por Richard Klein | 13 mar, 2021 | Brasil, Comportamento, Crônica
Foto: arquivo O Globo
O Asdrúbal herdou a posição de abelhas rainhas da malucada carioca que tinha pertencido antes aos Novos Baianos e depois ao revolucionário chique Fernando Gabeira. Aproveitando essa onda, o grupo resolveu virar promotor cultural e, com a ajuda da prefeitura do Rio, abriu um espaço próprio na forma de um circo de verdade no Arpoador, um minibairro entre Copacabana e Ipanema. O nome que deram foi “Circo Voador”, copiado dos Rolling Stones que tinham feito algo parecido na psicodélica Londres dos anos sessenta.
Enquanto isso, os cursos do Asdrúbal viraram um tremendo sucesso. Havia umas cinco ou seis turmas de cerca de trinta alunos. Quando terminavam, faziam apresentações de peças que eles mesmos tinham escrito com a ajuda de seus mentores. Todas eram boas e falavam diretamente às plateias abarrotadas de jovens. Todo mundo queria vê-las e os alunos mais dedicados continuavam de uma forma ou outra atrelados ao grupo.
Depois de montado o Circo se tornou o palco principal dessas apresentações. Só que a proposta da turma do Asdrúbal ia além do teatro; a ideia era criar um espaço alternativo para todas as formas de expressão. No tocante a música, o circo mudou tudo; com ele veio uma enxurrada de bandas de rock novas. Para a nova geração, as outras casas de shows, além de caras, só se interessavam em cabeludos esquisitos do Nordeste com os quais não se identificavam, bichos grilo, e as já antiquadas estrelas da música popular brasileira.
A piada que corria na boca do pessoal que ia ao Circo era que sob aquela tenda só tocavam dois gêneros: o “rock” e o “roll”.
As bandas que surgiram lá não tinham na a ver com as dos cabeludos viciados barra-pesada dos anos setenta. Agora elas podiam ser, e às vezes eram, de colegas da escola ou da faculdade, amigos e vizinhos. Para nós, não eram estrelas, eram conhecidos, ou conhecidos de conhecidos, eletrisando a moçada com seus instrumentos amplificados. Se o que motivava os shows nos anos setenta era passar algumas horas sem o peso da ditadura e da pressão da família, agora o que motivava essas guitarradas era dar um tempo da crise e o caos curti9ndo uma noitada com bandas sem nenhum conteúdo intelectual mas com muita energia. Aquele espírito se espalhou pelo país e definiu o rock como a expressão cultural da classe média jovem nos anos oitenta.
Olhando para aquele momento em retrospecto, o Circo Voador marcou o fim de uma época em que a Zona Sul do Rio ditava os gostos musicais e culturais para o resto do Brasil. O centro logo se mudaria para São Paulo, onde o mercado era muito maior e a indústria fonográfica era mais estruturada. Como o rock daquela época era umbilicalmente ligado ao que acontecia no Reino Unido e nos Estados Unidos com sua estética urbana, o estilo de vida paulistano tinha muito mais a ver. Brasília também era e marcou presença fornecendo um monte de bandas boas, entre elas carros chefes como a Legião Urbana e os Paralamas do Sucesso. O contato direto de filhos de funcionários públicos de alto escalão com diplomatas de fora e com estadias no exterior, e o tédio inerente à cidade certamente ajudando na formação daqueles talentos.
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Se pertencer a grupos de teatro não tinha me apetecido, o mesmo não valeu ao sonho de formar uma banda. Depois de ir a alguns shows no Circo, tive certeza que tinha condições de tocar para aquele público e decidi ir em frente. Para o desespero dos meus pais, comprei um amplificador barato e uma guitarra elétrica com o pouco dinheiro que tinha sobrado da venda do Blues Boy. Com ela, estava pronto para uma carreira na ribalta do rock.
A mudança do violão para a guitarra elétrica foi como trocar uma bicicleta por uma moto. Agora podia balançar as paredes do meu quarto com uma simples palhetada numa corda. Devido a ninguém em casa estar feliz comigo tinha que segurar o volume, mas nos finais de semana quando meus pais iam para Teresópolis, minha irmã ia para a casa do namorado e Dona Isabel ia para a casa dela, as coisas eram diferentes. Com o apartamento só para mim, me sentindo como um rei louco num castelo miserável, a fera surgia. Ligava a guitarra no apmlificador, colocava o volume no máximo e saía atazanando os ouvidos dos pobres vizinhos.
Comecei a escrever músicas. Usava momentos que aconteceram nos sons que levei durante minhas viagens e novas ideias que foram surgindo. Por um breve momento tive certeza de que esse era meu destino. Tentava misturar rock com ritmos brasileiros. Esse tipo de mistura tinha causado controvérsia nos dias dos festivais quando Caetano Veloso tocou Tropicália com uma banda de rock argentina e foi vaiado. A receita continuou a ser utilizada por artistas nordestinos como os Novos Baianos e Alceu Valença que faziam a versão roqueira das suas culturas regionais e deu certo. Agora, aqui estava eu, um garoto de Ipanema de origem judaica e britânica, trabalhando com a ritmos regionais brasileiros e tentando fazê-los soar como rock pesado. O problema foi que nos anos 1980, o rock e a música brasileira tomaram caminhos divergentes, ambos se tornando mais “puristas” e antagônicos. Bandas fazendo esse tipo de música somente conseguiriam se estabelecer uma geração mais tarde, com artistas como Chico Science e a Nação Zumbi, mas na época minhas fitas cassete com gravações caseiras foram rejeitadas por todas as gravadoras e produtores que as receberam.
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Talvez devido à sua experiência no Nordeste, Pedro também havia abandonado a Economia e resolveu seguir o seu chamado para ser artista plástico. Para tal, se inscreveu no curso de artes do Parque Laje. Foi uma boa decisão. O curso era excelente. As turmas eram pequenas o que permitia uma atenção especial dos professores. Além disso, depois do Circo, esse era o lugar mais badalado da Zona Sul do Rio de Janeiro. A sede do parque, onde davam o curso, era uma mansão enorme em estilo italiano clássico que parecia surreal nos seus arredores tropicais. O palacete tinha sido construído por um milionário no século 19 e era tão bem conservado que atrás dele ainda havia as ruínas de uma senzala, agora transformada numa gruta com camas de pedra cobertas de musgos que causavam calafrios em quem entrasse.
As aulas eram no pátio interno da mansão. Famoso, ele tinha aparecido em alguns dos mais importantes filmes do Cinema Novo, como a obra-prima de Glauber Rocha, Terra em Transe e em Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. Nos anos 1970, também havia sido palco de shows e de peças de teatro memoráveis mas por causa da reclamação de vizinhos, tinha fechado. Só que agora, depois de alguns anos de silêncio, o local foi reaberto mais uma vez como um lugar para shows. Nos finais de semana, ele passou a competir com o Circo Voador para atrair os maiores talentos e os melhores corações e mentes daquela geração de cariocas. Na minha adolescência tinha visto shows excelentes ali: Alceu Valença, Zé Ramalho, a Barca do Sol, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, o Terço, entre vários outros. Nos anos 1980 iria ver Ultraje a Rigor, Ira, Legião Urbana, Camisa de Vênus, Cazuza, Lobão e muitos outros. Por ser da casa, a Blitz só se apresentava no Circo.
Uma das apresentações mais marcantes que aconteceu no Parque Lage, unindo as duas gerações do rock, foi uma do Raul Seixas. Junto com a Rita Lee, Raul era o padrinho musical da nova geração. Os seus temas libertários conferiam aos seus shows uma aura anárquica, quase satânica. Naquela noite, a casa estava lotada. Seu público era especial; havia muitas figuras estranhas que pareciam ter saído do passado, mais a ver com os hippies de Mauá do que com a galera bronzeada do Posto Nove.
Quando Raul subiu no palco uma hora atrasado todos foram ao delírio com a lenda viva. Só que depois das primeiras músicas ficou patente que a idade e as coisas que tinha tomado haviam tido um efeito negativo. Ele estava esquecendo as letras no meio das músicas e parecia meio letárgico. Mesmo assim, o teatro quase veio abaixo quando tocou clássicos como Mosca na Sopa e Gita. O show terminou com a canção Sociedade Alternativa. Como de costume, no final da música Raul recitou as leis que regeriam a tal sociedade alternativa, todas muito legais e cabeça aberta. A última lei, no entanto, foi para causar efeito.
“Na sociedade alternativa o homem terá o direito de matar aquele que o incomode.”
Após mandar a bomba, saiu do palco. A banda parou de tocar logo depois e também foi para os camarins. Aquela frase continuou no ar de uma forma meio incômoda. Um cara com ar de ativista político universitário subiu ao palco e, inconformado com o que o Raul tinha dito, pegou no microfone ainda ligado e protestou.
“Companheiros, descordo do que o Raul disse. Não estamos aqui para cultuar o assassinato, deveríamos estar celebrando a vida numa noite maravilhosa dessas!”
Aquele minidiscurso caiu mal com o público do Raul e veio vaia de tudo quanto é lado.
“Sai daí, seu veado!”
“Vai falar merda pra tua mãe!!!”
“Desce daí, seu filho da puta!”
O cara, um sujeito franzino de óculos e com cabelo black power, continuou: “Podem vaiar, vocês ouviram bem o que o Raul disse? Isso é coisa de animal!”
As vaias aumentaram e alguém jogou uma lata de cerveja nele.
“Isso mesmo, podem jogar lata, mostrem que vocês são um monte de ignorantes.”
Depois do convite, latas, garrafas e tudo mais em que o público conseguiu pôr às mãos literalmente choveram no palco. O teatro era a céu aberto e quando olhava para cima parecia que tinha uma mangueira jorrando projéteis. O cara desceu correndo, o Raul não voltou para dar o bis, mas, mesmo assim, a galera ficou gritando o seu nome como num ritual primitivo.
“Raul! Raul! Raul!”
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Apesar da cena dantesca, a Escola de Artes Visuais do Parque Laje (EAV) era uma das melhores da cidade. O reconhecimento aconteceu quando o curso que Pedro estava fazendo decidiu juntar forças com a faculdade de Belas Artes da Universidade Federal e com alguns pintores já consolidados, para pintar os muros de concreto do parque. Todos contribuíram com criações incríveis. Aquele exercício ganhou uma cobertura ampla na imprensa e acabaria definindo quem seria quem na “Geração 80”, o movimento mais importante da década nas artes plásticas. O muro do Parque Lage foi a porta de entrada para muitos artistas se estabelecerem como profissionais. Para os convidados já estabelecidos em gerações anteriores, o evento os colocaria sob a égide daquele movimento.
O Pedro pintou um dos pedaços do muro e com isso se tornou um membro oficial da “Geração 80”. Aquilo abriu as portas para que circulasse de cabeça erguida entre as “pessoas interessantes” com as quais sempre desejou se relacionar. Com o seu novo status, agora era o Pedro quem passou a me introduzir a círculos sociais que eram de fato interessantes. Nunca consegui curtir, nem respeitar, muito menos usar cortes de cabelos chamativos e artificiais e roupas vanguardistas. A despeito disso, com o preconceito fora da equação, descobri muita criatividade e contestação por trás das máscaras, apesar da superficialidade das comitivas. Dessa forma, me tornei um participante periférico da nata da estética dos anos oitenta que me haviam estragado o Nordeste.
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por Richard Klein | 6 mar, 2021 | Brasil, Conto, Crônica
Capítulo 31
“A gente somos inútil.”
Inútil - Ultraje a Rigor
Voltei para casa exausto. Dois dias depois, quando me recuperei, ao invés de estar contente por ter vivido uma viagem épica e de poder me deleitar novamente nos confortos que sempre tinha considerado como dados, a sensação foi de estranhamento. Ter uma empregada para arrumar minhas coisas, um quarto só para mim e comida sempre à disposição sem que precisasse trabalhar para nada daquilo parecia errado. Apesar da mordomia, me sentia como um animal enjaulado numa existência protegida que agora parecia limitada e limitante.
O clima estava péssimo. Renée e Rafael, ansiosos e um tanto decepcionados comigo, achavam que minhas aventuras tinham ido longe demais. estava perdendo um tempo precioso; precisava tomar um rumo na vida, fazer sentido, mudar de visual e de atitude. Para um casal já idoso e com o passado complicado deles, ver o filho largado daquela maneira era difícil . O método paterno de mostrar descontentamento foi o de sempre; passar semanas sem me dirigir uma palavra, uma postura passivo-agressiva à qual já tinha me acostumado. Do lado da materno, muita gritaria e ofensas.
A liberdade que vivi no Nordeste era incompatível com aquela realidade. Não era só em casa; na faculdade e nos outros círculos era como se todos tivessem voltado para a sala de aula menos eu. Nada me interessava e passei a achar tudo e todos insuportáveis. Me sentia como Ícaro, caído dos céus por ter voado alto demais, ou Gulliver, imobilizado por liliputianos por não caber em seu mundinho.
Lá fora a situação também estava pesada. Por conta da crise econômica, o instinto de gado era rei e todos estavam mais caretas do que nunca. Para manter minha identidade e meus princípios vivos, tinha que nadar contra uma corrente de medo e de conformismo. Visto de fora, parecia que havia perdido o contato com o que se considerava a realidade do dia a dia; um cidadão de segunda classe a ser evitado.
Foi difícil voltar às aulas. O curso estava se aprofundando em teorias micro e macroeconômicas, cálculo e outras matérias exigentes. Completamente fora de sintonia, não tinha nem a concentração nem a vontade para continuar. A necessidade de digerir o que estava acontecendo, meu sonho antigo de ser diretor de cinema, a descoberta da música, a falta de pessoas com quem me identificasse, a distância da minha família e dos amigos, a falta de um relacionamento amoroso para ajudar a amenizar o caos; tudo era difícil.
Precisava de tempo e espaço para refocar. Pedi a meus pais para que me deixassem passar um ano trabalhando em um kibutz, um tipo de comunidade agrícola anarquista em Israel, mas a resposta foi um sonoro não. Para eles, o tempo de diversão e divagações tinha se esgotado. Agora era hora de virar homem e trabalhar duro para construir um futuro. É claro que os argumentos faziam sentido mas não encontrava nem forças, nem razão para pairar acima daquele mar de confusão e capitular.
Para complicar as coisas, um dia Rafael, já nos seus 80 anos, passou mal ao sair para almoçar no escritório, desmaiou no elevador e seus funcionários, assustados, o levaram depressa a um hospital. Quando fomos vê-lo no CTI, os médicos disseram que seu coração estava fraco. Ainda que em retrospecto isso fosse previsível dado ao stress que estava passando, o episódia e a notícia pegaram a família de surpresa.
Meu velho estava enfrentando o caos econômico aos trancos e barrancos. Continuava com suas andadas solitárias de madrugada na praia de Ipanema durante a semana e nos fins de semana repousava na tranquilidade de Teresópolis. Isso, e uma dieta saudável o tinham levado a uma idade avançada com saúde e lucidez, mas estava difícil. O paraíso tropical onde havia desembarcado trinta anos atrás estava irreconhecível. Após tantas conquistas, o Brasil parecia agora estar reclamando tudo que lhe havia dado. Com uma inflação mensal beirando os trinta por cento ao mês e uma estagnação econômica devorando o país, tudo parecia de cabeça para baixo.
Como tantos outros, o negócio dele estava em dificuldades. Do seu ponto de vista, a família estava em frangalhos; eu tinha enlouquecido e, apesar da Sarah – ainda a sua grande esperança – estar indo bem em sua carreira de dentista, tinha entrado em um relacionamento tóxico e não estava falando com nenhum de nós. O sítio em Teresópolis, que deveria ser o lugar onde aproveitaria sua aposentadoria, tinha se tornado um problema de manutenção sem fim, um ralo financeiro e mais uma pedra no seu sapato.
Apesar das recomendações do médico, meu velho não se permitia descansar. Se parasse de trabalhar o estilo de vida da família desapareceria. Viciados que estávamos no seu esforço, a gente achava ele estaria ali para sempre provendo o nosso sustento e nao davamos valor ao seu martírio. Quanto a mim, estava absorvido demais comigo mesmo para oferecer qualquer tipo de ajuda e, de qualquer forma, ele descartava de cara qualquer sugestão que eu desse – como a de vender o negócio e a casa para que pudesse aproveitar seus últimos anos em paz.
Embora pensasse muito a respeito, sair de casa e mandar tudo para “aquele lugar” não era uma opção. Naquele tempo, jovens de classe média no Brasil só saíam de casa quando achavam um bom trabalho ou quando se casavam. Na Zona Sul carioca, ninguém jamais consideraria dividir um apartamento com amigos ou alugar um quarto na casa de estranhos. Mesmo se tivesse resolvido, pesquisando os classificados nos jornais descobri que os poucos empregos disponíveis para gente sem qualificação e sem experiência pagavam menos que a minha mesada.
A tensão em casa foi escalando até chegar a um patamar insano. Quando ficou insuportável, conseguimos chegar a um acordo. Eu abandonaria meu curso de Economia para seguir meu plano original de estudar cinema. Para mim, essa escolha me colocaria minimamente de volta nos trilhos, para eles a opção era melhor do que eu largar tudo e ficar em casa de vagabundagem. O plano era tentar uma vaga em uma faculdade de cinema em São Paulo.
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Alheia aos dramas familiares, meus e os de muitos outros, a intensidade da vida no Rio seguiu em frente. havia novidades e a estrela da hora era o grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone. De várias maneiras, eram o que a nova geração estava precisando: uma voz própria. Sua inovação é que eram “gente como a gente”, meninos e meninas de classe média aprendendo a viver e a lidar com as dificuldades dentro e fora de casa. Diferente do que rolou em gerações passadas e o que ainda rolava nas universidades, eram totalmente apolíticos.
Esse grupo era icônico para as mudanças que estavam acontecendo na cena cultural carioca e, consequentemente, na de todo o Brasil. Influenciados por Monty Python e pela contracultura em geral, o Asdrúbal era uma versão mais inteligente, inclusiva e bem humorada dos surfistas e dos roqueiros. A trupe, em sua maioria era formada por atores e diretores amadores da Zona Sul carioca, se lançou com a peça “Trate-me Leão”. Por sua postura atrevida e engraçada, tocando em assuntos fáceis de se identificar, a peça foi um tremendo sucesso e viajou pelo Brasil afora.
O Asdrubal entrou – ou melhor, não entrou – na minha vida da seguinte maneira:
Estava em casa já de calção preparando para ir ao Nove num glorioso sábado de praia. Meus pais tinham ido para Teresópolis e estava batendo papo com Dona Isabel na cozinha almoçando o meu habitual bife acebolado com arroz e feijão. A televisão estava ligada e, de relance, vi alguns dos atores do já famoso Asdrúbal dando uma entrevista. No final, anunciaram que estavam oferecendo aulas de teatro grátis e pedindo a todos que participassem.
Aquilo chamou minha atenção e fiquei tentado. Enquanto fui andando descalço para a praia fiquei pesando os prós e os contras de participar do curso ou não. Aquilo poderia ser uma oportunidade para conhecer gente parecida comigo e, quem sabe, uma chance para me aproximar do objetivo de fazer cinema. Porém, no fim das contas, meu instinto de rato de praia falou mais alto, dizendo que aquilo era coisa de usuário de fio dental e de caretinha tirador de onda do tipo que queria evitar. Além do mais não dava para ator, com e sem trocadilho.
Aquele homofobismo juvenil foi um dos maiores erros da minha vida. Muitos dos maiores atores e roqueiros cariocas da minha geração, como a banda Blitz, o cantor Cazuza, comediantes como Luís Fernando Guimarães, a atriz e apresentadora Regina Casé, entre outros, surgiram daquele curso ou eram os professores lá.
A resposta foi forte e com tantos alunos inscritos separaram a galera em grupos. Bruno, um amigo meu, entrou para um deles. Ainda que não fosse um ator nato, tinha uma câmera de vídeo e talento para filmar e editar. Para o Asdrúbal, os dois atributos foram um presente dos deuses e começaram a lhe pedir que filmasse as peças e outros eventos. O Asdrúbal cresceu e o Bruno cresceu junto. Uma década mais tarde, Bruno tinha ganho vários prêmios como melhor diretor de vídeo musical na MTV Brasil e é hoje um dos maiores produtores do país.
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por Richard Klein | 28 nov, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 23
“Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia,
Eu quero uma pra viver.”
Cazuza – Ideologia
Pedro também caiu de paraquedas no curso de Economia da UFRJ. No vestibular, tinha dado a sorte de se sentar ao lado de um amigo de infância “Caxias”. Sem ter que insistir muito, o amigo deixou a sua folha de respostas a mostra e foi assim que ele entrou para o curso. Ele não era o cara típico de círculos acadêmicos. Morava fora da Zona Sul, tinha pele mais escura, cabelo enrolado e por ser da equipe de polo aquático do Fluminense, era sarado. Não demorou muito para que engatássemos numa firme amizade, comigo sendo seu passaporte para festas na Zona Sul e com ele me ajudando na cultura de rua.
Economia e Administração de Empresas, Comunicação (Jornalismo e Publicidade) e Psicologia eram as três faculdades no campus da Praia Vermelha. Nosso curso era o mais prestigioso e ficava no prédio mais suntuoso, o que abrigava o famoso Teatro de Arena. O diretório central dos estudantes era lá e usava aquele anfiteatro como palco para bandas alternativas, muitas delas excelentes, como Premeditando o Breque, Diana Pequeno, Luli e Lucinha, entre outros.
Por essas e outras, os alunos de Economia se achavam um degrau acima, acreditando lidar com questões mais difíceis e importantes. Para nós, os estudantes dos outros cursos estudavam matérias fáceis e superficiais. Em contrapartida, ainda que impuséssemos um certo respeito, eles nos viam como riquinhos nerds metidos a besta.
Pedro e eu não estávamos interessados nesses estereótipos. Em vez disso, saímos explorando o campus, fazendo amizade com os estudantes de Comunicação – eles sabiam das melhores festas – e com os de Psicologia – a grande maioria era de mulheres, muitas delas bonitas e pareciam dispostas a experimentar coisas novas.
De qualquer forma, passamos a fazer parte de uma turma universitária mais madura que possuía vida social própria. As festas que começamos a frequentar refletiam esse novo status universitário. Nelas, além da nossa turma de calouros, havia estudantes de anos mais avançados, jovens professores, suas namoradas, esposas e seus amigos, todos inteligentes e muito mais sofisticados do que a maioria das pessoas com as quais estávamos acostumados a nos relacionar.
Minha habilidade no violão operava milagres e éramos convidados para as melhores festas, organizadas pelos membros mais conceituados do corpo acadêmico, muitas nos melhores endereços da cidade. A elite era de esquerda e vários chegariam a posições importantes em agências governamentais, nos negócios e mesmo na política. A maior parte vinha de famílias tradicionais e conceituadas, e alguns dos pais eram envolvidos nas cúpulas dos recém-legalizados partidos de oposição.
Num tempo de renascimento político esses círculos apreciavam a aura descontraída de um violonista, versado no estilo de vida alternativo encontrado em Visconde de Mauá e Trancoso. Durante um breve tempo, tanto Pedro como eu fomos cortejados pela elite estudantil, mas a novidade desbotou logo e nos deixaram de lado devido às notas baixas, o contexto familiar inadequado e a falta de base e de interesse nos assuntos sérios que todos deveriam estar focando.
A acolhida nos outros cursos foi mais durável. Choviam convites para festas e levadas de som. Conhecemos garotas sensacionais e fizemos boas amizades. Imersos na farra e com um status elevado em casa, foi fácil esquecer a realidade econômica sombria pairando sobre nossas cabeças, bem como os esforços requeridos por uma das melhores faculdades do país.
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Com a contrarrevolução neoliberal veio a caça às bruxas. Pessoas que não haviam colhido os frutos do milagre econômico dos anos 1970 ou que não tinham participado da festa, quer por proibição dos pais, quer por dedicação aos estudos ou repúdio àquela postura, pareciam estar ajustando as contas e festejavam a desgraça do inimigo.
O que antes era curtição, passou a ser visto com maus olhos, o que havia sido revolucionário agora era considerado idiotice e o que antes era aproveitar a vida se tornou a causa de doenças sexuais e mentais. A jornada de uma geração que havia lutado contra uma ditadura e que mais tarde presenciou a volta da democracia foi relevada. O sentimento de irmandade que tinha surgido naqueles dias se dissipou. Tudo parecia de cabeça para baixo: o que o senso comum havia considerado até então como egoísta e detestável, agora era aplaudido como a coisa certa a fazer.
O choque econômico também trouxe novidades na maneira de se “fazer a cabeça”. A cocaína passou a substituir a maconha. Não nos encontros dos radicais chiques de esquerda do curso de Economia onde muitos nem fumavam, mas nas outras rodas que frequentávamos. O comando do tráfico carioca percebeu que o pó branco era mais fácil de transportar, mais difícil de rastrear, mais viciante, mais caro e, enfim, muito mais lucrativo do que a herva, uma tradição de séculos. O submundo se profissionalizou em torno da novidade. Passaram a criar longos períodos de escassez de cannabis, enquanto o fornecimento de pó era abundante e barato. Logo, logo, os antigos maconheiros estavam caindo de napa nos espelhos do Rio de Janeiro. Muitos passaram a ver a maconha como uma lembrança ruim, um entretenimento para hippies fracassados e outros perdedores.
A Brizola – o nome do ex-exilado e futuro governador do Rio de Janeiro e por alguma razão o apelido da cocaína – era mais agressiva e mais nociva. Essa mudança de preferência era ilustrava bem o que estava acontecendo por causa do choque neoliberal. Ao invés de trazer a tona o lado contemplativo e artístico das pessoas, a cocaína deixava o raciocínio rápido e o ego inflado. Depois de se tornar popular, é claro que o tráfico aumentou o preço e fez com que seu consumo se tornasse um peso no orçamento. Por ser necessário consumir muito para manter a onda, em tempos de crise econômica muita gente acabou tomando caminhos à margem da lei para manter o hábito.
No começo, não gostava do clima superficial nem do egocentrismo que as linhas brancas traziam, mas a onda era tão forte que acabei entrando na onda junto com a galera mais chegada. A ilusão de autoconfiança conferida compensava as pancadas da recessão econômica. Àquela altura, a realidade lembrava um caminhão desgovernado vindo a toda em nossa direção mas com a Brizola tinhamos a impressão de correr mais rápido que ela.
No entanto, a implacável verdade era que o Brasil tinha se tornado um país assolado pela hiperinflação e pela recessão. Com uma crise à solta, havia muito desespero e mesmo suicídios, alguns próximos de nós. A saída era “cada um por si e Deus contra todos”, nas palavras de Mário de Andrade em seu livro Macunaíma. A válvula de escape para os abastados era a autodestruição através do excesso, para os mais pobres, era o crime e a violência. Histórias trágicas começaram a pipocar nos jornais; um aumento assustador no número de sequestros e assassinatos de um lado e justiceiros matando suspeitos do outro.
Dentro do meu círculo social o desânimo era generalizado. Na inocência de achar que resistíamos ao sistema, quando os dias ruins chegaram – algo que nunca imaginamos que pudesse acontecer – percebemos o quanto estávamos presos a tudo que achávamos que havia de errado no mundo. Moloch era muito maior que pensávamos. Ao contrário do que ditava a lógica, a crise o fortaleceu.
Todos sentiam que isso era apenas o começo de um longo caminho no escuro. Ao final de meu primeiro ano na universidade, os efeitos do caos eram profundos. A crise tinha pego todos de surpresa e ninguém sabia como reagir. Éramos como prisioneiros inocentes em estado de choque. Tentei me convencer de que podia lidar com o que viesse e de que era impossível que as coisas pudessem piorar. Estava errado.
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por Richard Klein | 7 nov, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 21
“Sagrado e profano
O Baiano é
Carnaval!”
Chame Gente – Moraes Moreira
Meu status em casa saltou para as alturas depois do sucesso no vestibular. Como prêmio, Rafael resolveu me dar um Fusca 1973 azul claro, que apelidei de Blues Boy. Ainda que barato e velho era um carro e, que me lembre, amigos de lares muito mais prósperos tinham recebido apenas um tapinha nas costas por não fazer mais do que sua obrigação.
Li esse gesto como uma tentativa de reconciliação dele com um filho incompreensível que se recusava a ouvi-lo e que fugia da sua companhia. Nosso convívio era difícil. De gerações completamente diferentes, nascidos em mundos opostos, havia um fosso nos separando em termos de perspectivas, de familiaridade com o que estava à nossa volta e do que buscávamos da vida.
Num mundo longe das minhas descobertas, a realidade do Rafael estava difícil. Já beirando os 80 anos, lutando bravamente contra os problemas normais da idade avançada, haviam dificuldades imprevistas com o presente. Apesar do patrimônio acumulado, o Brasil tinha se revelado uma decepção. Quanto mais convivia com o “jeitinho brasileiro” nos negócios e com autoridades tortas, menos gostava do país. Com os dias do milagre econômico num passado distante, quase três décadas depois da sua chegada, o país estava em queda livre e havia uma nova política de restrição às importações. Essas duas pancadas atingiram seus negócios em cheio. Mesmo que achasse desnecessário expressar suas angústias, elas estavam sempre à flor da pele.
No meio das suas preocupações estava o meu futuro. Apesar da predileção indisfarçada pela Sarah, talvez o seu único verdadeiro amor na vida, Rafael silenciosamente queria que eu chegasse a alturas que o seu passado o havia barrado; a respeitabilidade de um diploma universitário e a estabilidade de uma profissão.
O destino e o instinto de sobrevivência haviam dirigido a sua vida, ao passo que eu tinha escolhas, ou pelo menos achava que tinha na altura. Diferente dele na sua juventude, tinha a liberdade de me misturar com todos a minha volta e de curtir sem ser vítima de preconceitos e sem ter medo de passar necessidade. Talvez por isso, para ele, a tempestade existencial na qual tentava conciliar o mundo de fora de casa com o que se passava dentro dela, era algo que escapava à sua compreensão e ao seu respeito. Talvez agora, comigo na faculdade de economia, essa bobagem iria acabar e os estudos a sério poderiam ser a salvação de uma personalidade mimada e egoísta.
*
Sem se importar com os conflitos mudos em casa, o verão carioca estava no auge, e com ele a temporada de curtição. Agora pré-universitário, sem a paranoia do vestibular, só queria saber de praia e de aproveitar as outras maravilhas que minha cidade tinha para oferecer. Meu querido Blues Boy prometia ser uma grande ferramenta para essa tarefa, porém, antes de ganhar as chaves, havia a barreira da carteira de motorista.
A ideia da minha pessoa no volante causava arrepios em casa. Isso era devido a uma aula de direção que Renée havia resolvido me dar em Teresópolis quando adolescente. A caixa de câmbio do carro da família, um Opala bege, era manual e saía da coluna de direção. Logo na primeira tentativa, embaralhei as instruções e ao invés de sair devagar em primeira, acelerei o carro em marcha à ré. Se minha mãe não houvesse tido o instinto de puxar o freio de mão na hora, teríamos caído em um despenhadeiro bem atrás da gente. O valor cômico da cena não foi captado pelo meu pai de 77 anos que estava nos observando fora do carro e ele passou mal. Nunca houve outra aula.
Porém, na época em que ganhei o fusca, o que os dois não sabiam era que seu filho já tinha começado uma carreira secreta de motorista. Ela tinha começado no dia em que decidi colocar um anúncio no jornal oferecendo aulas de violão. Com a mesada definhando devido aos problemas nos negócios, precisava de dinheiro para manter o nível de farra e essa foi a melhor ideia que veio à cabeça.
Dois dias depois o telefone tocou. A voz dela era rouca, algo que sempre me deu um certo tesão. Enquanto processava isso, a cabeça já estava “Caralho, uma aluna!!”
Tentei soar profissional. “Sim, as aulas são particulares para iniciantes. Também dou aulas de bossa nova para alunos mais avançados.”
“Ai, adoro bossa nova, mas nunca toquei violão. Quanto tempo você acha que levaria para aprender?”
“Bom, isso vai depender da tua habilidade e do teu esforço. Por que você não tenta uma aula, e daí a gente avalia?”
“Ah, não sei, esse número é de Ipanema. É muito longe. Eu moro na Tijuca, conhece?”
Menti. “Conheço, claro. Posso ir aí, mas como disse no anúncio são vinte e cinco cruzeiros na casa do aluno.”
“Não dá para fazer a primeira aula de graça? Só para eu sentir se vou gostar ou não?”
Considerei as coisas, mesmo se aquela a voz no telefone fosse a de uma deusa a Tijuca era longe demais. “Olha, não dá, principalmente porque fica tão longe.”
Para minha surpresa, ela concordou. “Então, está bem. Que dias você pode vir? Só posso nos fins de semana.”
Blefei. “Um instante, deixa eu ver minha agenda.” Esperei um pouco e respondi. “Tenho uma abertura no sábado à tarde da semana que vem, às três, pode ser?”
“Para mim está ótimo.”
Animado, peguei o endereço e depois de desligar comecei a planejar as aulas. Ia imitar o Romualdo. Primeiro, exercícios para fortalecer os dedos, depois acordes e depois as primeiras músicas fáceis. Só isso já daria quatro ou cinco aulas, cem cruzeiros no meu primeiro mês como professor… nada mal.
No sábado seguinte, lá estava eu, violão em punho, sacrificando um dia ensolarado de praia na linha 464 rumo à Tijuca para dar minha primeira aula na vida. Me senti bem dando os primeiros passos para ganhar meus primeiros trocados. Pedi para o motorista me avisar quando o ponto chegasse. Quando desci, segui as informações e consegui achar o prédio. Estava na hora e, nervoso, apertei o botão do apartamento no porteiro eletrônico. Depois de um tempinho ela atendeu e mandou subir.
O apartamento era apertado. A sala era decorada com móveis de fórmica organizados em torno de uma televisão enorme, uma cortina feia cobrindo a janela de alumínio e fotos de família penduradas na parede. A aluna, Marineide, foi uma decepção. Parecendo tonta demais para aprender o instrumento, era mais nova que eu, maquiada mas com um bigodinho mal disfarçado, cheirando a perfume barato, unhas pintadas e com uma blusa semitransparente cobrindo o corpo roliço, ela me convidou para entrar. Em pé na sala, confuso, senti vontade de sair correndo daquela roubada mas me segurei e fui profissional.
Tentando parecer sério, perguntei: “O teu violão?” Depois de um silêncio inconfortável sob seu olhar extra terrestre, continuei. “Você disse que ele está todo desafinado. Posso dar uma olhada?”
“Ah, claro!” Ela voltou a estar presente, mas parecia nervosa. “Ele está no meu quarto. Se importa em dar a aula lá?”
Com uma estranha desconfiança de que o motivo que ela tinha me chamado ali não tinha nada a ver com aprender violão, entrei no quarto apertadíssimo e exageradamente arrumado. O violão estava fora da capa, na cama.
“Tem um banquinho para me sentar aqui no quarto? Prefiro dar aula vendo o que o aluno está fazendo.”
“Claro! Tem um banquinho na cozinha; serve?”
“Serve, claro. Obrigado” Enquanto ela foi para cozinha, tirei meu violão da capa e saí afinando o dela sentado na cama.
Ela voltou com um copo d’agua gelado, mas sem o banquinho. Eu já tinha afinado o violão.
Bebi a agua e toquei uns acordes nele. “Nossa! Tá todo afinado! Ai, estou doida para aprender, você acha ele bom para o meu tamanho?”
“Ele é pequeno, mas vai servir.”
Ela se sentou do meu lado na cama. “Posso experimentar?” Ela passou as unhas afiadas, que eu ia ter que pedir para ela cortar, nas cordas. “Viu? Não sei tocar nada.”
A fim de começar a aula e sair dali o mais rápido possível eu perguntei: “E o banquinho?”
“Você tem certeza de que precisa do banquinho?”
“Sim, não vai dar para te ensinar nada sem sentar de frente.”
“Tá bom, vou trazer, mas posso ouvir você tocar uma música antes de ir lá pegar?” Achei estranho, talvez quisesse me testar, por isso toquei Aquarela do Brasil num arranjo complicado que impressionava.
Quando terminei, dava para ver que ela estava impressionada. “Nossa, gato, como você toca bem!”
Estava pronto para começar a aula. Ela levantou, mas em vez de ir pegar o banco e sem pedir licença, ela se ajoelhou na minha frente se apoiando nas minhas pernas.
“Sabe o que é? É que sou apaixonada por violeiros e quando eu ouvi tua voz no telefone, achei ela tão gostosa que senti que tinha que te conhecer pessoalmente.”
Fiquei sem resposta e sem ação. Depois daquilo, me deu uma olhada safada, tirou o violão da frente, abriu minha braguilha e colocou a mão dentro. As “joias da família” reagiram no ato. Sem pedir permissão, ela baixou meus jeans e aplicou seus talentos. A aula estava encerrada.
Feia, não muito inteligente e deveras comum, a Marineide não fazia o meu tipo mas era safadíssima e só saí de lá tarde da noite. Houve mais “aulas” e, viciado no que estava me dando, atravessei as barreiras de minha vida social esquizoide e acabei a apresentando aos amigos de baseados e de música.
Foi aí que o carro entrou em cena. Num fim de semana prolongado, minha ex-possível aluna tornada amante, colocou o carro do pai dela à disposição para a galera ir para Mauá. Como ela não tinha ideia de como usá-lo, confiou na minha habilidade inexistente como motorista. O entusiasmo levou a melhor sobre o medo O paraíso hippie ficava a quatro horas de carro, duas horas e meia rodando pela rodovia mais importante do país, a Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio, e o resto subindo por estradas de terra entre as montanhas e resolvi encarar aquilo sem carteira de habilitação, contando com o pouco conhecimento adquirido com minha mãe em Teresópolis e pelo que tinha ouvido falar. .
Quando o dia chegou, passei a noite na casa dela e partimos bem cedo para a casa de Kristoff para apanhar ele e o resto da galera. Tive sorte, porque de madrugada não havia nem trânsito nem policiamento. Depois de atravessar vários sinais vermelhos, Marineide, que até então não tinha dado um pio, gritou apavorada.
“Rique!!! Você vai entrar numa contramão!”
“Cacete! É mesmo!”
Não pensei duas vezes e virei totalmente o volante. À toda, o carro começou a derrapar, mas os pneus obedeceram, conseguindo evitar por poucos centímetros um poste que pareceu ter passado pela nossa frente em câmera lenta. Por um milagre chegamos no Leblon e pegamos a galera, todos achando graça em segredo da minha garota bigoduda, mas também contentes com a independência de poder viajar de carro. De lá fomos rumo à avenida Brasil e saímos da cidade. Como chegamos em Mauá sem um arranhão permanece um mistério, mas ao sair do carro com as pernas ainda bambas tinha aprendido a dirigir.
Sem nem imaginar a possibilidade dessa aventura, Rafael insistiu que eu pegasse aulas de direção em vez de comprar uma habilitação no departamento de trânsito, o Detran, como todos faziam. O teste que aplicavam era quase impossível de passar; a ideia era forçar a propina. Como estava prestes a viajar de férias, chegamos a um consenso: eu pegaria as aulas e eles pagariam um preço mais baixo para comprar a habilitação sem a prova, em vez de pagar mais caro para que recebesse uma carteira sem nunca ter sentado em frente a um volante.
Depois de duas semanas de aulas, fui à central de testes onde entrei no carro com o dono da autoescola e dois examinadores que mais pareciam membros do esquadrão da morte.
Sem olhar para mim, um dos inspetores virou para trás e perguntou: “Esse pagou?”
O dono curso respondeu afirmativamente.
Depois disso, tive somente que dar uma volta no quarteirão para receber um certificado que me deixaria “preparado” para o trânsito maluco do Rio de Janeiro.
*
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por Richard Klein | 3 out, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 19
“E aqueles que foram vistos dançando
Foram considerados loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música.”
Friedrich Nietzsche
O último ano no Colégio Andrews era dedicado cem por cento a nos preparar para o vestibular. As aulas foram transferidas para um prédio separado com os alunos agrupados em quatro turmas – duas para ciências exatas, uma para área biomédica e uma para humanas. Agora, transformada em cursinho pré-vestibular, a escola era puro stress. Os métodos eram intensos, com professores nos bombardeando com segredos infalíveis para saltar a barreira colossal posta a nossa frente.
O programa da escola tinha uma boa reputação. Estudantes vindos de outras instituições no Rio bem como de mais longe se transferiam para. Um dos novos alunos que conheci tinha vindo do Chile. Ele tinha ido viver lá com a mãe quando os pais se separaram. Agora, na casa do pai, queria voltar a morar na sua terra natal e fazer faculdade lá.
Alguns dias depois do início das aulas, pegamos o mesmo ônibus e começamos a conversar. Por algum motivo, o papo acabou em Teresópolis e descobrimos, para nossa completa surpresa, que ambos tínhamos casas de campo vizinhas no fim de mundo do Jardim Salaco. Isso foi coincidência demais para a cabeça de qualquer um e ajudou a nos tornar melhores amigos instantaneamente.
Kristoff era de descendência alemã, parecia com o ator Jack Palance, só que de cabelo comprido e loiro. Além da origem europeia, tínhamos em comum o gosto pela música, ele tocava flauta transversal e se tornaria saxofonista profissional. Além disso, de alguma forma inexplicável, apesar de pertencermos à infame “esquadrilha da fumaça”, conseguíamos nos manter nos top quinze por cento quando havia testes preparatórios. Não demorou muito para que ele se juntasse à irmandade musical da escola, e em pouco tempo seu apartamento no final do Leblon se tornou o quartel general dos músicos marginalizados e afins.
Como aspirantes a instrumentistas, para nós, os gigantes do rock dos anos 1970, Pink Floyd, Led Zeppelin, Jethro Tull e Yes reinavam supremos nos nossos gostos, assim como os Beatles, os Rolling Stones e o Jimi Hendrix. Só que além deles curtíamos o jazz-rock mais recente, representado por uma geração de músicos brilhantes como a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin, Focus, Jean-Luc Ponty, Jeff Beck, Stanley Clarke e Weather Report entre tantos outros.
Tal como era o caso com outros aspectos da cultura jovem no Brasil, estávamos cerca de cinco anos atrás do que estava acontecendo na Inglaterra e na América do Norte, desconhecendo tanto o punk como o reggae. Não fazíamos ideia do que representavam em termos de resistência ao sistema, ao racismo e à caretice que tinham tomado conta do mundo anglo-saxão a partir de meados dos anos 70. De qualquer forma, suspeito que mesmo que tivéssemos tido conhecimento, ainda assim teríamos continuado ligados naqueles grandes mestres nos nossos instrumentos.
Havia vários talentos musicais locais de alto calibre surgindo. Nossos ouvidos estavam abertos para gênios como Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos e Egberto Gismonti que pareciam ser um fio condutor para o tipo de energia que tinha experimentado no sul da Bahia.
Se a bossa nova tinha sido o reflexo do otimismo do pós-guerra brasileiro, essa nova geração musical refletia um momento de autodescoberta e de renascimento vindo com o ressurgimento da liberdade política. Ainda que fossem exclusivamente instrumentistas, eram populares; seus shows lotavam e, por um curto tempo, eram os mais vendidos entre os consumidores mais antenados.
Dos três, Egberto era meu favorito. Seu talento começou a se manifestar na loja de instrumentos musicais de seu pai onde, ainda criança, demonstrava pianos aos clientes. Mais tarde, Egberto foi para a França estudar música clássica. Quando regressou, aplicou o conhecimento adquirido e seu talento à música brasileira, indo muito além da bossa nova. Entre outras coisas, Egberto mergulhou a fundo na música indígena, a ponto de ir aprender música sagrada com um pajé na região do Xingu onde usava música como forma para curar. A história conta que para Sapaim, o xamã-músico, aceitá-lo, Egberto teve que acampar do lado de fora de sua maloca isolada na selva por cerca de um mês até ser convidado a entrar. Talvez por causa do que aprendeu lá, os sons nos seus shows eram como uma entidade palpável que hipnotizava o público.
Hermeto Pascoal foi um menino albino nascido no sertão nordestino. Devido à sua condição, não podia trabalhar sob o sol escaldante, daí seus irmãos o trancavam em um estábulo onde canalizava sua frustração furiosa para a música. Os seus cabelos e barba brancos, longos e encaracolados e seus traços marcantes cobertos por óculos fundo de garrafa, conferiram a ele o merecido apelido de “Bruxo”. Sua banda, que mais parecia uma seita de instrumentistas fanáticos, morava na sua casa no bairro afastado de Bangú, no Rio de Janeiro. Quando tocavam, faziam sons insanos, não só com instrumentos, mas também com objetos do dia a dia como garrafas quebradas, serrotes e panelas. Em meio a essa loucura, entretanto, havia o gênio que criava sons celestiais lindíssimos nascidos dos mistérios de índios, africanos e europeus.
Desses três instrumentistas, o que alcançou maior sucesso internacional foi Naná Vasconcelos. A revista Down Beat, a mais importante do mundo do jazz, iria elegê-lo oito vezes como o melhor percussionista do mundo; ele também receberia oito Grammies. Vindo de Pernambuco, era o único afrodescendente dos três. Exalando ritmo por todos os poros, mestre no berimbau, tinha uma ligação íntima com a espiritualidade do Maracatu. Depois de uma contato rápido com os mineiros ligados a Milton Nascimento, o clube da esquina, conheceu o rock e a mistura acabaria levando sua percussão a níveis psicodélicos nunca antes imagináveis.
Egberto, Naná e Hermeto não eram, de forma alguma, as únicas expressões da música instrumental e experimental brasileira nos anos 1970. Havia também bandas como a Uakti, conhecida por usar instrumentos feitos à mão, pelos próprios membros do grupo. O nome Uakti vindo de um mito dos índios Tucano sobre um homem-instrumento. Haviam os jazzistas como Victor Assis Brasil, Hélio Belmiro e Wagner Tiso, além de bandas mais elétricas como A Cor do Som e o guitarrista Pepeu Gomes, ambos com origem nos Novos Baianos. Para qualquer um minimamente interessado em música essa foi uma época abençoada.
Após sua curta popularidade no Brasil, os três principais expoentes daquela geração sairiam de moda mas surgiriam como estrelas na cena do jazz internacional.
*
O interesse pela música instrumental era tão grande, que promotores de eventos enxergaram a oportunidade. O Rio Jazz Festival, irmão carioca do Festival Internacional de Jazz de São Paulo, começou em 1978, apresentando nomes consagrados internacionalmente como o guitarrista Joe Pass, o trompetista Dizzy Gillespie e o saxofonista Dexter Gordon, o guitarrista da Mahavishnu Orchestra, John MacLaughlin bem como músicos brasileiros que estávamos ouvindo.
O problema era o local: o Maracanãzinho, o mesmo lugar que tinha acolhido os festivais da canção no fim dos anos 1960 e início dos 1970. A acústica era péssima. Grandes nomes do rock, como Alice Cooper, Rick Wakeman e Genesis haviam tocado lá, mas o eco tinha transformado a música deles em ruído.
Apesar dos problemas de qualidade, a “esquadrilha da fumaça” tinha que estar presente. Como os ingressos eram caros, só tínhamos dinheiro para um show. Escolhemos a noite de encerramento, com o Weather Report, a banda do melhor baixista de todos os tempos, Jaco Pastorius, seguidos por outra estrela do baixo, Stanley Clarke. O grandfinale ficaria a cargo de Jorge Ben junto com a bateria da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, a melhor do Rio de Janeiro, e convidados especiais.
Os assentos eram divididos entre os mais em conta, na desconfortável arquibancada na parte de cima, e os mais caros perto do palco. Lá, o público mais endinheirado podia ouvir o show com mais clareza sentado em cadeiras numeradas. Claro que tínhamos os ingressos mais baratos. Só que assim que entramos no ginásio, percebemos que era fácil pular para a parte de baixo. Todos fizeram isso, só que quando chegou a minha vez, um policial bateu nas minhas costas e me mandou voltar para meu lugar. Ainda que tenha ficado só, estava com nosso precioso baseado reservado especialmente para o show, sobrevivente das dificuldades financeiras do mês anterior. Quando sentiram sua falta, me chamaram lá de baixo e ficaram implorando para que jogasse o bagulho.
Falei que não ia rolar: “Os caras agora estão de olho em mim, não vou pular e o beck fica comigo.”
“Rique, deixa de ser veado e joga essa merda!”
“Cara, essa é a minha compensação por ficar sozinho aqui na roubada.”
“Porra! Todo mundo comprou junto e você vai ficar com ele sozinho!?”
“Grita mais alto que é pros “homi” ouvirem melhor.”
Voltei para o meu lugar nas arquibancadas e deixei os caras reclamando, provavelmente se segurando para não me chamar de judeu ruim de transa.
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