Solução felina

Invejo minhas duas gatas, Ruby e Getty. Elas não sabem, nem precisam saber, o que é aquecimento global ou hecatombe ecológica, quem são o Trump e o Bolsonaro, não fazem parte de redes sociais, sempre viveram em isolamento e vão continuar a ter a sua comidinha não importa o que aconteça.

Infelizmente pertenço à raça humana e faço parte de uma mega estrutura de produção e de consumo da qual não consigo escapar. Preciso pagar contas, preciso comprar comida, preciso trabalhar e não tenho o luxo que elas têm. 

Junto com todos os que carregam esse fardo, sei que estamos vivendo momentos extremamente inquietantes. Não dá para fugir. Não importa qual a corrente de pensamento, qual a religião, cor, nacionalidade ou mesmo classe social, estamos todos envolvidos. A desigualdade econômica explodiu e continua aumentando, os ecossistemas estão à beira do colapso, existe uma crise econômica seríssima, as novas tecnologias vão precisar cada vez menos da presença humana, uma pandemia nos pegou de surpresa e outras podem vir na sequência. 

O mais perigoso nisso tudo é que nossas lideranças, tanto regionais quanto mundiais, não estão à altura desses desafios cruciais. Muito pelo contrário, salvo raríssimas exceções, são negacionistas ou minimizadoras. Muitos tentam vender uma falsa promessa de conforto através de ficções baseadas em preconceitos, chavões e obscurantismos que visam manter um status quo insustentável. Mesmo lideranças nas oposições – novamente, salvo raras exceções – têm como prioridade vencer disputas eleitorais, algo natural em situações menos emergenciais mas que estão longe de resolver o gravíssimo quadro atual. Quando lideranças mais conscientes aparecem, os que se veem ameaçados, conseguem mantê-las longe da atenção do público para que o circo continue.

Tudo isso faz com que não haja nem estrutura, nem instituições, nem encorajamento, nem respostas, nem priorização para resolver os graves problemas postos na nossa frente. Para piorar as coisas, no geral, há pouquíssimo conhecimento da seriedade da situação. Há muita recusa em encarar a realidade. O que mais vemos são ansiedades em substituí-la por fantasias, sejam elas religiosas, ideológicas, étnicas ou nacionalistas. 

Os paralelos com o que aconteceu na época do nazi fascismo são inevitáveis. Quando sistemas econômicos e políticos aos quais somos umbilicalmente ligados colapsam, as grandes ideias e os líderes messiânicos entram em cena. Nosso reflexo de rebanho, aprendido em escolas, religiões, quartéis, culturas tradicionais e até em nossos lares nos impele a procurar alguém ou algo acima de nós que nos salve, seja como indivíduos ou seja como coletividade. 

Essa é uma hora muito perigosa, pois nos colocamos a mercê de indivíduos, de idéias, de projetos ou de organizações que se apresentam como resposta. A fachada visível e a realidade do seu funcionamento raramente coincidem. É nessa hora que nossa individualidade, nossa liberdade, nossa unicidade, nosso bom senso e o nosso futuro correm o maior perigo. É nessa hora que grandes erros são cometidos pois atribuímos poderes imaginários a seres humanos falíveis e muitas vezes predatórios. Esses erros, quando tomam vida própria, têm consequências imprevisíveis e frequentemente nefastas. 

O propósito dessas palavras não é apresentar soluções milagrosas nem se colocar a favor ou contra personalidades em destaque. O propósito é dizer que indivíduos supra humanos e soluções milagrosas simplesmente não existem. O propósito aqui é dizer que precisamos de instituições fortes, baseadas na racionalidade e voltadas para o bem comum. Precisamos muito mais de políticas do que de políticos. 

Políticos são, ou pelo menos deveriam ser, nossos representantes quando decisões importantes têm de ser tomadas. As instituições onde operam são, ou deveriam ser, as que nós os oferecemos para que trabalhem para a gente. Precisamos, por isso, de comunidades e indivíduos fortes que lutem para que seus interesses sejam atendidos e que escolham bem seus representantes.

Não é à toa que o maior alvo do neo-fascismo seja a democracia. 

Nesses tempos de crise precisamos apenas e sobre tudo que os problemas imensos que enfrentamos sejam resolvidos da melhor maneira possível e no interesse de todos. Não serão salvadores da pátria paternalistas que farão isto por nós. Ao contrário, temos que nos empoderar e nos engajar, onde e como pudermos, para reverter uma situação que está saindo fora de controle. Somos nós que temos que estar a altura dos desafios impostos. Não podemos deixar as coisas nas mãos de outros, sejam eles companhias, líderes religiosos ou políticos e esperar que eles tragam uma solução. 

Devemos escolher gente que nos represente em instituições que controlamos. Porém, dar carta branca a forças hierárquicas que nos veem como peões na esperança que elas resolvam por nós, jamais. Quem tem que ter poder sobre nossas vidas somos nós. 

Voltando às minhas gatas que não entendem nada de política ou de economia e que resolvem suas questões com miados; elas têm mais ciência e controle do mundo em que vivem do que eu do meu. Para elas sou um ser que navega alienado pelo mundo. Que inveja! 

 

A força de Olavo

O fenômeno Olavo (Olavo de Carvalho e seus seguidores) me intriga já a alguns anos. Recentemente, um artigo da escritora Elaine Brum publicado no El País, tendo como tema a ascensão de Bolsonaro como representante do homem mediano brasileiro ao poder inspirou-me a um paralelo que deixei delineado em um prefácio que escrevi para o livro “Mistérios da Lua”, de Antonio Farjani.
A história começa cedo, na minha adolescência e termina em um passado relativamente recente, quando eu tive acesso a um conjunto de informações científicas e históricas que preencheram gigantescas lacunas nos meus campos de conhecimento em uma ciência que muito prezo, a saber, a Física. Em um curtíssimo espaço de tempo, tive a percepção do quanto fui (e somos) maltratados na nossa formação escolar geral, que por muitos anos nos despeja quantidades irracionais de conhecimento tido como científico (e de fato, na maioria das vezes o é) mas desacompanhadas de qualquer ferramental que nos permita avaliar o peso e o valor desses conhecimentos. Uma determinada fórmula, uma ferramenta de cálculo, uma tabela periódica de elementos químicos, a imagem teórica de um átomo ou de um cromossomo, tudo isso, nos é apresentado como um simples fato, quando na realidade resultam muitas vezes de décadas de pesquisa ou da vida inteira de um(a) certo(a) cientista. O conhecimento é apresentado desprovido de humanidade, de conexão histórica, de contexto e quase sempre de significado e aplicabilidade prática.
A consequência de todo esse destrato com a ciência e com o conhecimento é que ele passa a ser tratado como banalidade, como peça de consumo, descartável, reciclável, inútil muitas vezes. Quantas vezes, como médico, observei esta confusão entre conhecimentos sólidos e baseados em fortíssimas evidências, e conhecimentos derivados até do folclore mais picaresco, trazidos às vezes à mesa em estado de equivalência.
Por outro lado, para aqueles que não frequentam a academia mas de alguma forma tem alguma sede de conhecimento, o confronto com o volume de informação que se produz a cada segundo no mundo pode produzir experiências frustrantes, trazendo ainda a sensação de distância, de exclusão dessas fontes de geração de conhecimento e uma total falta de controle e compreensão. Junte-se a isso alguns exageros e distorções do cientificismo, que chegam mesmo a desprezar qualquer conhecimento que não tenha sido obtido pelos métodos cartesianos, levando muitas pessoas a sentirem-se massacradas pela não militância acadêmica, esta, acessível a uma fração muito pequena da população.
Esses “excluídos” do mundo científico existem em todas os extratos sociais, inclusive entre aqueles com diploma superior sem pós-graduação sensu strictu (formação de pesquisador/docente). O que não faltam são médicos, engenheiros, advogados, historiadores, farmacêuticos, clérigos, etc., sem qualquer noção de filosofia da ciência e metodologia científica, e que habitam essas zonas de desconforto nos campos da intelectualidade.
Para esses excluídos, surge um “igual”, um homem sem formação acadêmica, mas inteligente, articulado, e certamente com muita cultura, mas com grande grau de oportunismo e capacidade de formar esse forte vínculo com seus “semelhantes”, entitulando-se autodidata, apresentando-se como bem sucedido. Com ideias bizarras e que se contrapõem a quase tudo e a quase todos, transforma-se em verdadeiro herói e mito, dando vazão a todas as fantasias que os aterrorizados exilados da ciência cultivam para suprir suas carências e necessidade de afirmação. Para estas pessoas, um homem com a capacidade de explorar habilmente as contradições de um mundo complexo e eventuais fragilidades da ciência é um verdadeiro sacerdote, que sabe explorar muito bem as questões de fé.
Assim, Olavo de Carvalho é sintoma de um mundo (ou país) onde o conhecimento mal transmitido e o ferramental insuficiente para compreendê-lo gera legiões de apavorados em busca de um porto seguro “intelectual”, que funcione ainda, nesta fúria contestatória, como uma espécie de “vingança” contra toda essa complexidade, aliando-se a isso a incapacidade que temos hoje de construir uma necessária crítica ao cartesianismo e ao racionalismo quase desumano que em certos territórios faz hoje da ciência algo próximo de religião e da academia, quase um “Vaticano”.
O tamanho do sintoma e suas nefastas consequências políticas só nos dá a dimensão da doença que habita nossa sociedade. Ela é sistêmica, adquiriu caráter contagioso e pode ainda tornar-se genética, transmitindo-se à próxima geração. Paradoxalmente, apenas a abordagem histórica e científica pode nos permitir observar que tudo isso é apenas repetição. Já ocorreu e tem um ciclo a percorrer. Paciência, é o que precisaremos para atravessar esta onda.