Samba Perdido – Capítulo 7 parte 2

O presidente recém eleito, Jânio Quadros, lembrava o primeiro-ministro britânico do pré-guerra, Neville Chamberlain na aparência e na bizarrice, mas compartilhava com Churchill a fama de amante da garrafa. As massas o adoravam mas, apesar de servir seus interesses, a elite o ridicularizava pelos seus trejeitos exagerados e por sua inteligência medíocre.

Quando assumiu, o ciclo de crescimento econômico iniciado pelo seu antecessor, o carismático Juscelino Kubistchek, estava dando sinais de cansaço. Depois da euforia veio a ressaca econômica e com ela o descontentamento das classes que mais tinham se beneficiado dos anos de vacas gordas: os trabalhadores e a classe média emergente.

A freada no ritmo da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros causou uma guinada à esquerda na preferência ideológica do país. Havia uma influência cada vez maior de sindicatos e de organizações trabalhistas na vida pública. Esses novos elementos fizeram com que as elites ficassem nervosas.

Talvez Jânio não fosse o melhor presidente para lidar com a situação. Ele tentou, à sua maneira, conciliar a crescente divisão política proibindo biquínis nas praias para agradar os conservadores de direita e reconhecendo a Cuba Castrista para agradar a esquerda. Essa decisão ousada foi fatal; além de fazê-lo perder o apoio da bancada direitista, em especial da UDN, a União Democrática Nacional, responsável pela sua chegada na presidência, o gesto chamou a atenção dos Estados Unidos.

Pressionado para fazer reformas populistas de um lado e para freá-las do outro, sem apoio no congresso, em 1961, Jânio renunciou na esperança de que o país se unisse para exigir o seu retorno. Isso nunca aconteceu e seu vice-presidente João Goulart tomou posse. Jango, como era conhecido, tinha fortes ligações com movimentos sindicais e com governadores de esquerda, como Miguel Arraes em Pernambuco e Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Contrariando interesses poderosos tanto fora quanto dentro do Brasil, assim que assumiu, deu início a um projeto de nacionalização de setores importantes da economia, apostou na educação das camadas menos privilegiadas e contemplou políticas abrangentes para melhorar a distribuição de renda.

No pano de fundo estava a ainda muito recente Revolução Cubana. Confrontando a hegemonia dos Estados Unidos na a América Latina, o levante trouxe a Guerra Fria para o continente. Na opinião da esquerda, Cuba havia demonstrado que a região tinha a capacidade de gerir o seu próprio destino. Em contrapartida, para as potências dominantes, países governados por revolucionários rejeitando a sua tutelagem e focados em cooperação ao invés dos lucros de uma minoria eram inaceitáveis. Washington fez tudo para esmagar o exemplo, impondo um embargo comercial, ajudando exilados numa invasão fracassada e tentando assassinar seu líder. O único resultado dessa tática foi o de empurrar os cubanos cada vez mais para perto da União Soviética e essa aliança tornou uma América Latina socialista – ou mesmo comunista – uma possibilidade assustadora, porém bastante real.

Situações parecidas com a qual o governo de Jango ameaçava não eram novidade e haviam sido revertidas por golpes de estado. Os primeiros apareceram no Irã no início dos anos 1950 e no Iraque quando estes resolveram nacionalizar suas reservas de petróleo. Pouco depois, Colômbia, Venezuela, Guatemala, Síria e Nigéria entre outros países, sofreram o mesmo quando resolveram enfrentar a ordem econômica estabelecida. O que todos tinham em comum eram pactos entre elites locais e potências mundiais interessadas nas riquesas naturais dos países em questão.

No caso brasileiro, os Estados Unidos estavam determinados a manter o maior país da América do Sul “livre”. Com apoio americano, os poderosos iniciaram uma conspiração para garantir sua permanência no comando do país. Para tanto, seguiram a mesma receita que Rafael tinha presenciado na Alemanha nos anos 1930. O primeiro passo foi conquistar a opinião pública. Distorcendo a verdade e apostando nos preconceitos dos leitores, a imprensa envolvida passou a retratar uma crise profunda na economia e uma ruptura nos valores tradicionais da sociedade. Em paralelo, começaram a “denunciar” a desonestidade dos dirigentes e sua inabilidade em restaurar a ordem. Pessoas comuns passaram a acreditar na imagem contraditória de uma liderança ao mesmo tempo corrupta e disposta a impor uma ideologia totalitária, destruidora da propriedade privada e nociva à herança cultural e religiosa do país. Os “cidadãos de bem”; sensatos, trabalhadores e honestos passaram a ver o governo de Jango como um inimigo. Agora, precisavam de um salvador da pátria acima do sistema político viciado e corrupto demais para resolver os gravíssimos problemas. Em 1964, esse “salvador” seria o exército.

No início de Abril, tropas e tanques foram para as ruas das principais cidades do país, onde os militares “revolucionários” não encontraram qualquer resistência organizada que os desafiasse. Ainda que os líderes do “movimento” declarassem que seu objetivo fosse restaurar a democracia livrando o Brasil do comunismo, o país precisaria de mais de duas décadas para voltar à normalidade política.

Assim que tomou posse, o novo regime exilou o presidente Goulart e seus aliados, além de perseguir e prender personalidades públicas e ativistas de esquerda. Como é comum em golpes de estado, enquanto a atenção se voltava ao drama político, passaram uma legislação revertendo os direitos dos assalariados e privilegiando os interesses dos grandes grupos econômicos que patrocinaram a mudança de regime.

Apesar da indignação de intelectuais e de pessoas mais esclarecidas houve, no início, uma indiferença geral dentro da classe trabalhadora. Por outro lado, os militares encantaram a comunidade dos negócios, inclusive Rafael. Para eles, o Brasil precisava se modernizar, imitar os americanos e alcançar o seu potencial econômico: o gigante tinha que acordar. Com os militares, amigos do “mercado”, no poder e com a orientação e a simpatia do Tio Sam – que na época financiava prosperidade como uma arma para enfrentar os avanços da esquerda – haveria um final feliz onde todos iriam enriquecer.

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Por suas mudanças terem beneficiado apenas os muito abastados, por não terem cumprido com a palavra de restaurar a democracia e pela corrupção ter aumentado em vez de ter diminuído depois do golpe, quatro anos mais tarde, em 1968, a sociedade civil brasileira se levantou em oposição ao regime.

Os protestos partiram de movimentos universitários inspirados na explosão do espírito revolucionário pelo mundo afora. Na mesma época, em pontos tão diversos como Paris, Chicago e Praga, a juventude estava tomando as ruas para reivindicar um mundo mais justo e mais livre. Embora a maioria silenciosa os considerasse sonhadores inconsequentes, as autoridades os levavam a sério. Tendo em conta o sucesso de vários movimentos revolucionários acontecendo na época, obcecados com a ameaça comunista e ouvindo ecos da Guerra Civil Espanhola, da Revolução Chinesa, da Revolução Russa e mesmo da Francesa, o complexo financeiro, industrial e militar acionou suas defesas.

No Rio de Janeiro a tensão estava borbulhando. Depois que a polícia baleou e matou um estudante, uma passeata 100 mil pessoas, incluindo artistas e intelectuais de peso, tomou conta da avenida Rio Branco no centro da cidade. Esta foi a maior manifestação contra um governo já vista no Brasil. A oposição se alastrou tão rapidamente que mesmo alguns deputados no congresso, agora tutelado pelos militares, passaram a criticar abertamente o governo.

A resposta do regime foi brutal; ignorando a constituição, publicaram o infame AI-5 – Ato Institucional Número Cinco – dissolvendo o congresso e o senado e dando total autoridade executiva e judicial ao presidente. Logo em seguida prenderam membros da oposição, líderes estudantis e jornalistas. A tortura tornou-se prática comum e quem pôde fugiu para o exílio.

Acuados, alguns estudantes passaram à clandestinidade e se juntaram às guerrilhas urbanas. Nelas, treinados em Cuba e em outros satélites soviéticos, organizaram bem-sucedidos assaltos a bancos e sequestros. Em 1969, depois do sequestro do embaixador americano no Rio e de ataques a bomba em quartéis militares, as autoridades intensificaram a repressão. Pessoas começaram a desaparecer, incluindo o filho do nosso médico de família. Por outro lado, núcleos embrionários de milícias revolucionárias partiram para o campo tentando emular a Revolução Cubana. Em uma ocasião, no começo dos anos 1970, o exército brasileiro enviou uma divisão de cerca de 10.000 soldados para capturar uns vinte jovens maoístas na remota região do rio Araguaia. As forças armadas acabariam por executar a maioria dos militantes capturados.

Esses eram tempos obscuros em que tudo era censurado: livros, peças de teatro, filmes e músicas. Os regime também controlava com rédea curta o conteúdo dos jornais e das estações de rádio e de televisão. Intuindo a tensão mas sem ter informações, as pessoas fantasiavam. Havia todo tipo de teorias circulando sobre o alcance do poder dos guerrilheiros, possíveis alianças militares com Cuba, China e União Soviética, ligas de camponeses prestes a invadir as cidades trazendo desapropriações e pelotões de fuzilamento para os ricos.

Como tudo na vida, quando a imaginação substitui a realidade nada de bom vem à tona. Nesse caso, tanto os militantes quanto seus repressores superestimaram o que minúsculos grupos de extremistas poderiam alcançar num país tão grande e tão complexo como o Brasil. Juntos, jogaram o país num período de trevas. A polícia e o exército montaram departamentos com amplos poderes para espionar a população e para coibir qualquer tipo de oposição. Entre eles estavam o SNI, o Serviço Nacional de Informações e o Destacamento de Operações Internas, DOI-Codi, em cujas dependências presos eram torturados, alguns até à morte. Também reativaram o DOPS, Departamento de Ordem Pública e Social, criado por Getúlio Vargas para esmagar seus adversários e agora utilizado para aterrorizar qualquer atividade contrária à ditadura.

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O final dos anos 1960 foi um tempo politicamente intenso não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Havia uma forte consciência social, revoluções, guerras e guerrilhas pela liberdade e pela igualdade e um aprofundamento da guerra fria no planeta inteiro. Paradoxalmente, este foi o período de maior prosperidade econômica que o ocidente conheceu. Essa bonanza veio acompanhada de uma redistribuição de renda inédita e uma consequente ampliação gigantesca do mercado consumidor. Foi nesse contexto que o mercado jovem nasceu. Esta leva de novos consumidores abastados, filhos da vitória contra o nazi-fascismo, sem vínculos com o passado e ávidos por novidades, sacudiriam as bases dos valores tradicionais e inaugurariam o uso de inúmeras novas tecnologias.

A efervescência daqueles tempos afetaria a todos de uma maneira ou de outra. As novas gerações se veriam obrigadas a escolher entre serem agentes das mudanças ou serem defensores da situação. Muitos se esbaldariam na explosão de drogas ilícitas e no sexo livre facilitado pelo aparecimento da pílula anticoncepcional.

No Brasil, com a impossibilidade de se resolver as coisas pela via política, a contracultura surgiria como talvez a única alternativa de se manter vivo o germe da resistência fosse através da arte ou de atitudes. O slogan que sintetizaria aquele tempo foi “Seja marginal, seja herói!” do artista plástico Hélio Oiticica.

Considerada inofensiva pela repressão por não representar nenhuma organização política, a contracultura, além de conseguir manter uma certa distância da censura, tinha atrativos comerciais. Apesar do tempero subversivo, gravadoras e outros empreendedores da área cultural não hesitaram em explorar as oportunidades oferecidas por seu forte apelo, tanto artístico quanto ideológico, junto ao lucrativo mercado jovem. Essa aliança forçada entre revolução e lucro proporcionaria uma explosão de talento que daria luz a um dos períodos culturais mais criativos e pungentes da história, tanto nacional quanto internacional.

Apesar da repressão brasileira ter sido vitoriosa em abafar uma possível reviravolta política com censura, exílio, tortura e prisão, ela não contava com um porém; as ideologias de revolução tinham se tornaram dominantes na cultura jovem do mundo “desenvolvido”. Vindas dos mesmos países que patrocinaram o golpe, elas eram parte do pacote cultural apresentado à juventude privilegiada pela ditadura. Não dava para tapar o sol com a peneira. No país inteiro, qualquer pessoa munida com um dicionário tinha acesso às vozes dos contemporâneos estrangeiros, fosse em discos, livros, em revistas ou mesmo em filmes que conseguiam driblar a censura.

Embora a América fosse a maior responsável pela derrubada da democracia brasileira, sua juventude estava na vanguarda dessa rebelião. Eles tinham sofrido o seu próprio golpe com os assassinatos mal explicados do presidente John Kennedy, do seu irmão Bob Kennedy e do reverendo Martin Luther King, todos defensores de uma América mais próxima dos ideais libertários e progressistas dos seus fundadores. Isso, junto com a possibilidade de serem mandados para a Guerra do Vietnã – um conflito que visava tão somente manter os interesses americanos na região –  criou um enorme contingente de jovens inconformados.

A manifestação maior dessa onda contestatória aconteceu na música, mais especificamente o rock, que na época tinha um forte caráter revolucionário. O paradoxo de protestos nas ruas gerando uma demanda comercial por vozes subversivas, abriu espaço para ícones tais como Bob Dylan, Arlo Guthrie e Joan Baez. No Reino Unido, as superestrelas dos Beatles e dos Rolling Stones interessadas em atingir esse novo público e a dizer alguma coisa mais profunda do que canções românticas, juntaram forças com a rebelião. Ajudados por estratégias de marketing modernas e orçamentos milionários, expuseram a contestação no coração do sistema, num palco muito maior do que qualquer revolucionário de outrora jamais teria sonhado.

Talvez seja difícil de entender no cínico mundo de hoje que no auge das suas carreiras aqueles roqueiros genuinamente acreditavam que suas criações faziam parte de um movimento mais amplo para derrubar o status quo. A presença de novas tecnologias em sua música reforçou sua imagem de catalisadores de grandes mudanças. As possibilidades sonoras inéditas permitiram que o espírito revolucionário fosse espalhado nas guitarras distorcidas de gênios musicais como Jimi Hendrix, Jimi Page e David Gilmour, cujos solos forneceram uma trilha sonora – e mesmo um lado espiritual – a esse momento excepcional.

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Essa foi a educação musical da minha geração. Eu tinha oito anos quando os Beatles se separaram; Led Zeppelin lançou Stairway to Heaven quando tinha nove; os Rolling Stones lançaram Exile on Main Street quando tinha dez e o álbum Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, foi lançado quando tinha onze. Para alguém de origem judaica tradicional crescendo numa uma ditadura militar, esses foram mísseis aterrissando no meu toca-discos. No entanto, igual aos programas matutinos do Haroldo de Andrade que ouvia quando criança, ninguém da família, nem a maioria dos meus amigos, conseguia entender como alguém poderia gostar daquele “barulho”. Dessa vez, nem a empregada estava do meu lado.

Apesar da incompreensão, era como se um circo mágico musical tivesse parado na esquina de casa. Queria fugir com ele. Não estava sozinho nessa busca, milhões de outros jovens pelo mundo afora também estavam sintonizados nessas mudanças. Muitos acabariam mais próximos uns dos outros do que das suas próprias famílias.

Trancados no quarto, ouvindo rock, se sentindo oprimidos por nossos pais e professores, meus irmãos de geração digeriam as palavras de ordem nos seus postos avançados. A mensagem era clara: resistir aos caretas, lutar para sermos nós mesmos e subverter os planos que o sistema tinha reservado tanto para nosso futuro quanto para o futuro do planeta.

No Brasil, a repressão acabaria percebendo que havia algo no ar mas não conseguia dizer ao certo o que era, muito menos sabia como lidar com aquilo. Podiam prender um hippie por fumar maconha, um militante por suas ações ou pelos seus livros, mas não dava para acabar com a insatisfação com a pequenez do mundo. Como nossos pais, torciam para que fosse fase de adolescente e que depois nos juntassemos docilmente ao rebanho.

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A força de Olavo

O fenômeno Olavo (Olavo de Carvalho e seus seguidores) me intriga já a alguns anos. Recentemente, um artigo da escritora Elaine Brum publicado no El País, tendo como tema a ascensão de Bolsonaro como representante do homem mediano brasileiro ao poder inspirou-me a um paralelo que deixei delineado em um prefácio que escrevi para o livro “Mistérios da Lua”, de Antonio Farjani.
A história começa cedo, na minha adolescência e termina em um passado relativamente recente, quando eu tive acesso a um conjunto de informações científicas e históricas que preencheram gigantescas lacunas nos meus campos de conhecimento em uma ciência que muito prezo, a saber, a Física. Em um curtíssimo espaço de tempo, tive a percepção do quanto fui (e somos) maltratados na nossa formação escolar geral, que por muitos anos nos despeja quantidades irracionais de conhecimento tido como científico (e de fato, na maioria das vezes o é) mas desacompanhadas de qualquer ferramental que nos permita avaliar o peso e o valor desses conhecimentos. Uma determinada fórmula, uma ferramenta de cálculo, uma tabela periódica de elementos químicos, a imagem teórica de um átomo ou de um cromossomo, tudo isso, nos é apresentado como um simples fato, quando na realidade resultam muitas vezes de décadas de pesquisa ou da vida inteira de um(a) certo(a) cientista. O conhecimento é apresentado desprovido de humanidade, de conexão histórica, de contexto e quase sempre de significado e aplicabilidade prática.
A consequência de todo esse destrato com a ciência e com o conhecimento é que ele passa a ser tratado como banalidade, como peça de consumo, descartável, reciclável, inútil muitas vezes. Quantas vezes, como médico, observei esta confusão entre conhecimentos sólidos e baseados em fortíssimas evidências, e conhecimentos derivados até do folclore mais picaresco, trazidos às vezes à mesa em estado de equivalência.
Por outro lado, para aqueles que não frequentam a academia mas de alguma forma tem alguma sede de conhecimento, o confronto com o volume de informação que se produz a cada segundo no mundo pode produzir experiências frustrantes, trazendo ainda a sensação de distância, de exclusão dessas fontes de geração de conhecimento e uma total falta de controle e compreensão. Junte-se a isso alguns exageros e distorções do cientificismo, que chegam mesmo a desprezar qualquer conhecimento que não tenha sido obtido pelos métodos cartesianos, levando muitas pessoas a sentirem-se massacradas pela não militância acadêmica, esta, acessível a uma fração muito pequena da população.
Esses “excluídos” do mundo científico existem em todas os extratos sociais, inclusive entre aqueles com diploma superior sem pós-graduação sensu strictu (formação de pesquisador/docente). O que não faltam são médicos, engenheiros, advogados, historiadores, farmacêuticos, clérigos, etc., sem qualquer noção de filosofia da ciência e metodologia científica, e que habitam essas zonas de desconforto nos campos da intelectualidade.
Para esses excluídos, surge um “igual”, um homem sem formação acadêmica, mas inteligente, articulado, e certamente com muita cultura, mas com grande grau de oportunismo e capacidade de formar esse forte vínculo com seus “semelhantes”, entitulando-se autodidata, apresentando-se como bem sucedido. Com ideias bizarras e que se contrapõem a quase tudo e a quase todos, transforma-se em verdadeiro herói e mito, dando vazão a todas as fantasias que os aterrorizados exilados da ciência cultivam para suprir suas carências e necessidade de afirmação. Para estas pessoas, um homem com a capacidade de explorar habilmente as contradições de um mundo complexo e eventuais fragilidades da ciência é um verdadeiro sacerdote, que sabe explorar muito bem as questões de fé.
Assim, Olavo de Carvalho é sintoma de um mundo (ou país) onde o conhecimento mal transmitido e o ferramental insuficiente para compreendê-lo gera legiões de apavorados em busca de um porto seguro “intelectual”, que funcione ainda, nesta fúria contestatória, como uma espécie de “vingança” contra toda essa complexidade, aliando-se a isso a incapacidade que temos hoje de construir uma necessária crítica ao cartesianismo e ao racionalismo quase desumano que em certos territórios faz hoje da ciência algo próximo de religião e da academia, quase um “Vaticano”.
O tamanho do sintoma e suas nefastas consequências políticas só nos dá a dimensão da doença que habita nossa sociedade. Ela é sistêmica, adquiriu caráter contagioso e pode ainda tornar-se genética, transmitindo-se à próxima geração. Paradoxalmente, apenas a abordagem histórica e científica pode nos permitir observar que tudo isso é apenas repetição. Já ocorreu e tem um ciclo a percorrer. Paciência, é o que precisaremos para atravessar esta onda.