras, um bairro para mim afastado. As lições eram num quarto abafado cheirando a mofo. Nelas, aprendia como cantarolar meu trecho em hebraico bíblico. Ficávamos repassando aquilo uma vez atrás da outra, sentados em cadeiras desconfortáveis e nos escorando numa velha mesa de madeira coberta de pilhas de livros religiosos. Depois da terceira ou quarta aula, a experiência passou a ser insuportável. Tinha que lutar para me manter acordado todas as vezes que aquelas páginas se abriam na minha frente.

Um dia, completamente do nada, senti – e depois vi – a mão gorda do meu mentor rastejando pela minha coxa e indo parar no meu “shlong” de treze anos de idade. Ele continuou a ler o livro e a agir como se nada estivesse acontecendo. Apesar de ter sido só uma apertadinha, fiquei completamente chocado e sem vontade nenhuma de voltar para aquela salinha.

Quando contei para meus pais o que havia acontecido e pedi para não ter mais que pegar aulas, acharam que a minha “história” era só mais uma desculpa. Para minha sorte, seguindo o plano de curso da sinagoga, aquelas aulas terminaram logo e passei para a próxima etapa; os ensaios finais no shul – ou sinagoga em iídiche. Com isso, de uma só tacada, me vi livre da chatice tortuosa e da bolinação. Porém, meu respeito pela religião organizada tinha sido abalado.

*

No dia da grande ocasião, a sinagoga estava cheia de rostos conhecidos; amigos do Rafael e da Renée, amigos de escola e do futebol. Até a Bibi tinha comparecido. Estava tão nervoso que fiquei com um tique no olho que durou semanas. Quando minha hora chegou, o jovem rabino de Nova York, ruivo com um bigode e óculos redondos – parecido com o Ned Flanders dos Simpsons – me chamou para ler a Torá. Quando acabei, deu um sermão constrangedor dizendo entre outras coisas supérfluas, que eu gostava de dançar rock e de fazer surfe.

Caso fosse um judeu ortodoxo, aquilo teria sido um rito de passagem. Daquele dia em diante seria responsável por meus atos em termos de punições e de recompensas divinas. Mas não foi nada daquilo. Para os meus pais tinha sido o prosseguimento de uma tradição obsoleta e uma oportunidade para provar seu status social. Para mim, tinha sido uma obrigação e uma desculpa para ganhar presentes caros.

Depois de tudo terminado, havia de fato passado para uma nova etapa de vida: meu cabelo estava crescendo ao mesmo tempo que os hormônios estavam modificando meu corpo e a minha voz. Minha iniciação para tinha acontecido na praia pegando ondas grandes e nas machanés. Passei a ver a sinagoga como um ponto de encontro para coroas que, sob a pretensão de serem religiosos, iam ali para cultivar contatos comerciais e profissionais. Aquele teatro e a pegadinha do professor nunca representariam o caminho para uma verdade superior.

Já que a norma adotada pelos judeus modernos era a de ser ateu, por que deveria perder meu tempo com aquilo? Se queriam usar tradições do Leste Europeu e o medo para me manter preso dentro de uma cerca, o plano não funcionaria no Rio de Janeiro dos anos setenta. Além disso, apelar para o sionismo como forma de me manter na comunidade era ridículo: se nossos pais haviam escolhido emigrar para o distante Brasil em vez de terem tido a coragem de lutar por Israel, que comprometimento podiam exigir de nós?

Um dia durante o jantar tentei conversar com meu pai em ídiche, que estava aprendendo mal e porcamente na escola. Ele ficou horrorizado ao me ver falar a sua língua natal e resolveu me tirar do Eliezer Steinberg. Vai entender…


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Samba Perdido – Capitulo 06, parte 01

 

 Capítulo 06 

 

“…HaShem disse a Moisés: Dize aos filhos de Israel: 

És um povo de dura cerviz (pescoço duro).”

Torá.

 

Estava orgulhoso por ter sido escolhido para patrulha que ia capturar a bandeira inimiga. Depois de separar os outros grupos e de explicar o que cada um deles iria fazer, nosso madrich, ou instrutor, Mauro Lieberman – que todos chamavam de – dispensou os outros mas­ chamou a gente para o quarto dele. Cheios de moral e sob os olhares interessados de algumas das meninas, saímos do refeitório e atrás dele. Chegando lá, fomos entrando e sentando no chão. Com todo mundo dentro, nosso chefe fechou a porta, se sentou conosco e abriu um caderno numa página com um esboço do sítio.

“Pessoal, a bandeira deles vai estar aqui, no meio do campo de futebol. Vai ter um círculo grande de cal em torno dela, não vai ter como perder. O grupo que vai lá são o Richard, o Davi, o Marcos e o Hélio.”

Ele olhou em volta para ver se todos estavam acompanhando. “Vocês vão usar essa trilha aqui no meio do mato. O grupo do Murilo, Samuel, Sérgio e Marcelo vai descer para o campo também, mas vai pela estrada principal, essa daqui. A ideia é usar o grupo do Murilo para atrair atenção dos caras enquanto o outro grupo pega eles de surpresa.”

Estavamos estranhando a seriedade do Maurão, um cara meio largado com ar de hippie. “Por isso você, Murilo, e você, Samuel, vão ter que dar uma canseira neles.”

A gente teve que rir. Murilo Berkovitz e Samuel Goldfarb eram dois trogloditas da Tijuca. Todos sabiam que eram inteirados – de verdade – na malandragem do bairro. Era impossível não ter medo deles. Já dava para ver a cara do pessoal do time azul tremendo na base.

Maurão olhou para o meu grupo continuou. “Quando chegarem na metade da trilha, vocês vão ter que entrar pelo mato para sair aqui na beira do campo.”

Ele apontou para o lugar no mapa. “Aqui vocês ficam na espera. Na primeira bobeira que eles derem, vocês saem correndo. Daí vocês já sabem; é pegar a bandeira e partir para o abraço.”

Já gostando da possibilidade de sairmos como heróis daquela mini guerra, respondemos que ía ser mole vencer aquele bando de otários.

Maurão encerrou a reunião levantando e dizendo “Vamos lá pessoal, vamos vencer essa parada!”

Saímos do quarto nos sentindo a própria tropa de elite saindo de uma reunião secreta no quartel general.

*

Dois dias depois, o jogo começou num clima agitado com a participação de todas as cinquenta e poucas pessoas que estavam ali. Seguindo o plano, as meninas e os caras mais quietos foram para o alto do morro defender a nossa bandeira. Enquanto isso, o Murilo e a sua turma pegaram a estrada principal e a gente se embrenhou pelo meio das árvores. Passado um tempo, começamos a ouvir os gritos do inimigo correndo atrás do grupo deles e chegando perto das nossas defesas.

Avançamos mais lentamente que o esperado porque o inimigo tinha colocado sentinelas ao longo da trilha. Para nos livrar deles nos espalhamos pelo mato antes do ponto que o Maurão tinha falado. Lá, quer por falta de empenho quer por falta de cuidado, um a um, meus camaradas foram sendo eliminados juntos com o pessoal do Murilo. As “mortes” aconteciam quando um adversário lia em voz alta o número nas nossas braçadeiras. Terminei como o único sobrevivente no ataque. Agora sozinho, fui seguindo em frente até conseguir me esconder no meio de uns arbustos a poucos metros do campo onde fiquei deitado, esperando pela hora certa.

A defesa do inimigo estava preocupada. “Ainda tem um escondido no mato”, gritou um deles. “Ele está ali! Ouviram este barulho?! ”

Ledo engano, para despistá-los, estava atirando pedras do mesmo jeito que os comandos americanos faziam na minha série de guerra favorita, Combate!  Teve uma hora em que os pés de um deles passaram a poucos centímetros do meu nariz, mas continuei ali, incomodado pelos insetos, a apenas uma breve corrida da bandeira inimiga.

De repente teve um reboliço, um do time deles, Bruno Feldstein, um cara sardento, gorducho e metido a inteligente, voltou apressado da nossa base dizendo a todos que o ataque deles estava indo bem. A comemoração antecipada foi minha oportunidade e fui à luta. Saí correndo e quando perceberam o que estava acontecendo houve uma gritaria e um bando deles veio para me pegar. Me alcançaram a poucos centímetros do círculo de cal. Uma tempestade de braços me agarrou e tentou tirar minha mão direita da identificação no braço para me “matar”. Só faltava um passo e, usando toda minha força, consegui levar todo mundo comigo. Dentro do círculo ninguém podia mais me tocar. Como um último sobrevivente cercado por zumbis, levantei a bandeira do time azul e dei fim àquele jogo de guerra.

Aquele exercício marcou o encerramento de duas semanas de meio colônia de férias, meio seminário, ou machané, num hotel-fazenda com o nome ídiche Kinderland. Ela tinha sido organizada pelo Ichud Habonim, a organização sionista à qual eu pertencia. Para falar a verdade, o objetivo desse e de vários outros “movimentos” – que era como a comunidade se referia a eles – era o de nos convencer de que quando chegássemos à idade adulta nos mudássemos para Israel e servissemos seu exército. Para tanto, tentavam incutir uma forte dose de nacionalismo judaico por meio de preleções sobre como nossa povo – como qualquer outro – tinha o direito de viver na sua própria terra sem temer pogroms, inquisições, expulsões ou holocaustos.

Contudo, apesar da sua popularidade e dos pacotes que organizavam para irmos passar o verão em kibbutzim em Israel, o índice de sucesso no recrutamento de soldados da classe média carioca era baixíssimo. A maioria dos pais encarava essas organizações apenas como uma maneira de perpetuar a identidade ancestral da família e de tirar uma folga das crianças nas tardes de sábado e durante as férias. Quanto a questão do serviço militar, morriam de medo que os abandonássemos para acabar envolvidos numa guerra. Com notórias exceções, para nós esses encontros eram apenas uma maneira de nos divertir. A parte didática era um saco. De qualquer forma, vale ressaltar que apesar de nenhum madrich abordar questões fundamentais acerca da legitimidade de um estado exclusivamente judaico naquele lugar em específico ou sobre o destino dos palestinos, o ódio e o racismo não faziam parte da pauta.

*

Ainda não é claro se ser judeu significa pertencer a uma nação, fazer parte de uma religião ou seguir uma tradição. Qualquer que seja a resposta, a introdução foi dolorosa. Quando tinha apenas dez dias de vida, um cara de barba longa vestido de preto se aproximou com uma lâmina afiada, entoou uma canção estranha e daí cortou meu prepúcio sem dó nem anestesia. Depois de colocar um algodão para estancar o sangue e de limpar sua lâmina, o rabino abençoou aquele corte que seria o meu passaporte para uma família estendida que, de acordo com a crença, teria começado há quatro mil anos com um sujeito chamado Abraão.

Além da dor inenarrável que não me lembro, esse rito me jogaria num mundo de contradições, mitos e preconceitos ligados ao que talvez seja o povo mais esquisito do planeta. Ele também faria que meu pênis tivesse uma aparência diferente da dos de meus amigos de futebol e, numa perspectiva mais ampla, determinaria com quem deveria me casar, quem deveria ser meu amigo e qual estilo de vida deveria seguir. Por um terceiro ângulo, ele também ditaria quem iria querer se casar comigo e quem iria querer ser meu amigo.

Em casa, meus pais achavam tudo isso positivo; sua família e seus amigos também – afinal, fazia parte do que éramos. No mundo mais amplo, nem todos pareciam concordar. Quando tinha uns cinco anos abri, por acaso, um livro grosso sobre o Holocausto. Não sabia ler, mas dava para compreender as fotos de judeus religiosos chorando momentos antes de serem executados, de soldados ameaçando crianças com metralhadoras, de pessoas esqueléticas em pijamas listrados atrás de cercas de arame farpado com rostos sem expressão e de pilhas de corpos em valas comuns. Seu único crime tinha sido o de terem nascidos tão judeus quanto eu.

Nos anos 1960, essa experiência ainda era uma cicatriz fresca, profunda e mal disfarçada na comunidade. Todos os adultos tinham as suas histórias mas raramente falavam delas, só sabíamos o que ouvíamos por terceiros. A mãe de uma amiga que passou a guerra adotada por freiras, o conhecido de meu pai que tinha ido a pé da Romênia até a Palestina depois de ter visto sua família ser fuzilada, a mulher do Peter que tinha sido colocada num trem de crianças refugiadas na Bélgica e que nunca mais viu seus pais depois daquilo. Esse peso se manifestava em medos, neuroses e na desconfiança para com os não judeus. Para os que vieram depois, restou a questão complicada de como lidar com esse legado.

Por outro lado, em um país latino americano governado por uma ditadura tradicionalista, o catolicismo apostólico romano era uma presença forte no dia a dia – os evangelicos só apareceriam uma ou duas décadas mais tarde. Mesmo no futebol, agora tão importante para a mim, os heróis de meu time e da seleção faziam sinais da cruz sempre que marcavam gols e os comentaristas de futebol viviam usando bordões religiosos. Na vida cotidiana era igual – Ave Maria, cruz credo, minha Nossa Senhora, ai Jesus e por aí a fora – surgiam na maioria das conversas.

Na Escola Britânica as coisas eram um pouco diferentes. Meus colegas de sala eram em sua maioria protestantes. Isto fazia deles, pelo menos teoricamente, mais tolerantes. Como o único garoto judeu da turma – tanto na escola quanto no clube – era poupado dos estereótipos ligados à minha gente. Por me considerar um deles, se sentiam à vontade para me contar coisas estranhas que tinham aprendido em casa sobre nós com as quais não podia concordar. De acordo com minha experiência pessoal, sabia que éramos nem mais nem menos pão-duros do que pessoas de outros povos, sabia também que não éramos conspiradores perversos empenhados em dominar o mundo. Além disso, nunca tinha ouvido falar de ninguém beber o sangue de crianças cristãs durante a páscoa judaica, muito menos em qualquer outra época do ano. Ao contrário, para mim, a comunidade mais parecia um monte de gente desengonçada e neurótica.

Como fazem os garotos, queria fazer parte da turma. Por isso, embora negasse esses absurdos, fazia pouco caso do seu teor ofensivo. No fundo, porém, sabia que existia algo de fundamentalmente errado em ser forçado a ser um judeu enrustido. Vivendo entre os goyim – o nome dado aos não-judeus –  simpatizava com a história de Moisés crescendo na corte do Faraó e às vezes me perguntava onde isso ia parar.

A única coisa certa, era que pertencer ao “povo escolhido” por Deus era estranho. A própria palavra “judeu” fazia com que pessoas virassem as costas ou produzissem sorrisos sem qualquer motivo lógico, dependendo de quem a escutava ou de quem dizia.

Esses absurdos se juntavam a um monte de outras perguntas. Por que gente que nem nos conhecia pessoalmente nos odiava a ponto de contemplar um extermínio em massa? Era culpa deles ou, de alguma forma, nossa? Quanto ao aspecto religioso havia questionamentos igualmente fundamentais: onde estava Deus quando pessoas inocentes imploravam nas câmaras de gás? se havia um único Deus e todos – cristãos, judeus e muçulmanos – acreditavam nele, por que não chegar a um acordo? Não seria isso que o criador iria querer das suas criaturas? Será que iríamos todos para paraísos diferentes quando morrêssemos? Ninguém jamais conseguiu me responder qualquer dessas perguntas de maneira convincente.

 

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