Samba Perdido – Capítulo 33 – parte 03

Foto: Eduardo Molinar

*

A entrada de  Felipe, ex-colega do Colégio Andrews e frequentador do Posto Nove, no Arrepio mudou muita coisa. Ligado ao teatro desde sempre, após deixar a escola tinha se tornado ator profissional e tinha impressionado a todos com um papel de destaque na peça Os doze Trabalhos de Hércules, de onde surgiriam muitas carreiras de sucesso no teatro brasileiro. Foi num papo de praia que arrisquei o convite para ser vocalista da banda. A gente se dava bem mas mesmo assim fiquei surpreso com seu interesse instantâneo. Talvez, como todos, estava morrendo de vontade de deixar sua marca no rock. Convocamos um ensaio de introdução que correu às mil maravilhas; ele curtiu nossas músicas de cara, sua voz era boa, sua presença de palco soberba e a química foi perfeita. Agora, com um novo vocalista de primeira, e com seus contatos, sentíamos que a banda era uma séria candidata à fama e à fortuna.

O show de estreia da nova formação foi num bar em Ipanema. O local era especializado em bossa nova, mas a mãe do Felipe, antiga frequentadora, tinha convencido o gerente a nos acolher. Não havia estrutura para bandas ali.  Por isso, além dos instrumentos,  fomos obrigados a pegar emprestado microfones e o equipamento poderoso cedido pelo Charles. Contudo, parecia bom demais para ser verdade e no dia fomos lá empolgados, sentindo que aquilo era o início de uma era de ouro. Enquanto subiamos e desciamos as escadas com aplificadores e partes da baterias e montávamos o equipamento no terraço, ficou óbvio que os funcionários, acostumados com músicos recatados de bossa nova, nos viam como invasores bárbaros ameaçadores e inusitados.

Com tudo montado veio a hora de passar o som. Não tínhamos engenheiro de som e mal sabiamos como manejar aquela parafernalia. Mesmo assim, depois de tocarmos duas ou três músicas e de ficarmos relativamente contentes com o que estavamos ouvindo demos uma parada. Quando estavamos nos preparamos para dar uma volta. o gerente, um cara elegante, baixinho e de cabelo engomado, subiu no terraço para falar conosco e manifestar sua preocupação com o volume.

“Gostei do som, animado, né?” Soou meio falso, mas, fazer o quê? “O problema é que aqui é uma área residencial e às vezes os vizinhos reclamam do barulho, sabe como é?”

“A gente conhece esse problema bem até demais.” A galera concordou com sorrisos.

“Pois é, se vocês entendem, melhor ainda. Eu queria pedir para vocês tocarem mais baixo. Seria possível?”

“Olha, já estamos tocando o mais baixo possível. O problema é a bateria. Ela não está amplificada. Tá vendo? Não tem microfone nenhum nela.” Estava na cara que o cara não estava entendendo nada, mas continuei tentando. “Se a gente tocar mais baixo, só vai dar para ouvir a bateria. Os instrumentos vão soar baixo. A bateria vai continuar no mesmo volume. Ou seja, não vai fazer diferença nenhuma, mas a banda vai soar mal.”

“Mas não dá para a bateria tocar mais baixo também?”

Querendo ser o mais prestativo possível virei para o Mauro: “Fala aê, Mauro? Dá para tu tocar mais baixo?”

A resposta não ajudou muito. “Cara, dá para bater mais fraco, mas o som sai nessa altura mesmo.”

O gerente não se deu por vencido. “Então tá combinado, hoje à noite vocês tocam mais baixo!”

Ele desceu e nos deixou ali, um olhando para cara do outro.

Mauro levantou de trás da bateria e falou: “Foda-se, vamos beber uma cerveja.”

À noite, os convidados começaram a chegar. O Felipe estava fazendo uma ponta em uma novela da TV Globo e por isso havia alguns rostos famosos bem como várias aspirantes a estrelas e umas beldades inacreditáveis entre os convidados. Talvez ciente disso, o gerente tinha mudado o visual do lugar. Tinham coberto o terraço com panos e colocado luz de velas. Tudo estava muito bonito. Quando o terraço encheu a gente ficou esperando o Felipe fazer a social dele. Quando ele veio dizer que estava pronto, pegamos os instrumento, o pessoal do restaurante apagou as luzes e deixou só as onde estavamos acesas, Felipe apresentou a banda de maneira teatral e começamos. A coisa foi bem. Dava para ver que tinha gente curtindo de verdade. No meio da segunda música, ouvi um barulho no meu ouvido. Quando olhei para trás vi que era o gerente gritando que estávamos tocando alto demais.

“Tá alto demais, baixa isso!!”

Tentando não perder a concentração respondi: “Não dá para tocar mais baixo por causa da bateria! ”

Ele sumiu e continuamos. Depois de uns outros dois números, o gerente voltou a bater no meu ombro no meio de uma música.

“Tem alguém querendo falar contigo lá embaixo!”

“Fala que não dá para eu descer agora!”

A próxima coisa que vimos foram seis policiais subindo as escadas. Entraram e foram direto nas tomadas e puxaram os fios dos equipamentos. O som e o clima bom morreram na hora, o show acabo. Todos ficaram boquiabertos vendo os caras descerem sem dizer nem boa noite.

Os dias com o Felipe foram poucos. Pouco depois daquele incidente ele assinou um contrato para um papel importante numa série de televisão e abandonou a carreira musical. Retornei aos vocais, mas discussões começaram a pipocar. Havia conflitos de egos, principalmente entre Eduardo e eu. Tinha o problema que o resto da banda estava preocupada em desenvolver suas habilidades enquanto eu confiava demais nas minhas. O Mauro e o Eduardo ainda estavam pegando aulas particulares – o que para mim era incompatível com o rock. Eles me pressionavam para fazer o mesmo e não conseguiam entender que não podia por causa de grana. Por outro lado, levava o negócio mais a sério que eles, acreditando que se conseguíssemos encontrar o nosso som, poderíamos ter sucesso. Os demais viam a banda mais como uma atividade divertida para os finais de semana. Continuamos, tentamos outros vocalistas, mas depois de um tempo, com a banda indo para lugar nenhum, acabamos enchendo o saco daquilo.

*

Nossa música não era exatamente na moda. Aquela era a época dos góticos, novos românticos, punks e outras criaturas afins. O templo deles era uma boate em Copacabana chamada Crepúsculo de Cubatão. O nome era uma homenagem a Cubatão, uma cidade industrial no estado de São Paulo, famosa por ser o lugar mais poluído da América Latina. Um dos donos do clube era Ronald Biggs, o famoso ladrão de trem inglês, que fugiu de Londres para o Rio de Janeiro em 1970. O local parecia em outra cidade, senão em outro mundo. Sua decoração neoclássica exuberante misturava elementos clássicos com elementos futuristas e tudo o que se poderia esperar de uma casa noturna dos anos 1980.  Os frequentadores eram diferentes de tudo o que se via nas ruas e se vestiam como vampiros, usavam maquiagem pesada e provavelmente nunca haviam tocado num baseado em suas vidas.

A música que saia do seu excelente sistema de som era de bandas praticamente desconhecidas e intencionalmente deprimentes como Joy Division, New Order, Echo and the Bunnymen e Bauhaus, todas ignorando as guitarras e abusando dos teclados, um sacrilégio para qualquer roqueiro raiz criado nos anos setenta. Com relação à paquera, para fazerem sucesso, os caras lá dentro tinham que parecer afeminados. Para alguem de fora, parecia não haver qualquer chance de sexo heterossexual. A entrada era controlada por uma gótica minúscula e invocada, protegida por dois seguranças nada fashion e apropriadamente gigantescos. Sempre havia uma aglomeração de esquisitos na porta implorando para entrar. Quem decidia o acesso era ela apontando o dedo e acenando a cabeça. Para os rejeitados ficava a sentença de morte quando virava para os seguranças e dizendo: “ela/ele parece gente boa”.

Pessoas estranhas passaram a surgir em festas e outros eventos sociais dando declarações sobre o pós-modernismo ou Nietzsche sem entender muito do que estavam falando. Londres era a nova Jerusalém daquela galera e as revistas inglesas iD e The Face, as novas bíblias. Naquele meio, tudo era uma mistura de pose com uma boa dose de arrogância social. A superficialidade ditava que os papos girassem em torno de tendências da moda nas revistas importadas ou nas bandas e artistas que melhor tinham abandonado a estética e a temática das décadas passadas.

Para muitos, pegar um bronze na praia era coisa de neanderthal e pouquíssimos aproveitavam as maravilhas naturais do Rio de Janeiro. Havia um absurdo elementar naquele movimento, se é que poderia se chamar disso. A beleza exuberante da cidade e o seu cenário natural eram perfeitos para a grandiosidade dos delírios tropicalistas de fusão cultural, de experimentação existencial e de gozo dos prazeres da vida inerentes aos anos setenta. O cenário carioca não tinha nada a ver com a temática urbana importada da cinzenta e distante Londres.

A ironia sobre a obsessão com Londres era que, considerando que era inglês de nascença, poderia ter aproveitado a oportunidade para me dar bem. Se não tivesse mergulhado tão a fundo no Brasil, teria.  Ao invés disso, me apeguei a a noção de que era um revolucionário derrotado que se recusava a se entregar. Aquilo representavam o oposto do que eu amava e do que queria no meu mundo. De uma perspectiva cômica, era impressionante ver góticos e punks em jaquetas de couro pretas e botas saíndo de madrugada das festas num calor de 40 graus e desfilando em frente dos banhistas em biquínis e shorts de banho. Pareciam vampiros procurando caixões para se esconder até a noite, quando podiam sair das sombras para invadir a cidade.

Os punks de classe média então eram de um absurdo especial. As roupas que vestiam e os lugares que frequentavam não tinham nada a ver com o que os punks dos Sex Pistols e do Clash, inglêses da classe operária, queriam dizer ao gritarem “não há futuro”. Os punks ingleses ridicularisariam aqueles filhinhos de papai tirando onda usando sua rebeldia, enquanto a maioria dos “punks” da zona sul ficaria horrorizada se parasse para tentar compreendesr o conteúdo de protesto social do movimento. Se entendessem saberiam que, aqueles que tentavam personificar eram contra elitistas metidos a besta. A verdade é que as pessoas apinhadas nos ônibus da periferia industrial de São Paulo ou mesmo as que como eu etavam sendo esmagadas por um choque econômico ceifador de sonhos – eram muito mais próximas ao movimento punk. Caso tivésse alguma ideia sobre o que o movimento punk realmente representava teria aderido, provavelmente adicionando uma pitada tropical, mas para a a galera do rock carioca aquilo era apenas música ruim feita por gente estranha e negativa. Por causa da minha criação e da situação de estar aprendendo a viver num país em formação fez com que a expressão cultural mais importante da minha geração passase ao largo.

Havia muitas razões para estar zangado: o sistema que havia prometido um futuro brilhante para nós estava nos dando um pé na bunda. Mesmo assim, entre muitos havia o papo reacionário de que o momento era para a sobrevivência dos mais fortes. Para eles, só os fracos estavam se dando mal. Apesar do discurso, na prática, o que estava rolando era a sobrevivência daqueles com os pais mais ricos.

….

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Samba Perdido – Capítulo 33 – parte 01

Capítulo 33

“ Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo. ”

Tempo Perdido - Legião Urbana


Ninguém gosta de derrotados, mesmo quando torcem para você perder. Por isso a receptividade da volta de São Paulo foi morna, mesmo que no fundo seu Rafael e a dona Renée tivessem ficado felizes por ter seu filho de volta em casa, na esperança de que deixaria de lado uma luta que nunca entenderam. Da minha parte, apesar do gosto amargo de retornar com o rabo entre as pernas, estava claro que os dias de meu pai estavam contados e queria tentar diminuir o fosso que nos separava antes que fosse tarde demais.

Por falta de melhores opções, no fim do verão, destranquei minha matrícula e voltei para o curso de Economia. O que aconteceu foi previsível. Não me sentia mais parte do que acontecia ali enquanto o pessoal que tinha entrado comigo me menosprezou por não ter ido até o fim naquilo que buscava e meus novos colegas de turma ou me viam como um rebelde incompreensível ou como um idiota que tinha ficado para trás nos estudos. Minhas notas eram baixas, detestava as aulas e  sentia a realidade implacável de perder um ano inteiro para voltar ao ponto de onde tinha saído. Com o país e a família se desintegrando era difícil encontrar um sentido naquela realidade.

No entanto, a vida continuou. A eterna cura carioca para pressões e frustrações – a praia – era infalível. No Posto Nove de Ipanema o tempo, as crises e os problemas pareciam não existir. Depois de um dia regado a mar, sol e beleza natural tanto paisagística quanto humana o mundo parecia voltar ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Num daqueles domingos ensolarados, encontrei o Eduardo, um antigo colega de sala do Colégio Andrews. Estranhei vê-lo ali já que nunca tinha sido frequentador da área, muito menos tinha sido parte da galera. Agora estava mudado, não era mais o cara introvertido e magricela que todos conheciam, estava cabeludo e parecendo descolado. Era óbvio que também tinha dado uma passada pela academia pois estava todo bombado.

Uma das primeiras coisas que me contou, com orgulho, foi que tinha aprendido a tocar guitarra. Sem ter certeza de qual era a dele, mas sempre interessado em levar um som, concordei em marcar uma guitarrada na casa dele depois da praia. Na despedida, Eduardo me perguntou se poderia chamar seu amigo Pedro, um baixista. Concordei e me lembrei do Mauro, um amigo da universidade que tocava bateria, e fiquei de ver se ele poderia ir também. Foi assim que a banda nasceu.

Adoramos a primeira sessão e depois dela aquilo virou uma rotina obrigatória nos fins de semana. Descobrimos naquela barulheira uma diversão recompensante, barata e terapêutica. Quando a música entrava alta, havia a sensação quase delirante de flutuar acima de todo o baixo astral que nos cercava. As frustrações se canalizavam na agressividade das guitarras e do baixo, nas pancadas da bateria e nos gritos no microfone. Quanto a qualidade, bem… estávamos aprendendo.

De qualquer forma, a partir daquele primeiro ensaio, como qualquer outra banda da época, havia a esperança e a meta de um dia tocar no Circo Voador e quem sabe alçar voos mais altos. As músicas que levávamos eram de outras bandas; classicos dos Rolling Stones, Deep Purple e Jimi Hendrix além de algumas nossas que fomos introduzindo, todas fáceis de tocar e catárticas

Como num início de namoro, depois que a coisa se tornou mais séria vieram as formalidades. A principal foi achar um nome. No começo fomos de “Papa Clitóris e os Oligofrênicos”, mas depois de algumas rejeições pensamos melhor e decidimos por um nome mais palatável, “Arrepio”, uma gíria surfista para se dizer impressionado – “O cara arrepiou na guitarra.”

*

A casa do Eduardo era meio apertada para ensaios e passaram a ser na minha, sempre liberada nos fins de semana devido às idas dos meus pais para Teresópolis. Porém não demorou para que os vizinhos fizessem um abaixo assinado por causa do barulho. Voltamos à casa do Eduardo. Seus pais também sempre estavam fora nos finais de semana e lá os vizinhos pareciam não se importar com o ruído. O local escolhido foi o escritório do apartamento, um cômodo que ficava de frente para a favela do Morro do Leme, no final de Copacabana. Nos mesmos dias que ensaiavamos, tinha uma banda punk que também ensaiava num dos barracos. Havia uma rivalidade muda mas tambem um acordo de cavalheiros, quando fazíamos uma pausa, eles começavam e vice-versa. Igual ao punk inglês, suas letras cruas refletiam uma realidade mais dura e simples do que a nossa. Mas não tinha jeito, sua revolta inocente nos fazia rolar no chão de tanta risada.

“Mulher foi assaltada,

a moça estuprada

e a polícia nada, nada, nada!”

Prefiro não pensar a respeito do que pensavam sobre a gente.

A liberação dos vizinhos de prédio do Melo era boa demais para ser verdade. Não demorou muito para que também fizessem um abaixo assinado exigindo o fim da barulheira. Isso nos forçou a procurar uma sala de ensaio de verdade, o que, por sua vez, nos fez entrar ainda mais fundo na toca do coelho do rock carioca. Com todo mundo formando bandas, as guitarradas viraram centrais na juventude carioca e os estúdios de ensaio eram uma extensão do Posto Nove. Entrando e saindo das salas apertadas repletas de equipamento a gente cruzava com as mesmas pessoas que víamos na praia. Lá ficávamos sabendo das melhores festas, das melhores transações de bagulho além das fofocas a respeito das outras bandas, tanto as já estabelecidas quando as em ascensão.

Com os ensaios e os novos contatos veio o primeiro show. A nossa estréia foi num palco armado em frente ao Museu de Arte Moderna no aterro do Flamengo. O evento fazia parte do aquecimento para o primeiro Rock in Rio que estava deixando a cidade desvairada. Excitados com a oportunidade de ouro, fomos vestidos a caráter, todos com roupas bizarras. Como vocalista e guitarrista coloquei uma cartola do meu avô, um blazer superdimensionado sem camisa por baixo, uma bermuda listrada verde e branca e um tênis de basquete laranja. Quando chegou a hora, vencemos o medo e encaramos a pequena multidão com garra. O público adorou e respondeu dançando frenéticamente durante as músicas e gritando o nome da banda nos intervalos. Um dos números que mais causou sensação foi nossa versão de “Wild Thing” do the Throggs e eternizada pelo Jimi Hendrix, Vadia.

Vadia!

Você é uma vadia!

Você cutuca a minha ferida!

Atazana a minha vida!

Depois daquele sucesso prematuro nos animamos e caímos na armadilha de nos levarmos a sério. Em nossa busca pela perfeição, experimentarmos várias salas de ensaio e acabamos por escolher uma na favela do Morro de São Carlos. O dono era o professor de bateria do Mauro, Charles – um cara alto com cabelos louros cacheados e barba encaracolada que faziam com que ele se parecesse com uma figura grega.  Charles tinha sido o baterista do lendário Tim Maia, e da musa da Tropicália, Gal Costa, entre outros.

A favela, porém, era famosa por pertencer a uma das mais perigosas facções criminosas do Rio, o Terceiro Comando. Esse era um lugar onde polícia só se aventurava em subir lá com veículos blindados e protegida por helicópteros. Os muros altos do estúdio, o arame farpado e os cinco rottweilers  faziam com que aquela propriedade parecesse uma fortaleza de um chefão do narcotráfico.

Por sermos a primeira banda a ter a corajem de ensaiar lá, tivemos uma acolhida VIP na espaçosa sala ainda cheirando a cimento. Depois de alguns meses, o lugar se tornaria um dos estúdios de ensaio mais procurados do Rio, utilizado por pelos artistas e bandas mais consagrados da cidade, como Cazuza, Hanói Hanói, Barão Vermelho e Azul Limão. Charles nunca se esqueceria da gente e continuaria fazendo um preço camarada. Ele também era generoso ao nos deixar tocar nos amplificadores profissionais que os famosos deixavam por lá.

Ainda que adorassemos o estúdio e, melhor ainda, tocar a todo volume no equipamento dos astros, chegar lá era sempre uma experiência tensa, principalmente com equipamento e instrumentos caros na traseira do carro. Sempre que dirigíamos pelas ruas estreitas, o pessoal da favela nos observava, sem saber direito se éramos da polícia, membros de uma facção rival ou clientes. Charles devia ter algum acordo tanto com os traficantes quanto com a polícia pois nunca fomos abordados, embora de vez em quando ele ligasse para o Marcos avisando para a gente não ir naquele dia porque o bicho estava pegando.

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Samba Perdido – Capítulo 21 – Parte 02

 O destino daquelas férias era a encantadora capital da Bahia, Salvador. Não dava para ir de Blues Boy, a viagem de 1.200 quilômetros seria puxada demais para um fusca antigo além de muito mais cara do que a passagem de ônibus. Também, dirigir aquela distância em uma pista simples seria um desafio grande demais para minha recém adquirida habilidade automobilística. A opção que sobrou foi encarar 30 horas de ônibus, e foi assim que fui conhecer a cidade pela qual tinha me apaixonado nos livros de Jorge Amado e na música dos Novos Baianos.

Meu companheiro de viagem dessa vez foi o Maurício, aquele do joelho machucado na Casa Rosa. Ele tinha virado ainda mais careta que o Davi e sequer era chegado em correr atrás de mulher. O negócio dele era se provar em assuntos chatos: contas, problemas de matemática e física e outras questões teóricas. 

Talvez devido a esses atributos, o cara tinha uma tendência à histeria quando ficava nervoso, o que era frequente. Seu corpo franzino não era propício a tais arroubos, já que não garantiria sua integridade fisica caso alguém reagisse com a mesma intensidade da gritaria. A sua sorte era que esses episódios pegavam os incautos de surpresa que ficavam se perguntando que porra era aquela. Os conhecidos já sabiam que não era para levar a sério.

Na segunda parada do ônibus, não deu outra, o caixa se equivocou no troco do sanduíche e isso causou um surto.

“O troco é dois e setenta, e não dois e vinte!!” o Maurício já estava com a cara toda contorcida.

“Ih, é mesmo seu moço! Deixa eu pegar os outros cinquenta centavos aqui.”

“Está querendo me roubar, né seu marginal!? Isso é inaceitável!!” Os gritos já chamando a atenção de todo mundo.

“Desculpa, doutor! Os cinquenta centavos estão aqui.” Disse o cara já arrependido de ter acordado naquele dia.

Isso, por alguma razão, fez o Maurício ficar com ainda mais raiva. “Desculpa o caralho, seu ladrão safado!! não tem desculpa! Cadê o gerente desse estabelecimento!! Gerente!!! Gerente!!” No canto do olho espiei um sujeito com pinta de gerente colocar a cabeça para fora da porta da cozinha e, depois de ver a encrenca, voltar para dentro.

“Cadê o gerente!? Não tem gerente nessa porcaria!!?? Eu quero a polícia aqui para prender esse ladrão agora.”

 A essa altura, a parada do ônibus inteira estava presenciando o mico, chocada. Ainda que não desse para se acostumar, já conhecia esse lado do meu amigo e tive que ir lá para acalmar a situação.

“Aê Maurício, o ônibus já tá saindo, o motorista tá esperando. Deixa isso para lá, vamos embora!”

“Eu não saio daqui antes de prenderem esse marginal!!” O tom ainda não tinha baixado.

“Maurício, são cinquenta centavos, o cara já admitiu que estava errado e te ofereceu o troco certo.”

“Mas ele é um marginal! Tem que ir preso!” O tom dessa vez baixou e aquela foi só para mim, embora todos também tivessem ouvido.

“É, mas até acharem o gerente, chamarem a polícia, você prestar depoimento e tudo mais, o ônibus já vai ter partido e a gente não vai ter como chegar a Salvador. Você já mandou o teu recado. Duvido que o cara faça isso de novo.”

 Essa finalmente o sossegou, mas antes de sair vieram os argumentos conclusivos. “É por isso que este país não vai para frente! Um vagabundo desses tenta me roubar e fica todo mundo do lado dele!!”

 O Maurício era um cara bem-intencionado, mas era difícil. Nossos país eram amigos, nossas irmãs eram amigas, ele também era sócio do Paissandu e vivíamos jogando bola juntos até depois que tinha me juntado à “esquadrilha da fumaça”. Havia um fio de lealdade inquebrável depois de anos de amizade. Entretanto, só esperava que aquele constrangimento não fosse o presságio de umas férias pesadelo. 

*

Chegamos a Salvador esperando um dos melhores – senão o melhor – carnaval no mundo. De minha parte, estava doido para ver o trio elétrico. Ainda nos seus dias de glória, esse era um gênero musical que, de acordo com os baianos, foi o pioneiro mundial no uso da guitarra elétrica. Nos anos 1940, dois músicos, Dodô e Osmar, descobriram que colocar cera de baleia ao redor dos captadores permitia que amplificassem cordas de aço num braço de bandolim sem causar microfonia. Foi assim que criaram o “pau elétrico” e quando viram que o som caía bem com frevo, foram para o carnaval de rua e o estilo virou febre. Já no fim dos anos 1960, com a chegada do rock, os trios adicionaram mais instrumentos e percussão para dar mais peso às suas performances, os instrumentos melhoraram, as influências mudaram e o som se tornou mais afiado.

Durante o carnaval, caminhões apinhados de aparelhagem de som e de alto-falantes  percorriam as ruas de paralelepípedos da parte histórica da cidade com os músicos se equilibrando para não cair enquanto tocavam. As milhares de pessoas acompanhando essas fortalezas musicais se lançavam num frenesi semelhante ao de uma procissão hindu misturada com um show de punk rock.

Contrabalançando a loucura amplificada dos trios, havia blocos rústicos que desfilavam a pé. Tocavam o ritmo afro-brasileiro mais suave do afoxé. Contando apenas com seus tambores e vozes para contagiar a multidão, faziam com que ela respondesse de uma maneira mais calma, mas com a mesma intensidade aos cantos que faziam linha direta com o continente Africano. Dentre eles estavam os Filhos de Gandhi, um grupo originado de trabalhadores da estiva. Eles saiam de túnicas brancas e nos seus desfiles paravam para fazer passos ensaiados, puxavam refrões familiares ao povo – muitos do Candomblé – e passavam sua mensagem de paz baseada nos ensinamentos e na filosofia de Mahatma Gandhi. 

O palco para essa folia especial eram os sobrados e as calçadas de uma das primeiras metrópoles do continente americano, a primeira capital do Brasil. Os blocos percorriam suas ruas num caminho em forma de um oito. Na junção central, onde as duas voltas se encontravam, ficava a Praça Castro Alves, o epicentro do Carnaval. Nosso hotel ficava logo depois da esquina. As bandas paravam lá para permitir que a multidão engrossasse e então tocavam seus maiores sucessos. Era comum duas bandas vindas de direções opostas chegarem na praça juntas. Esse fenômeno era chamado de encontro dos trios. Quando isso acontecia, as bandas se intercalavam e competiam pelo apreço da multidão enlouquecida. Quem saía ganhando eram as dezenas, às vezes centenas, de milhares de foliões pulando na praça.

Por uma sorte incrível, estava lá no encontro entre a realeza do carnaval de Salvador – os Novos Baianos de um lado e o Trio Elétrico de Dodô e Osmar do outro. O primeiro, a minha banda preferida de todos os tempos e o segundo, os criadores do trio elétrico que contavam com o melhor guitarrista do gênero, Armandinho Macedo, filho de Osmar. Depois de se instalarem nas extremidades da Praça Castro Alves, os dois trios deram uma pequena pausa enquanto os músicos e a multidão se preparavam para o que eles sabiam ser um dos pontos altos do Carnaval daquele ano. 

Quem pegou primeiro no microfone foi Paulinho Boca de Cantor, vocalista dos Novos Baianos, que saudou a massa. 

“Boa tarde, Salvador!”

Não teve uma alma na praça que não tenha ido à loucura.

“Como é bom estar aqui nessa praça, na nossa terra e tocando para a nossa gente. Viva Salvador e viva o Carnaval da Bahia!” Novamente a massa foi ao delírio.

” Queria aproveitar para mandar um abraço para o Moraes, o nosso irmão Moraes Moreira, que está do outro lado da praça com o trio de Dodô e Osmar.” Moraes tinha saído dos Novos Baianos e no Carnaval ele cantava com o trio “rival”. “Fala Moraes!! Fala Armandinho, Dodô e Osmar! A Bahia saúda vocês!!”

Quando a gritaria baixou, o Moraes respondeu: “Fala meu querido Paulinho! Um abraço e muito carinho para meus irmãos dos Novos Baianos!” Depois, ele se voltou para a multidão. “Fala Salvador! Fala Bahia!! Muito amor e muita paz para todos vocês!” 

Com noção de timing, Moraes continuou. “Há cinquenta anos atrás, Osmar aqui do meu lado e Dodô começaram o trio elétrico e fizeram do Carnaval da Bahia o melhor do mundo. Esta música e uma homenagem a eles. Viva Dodô e Osmar!”

Ele olhou para a banda, deu o sinal e a guitarra baiana do Armandinho rasgou o ar da praça. Depois do solo curto, mas espetacular, o resto da banda veio atrás.

Dodô! Dodô!

Antes do gringo a guitarra ele inventou,

Osmar! Osmar!

O Carnaval veio o trio eletrizar.

Viva Dodô e Osmar!

Com a música veio o deleite, era como se a energia do Carnaval estivesse jorrando do céu e se espalhando pela praça. Depois da primeira música, os Novos Baianos retrucaram com uma marcha de Carnaval do Caetano Veloso.

A praça Castro Alves é do povo,

Como o céu é do avião,

Um frevo novo, eu peço um frevo novo,

Todo mundo na praça 

E muita gente sem graça no salão…

Em toda e qualquer música a galera reunida parecia estar celebrando uma vitória incessante de Copa do Mundo. A energia irresistível parecia fazer a multidão se fundir num ente único.

*

Eu ia sozinho. O Maurício se recusava a se misturar com o povão, ele odiava multidões e gente esbarrando nele. Eu não queria perder aquela energia por nada nesse mundo. Assim, enquanto mergulhava a fundo no Carnaval de rua que não parava durante os quatro dias de festa, ele ia para bailes de Carnaval em clubes que eram uma escolha mais sensata, mas completamente sem graça. 

Estava ciente do que poderia acontecer se deixássemos nossas diferenças crescerem mais do que já estavam. Já tinha quase perdido a amizade do Davi e não queria repetir isso com o Maurício. A única coisa que a gente fazia junto era comer e sair de dia para descobrir as praias de Salvador.  Por isso, na última noite de Carnaval, concordei em fazer alguma coisa juntos. Decidimos entrar de penetra no baile mais exclusivo de Salvador, o do requintado Clube Baiano de Tênis. Este era um clube frequentado pela elite da cidade onde poucas pessoas realmente jogavam tênis, mas onde muita gente gostava de ter seu home associado a um esporte britânico considerado chique.

A segurança na porta estava pesada, mas os muros que cercavam o clube eram baixos e fáceis de pular. Não tardou muito para nos juntarmos a alguns passantes que haviam tido a mesma ideia que a gente. O Maurício foi um dos primeiros a pular o muro – e um dos poucos a obter sucesso. Antes da minha vez, a polícia chegou correndo e a gente teve que se dispersar. Eu e alguns dos meus camaradas de fuga achamos uma outra parte mais afastada do muro, discreta e igualmente fácil. Pulamos e caímos no meio das quadras de tênis. Assim que pusemos os pés no chão, enormes cães vieram correndo em nossa direção. Sem pensar duas vezes, subimos o muro de volta com uma rapidez de desenho animado. Depois disso desisti. Voltei ao hotel tão desanimado que nem tive vontade de me juntar a folia pegando fogo a meia quadra de distância. O Carnaval de Salvador tinha terminado para mim.

O Maurício voltou de madrugada. Como era de se esperar, não tinha comido ninguém. Esse também tinha sido o meu caso em Salvador, mas pelo menos tinha vivenciado um dos melhores encontros de trios da história.

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Samba Perdido – Capítulo 20 – Parte 03

Haviam mais contradições. Em alguns finais de semana, deixava de lado a pretensão hippie, arrumava o cabelo, colocava uma camisa com colarinho, sapatos de couro brilhantes, cinto e calça social para ir às gafieiras. Resquícios dos dias de glória do samba nos anos 1930 e 1940, a maioria ficava em torno da Praça Tirandentes, na Lapa. Não era apenas a arquitetura que permanecia intacta, as orquestras de samba que tocavam ali também. Elas eram autênticas, lideradas por sambistas da antiga encantados por estar virando moda de novo tanto na Zona Norte quanto na Zona Sul.

Ainda mantinha a amizade com o Davi e com a galera “brima” e ia com eles. Mas quem dizia que ia lá pela dança ou pela experiência autêntica estava mentindo. Para nós, a atração maior era o monte de mulheres bonitas provenientes do lado “errado” da Floresta da Tijuca, algumas novas na cidade, interessadas em jovens do lado “certo” da cadeia de montanhas. Depois das danças de rosto colado sob luzes imitando as de discotecas havia as cervejas, os beijos introdutórios e as trocas de números de telefones. Vindos de mundos diferentes, o anonimato protegia ambos os lados e permitia casos rápidos sem a pressão dos círculos sociais mais chegados. Era raro sair de lá sem resultados. Seguindo a mentalidade da época, estávamos fazendo o que se esperava de machos latino-americanos e por mais frio que possa parecer, era isso que as atraía.

Apesar dasses sucessos, ser tímido com as garotas que interessavam e corajoso com as que não, nunca levaria a uma vida afetiva saudável. O esforço para criar uma aura bacana na esperança de atrair uma garota à altura dos meus sonhos não estava dando certo. Talvez por não ser sincero o bastante, não ter a familia suficientemente rica ou por ser esquisito demais, ou talvez por pura impaciência, o que eu queria não se materializava. Ainda por cima, havia um demônio subversivo me dizendo que a felicidade num relacionamento resultando em casamento e familia era uma fantasia que só existia na cabeça de burgueses.

*

A pressão em torno do vestibular estava aumentando exponencialmente.  A um mês da prova, a música e as festas teriam que ficar em segundo plano. Se não colocasse trabalho duro na equação, nada de universidade boa nem de tolerância em casa. Isso pedia medidas radicais e por isso fui para Teresópolis para passar duas semanas me preparando isolado.

No dia da primeira prova, acordei de madrugada. Sem conseguir pegar de novo no sono, fui para a praia para me acalmar. O nascer do sol estava espetacular e o mar estava calmo e convidativo. Mergulhei, nadei, peguei umas ondas e relaxei. Quando saí, percebi um homem na passarela olhando para mim. Parecia um Zé Pilintra vestindo um terno de linho branco, chapéu. Ele era alto, usava um bigode curto, e na hora me veio em mente Alec, meu avô por parte de mãe. Aquele encontro bizarro me deu calafrios na espinha, mas o encarei como um bom presságio.

Fui para casa, tomei banho e café da manhã e saí para pegar o ônibus rumo a uma velha escola primária no final do Leblon. Quando saltei me juntei às centenas de outros estudantes esperando no portão. depois de uns dez minutos, funcionários vestidos em jalecos vieram para nos deixar entrar. O primeiro passo era ver a sala onde deveríamos ir em um quadro de avisos. Achei a minha, entrei e fui me sentar no fundo numa cadeira escolar com braço dobrável, a parte de baixo cravejada de velhos pedaços de chiclete.

Quando deu nove horas, os portões fecharam e os inspetores, todos na faixa dos vinte anos, passaram pelas carteiras nos entregando lápis e borracha. Um pouco depois, alguém mais graduado entrou, fez a chamada e nos colocou a par das regras: nada de cola, nada de conversa e quando dissessem que o tempo acabou todos teriam que entregar as provas imediatamente. Depois disso, nos deram grossos envelopes de tamanho A4 contendo as provas e um cartão onde deveríamos marcar as respostas de múltipla escolha.

Os exames eram divididos em quatro dias. Confesso que nas provas de física e química, fui com algumas fórmulas importantes anotadas na parte de baixo das minhas calças, mas nas outras, português, matemática, línguas, história, biologia e geografia, joguei limpo.

*

Com medo do pior, no fim de semana quando os resultados seriam anunciados nos jornais, Kristoff e eu fugimos para Mauá. Acampamos perto da Maromba onde a única ligação com o mundo exterior era o telefone pago de uma pousada. No domingo que saíram os resultados, seria mais seguro ficar sabendo da notícia à distância. O plano era ligar para a Sarah que tinha passado pelo mesmo processo e não me julgaria tanto caso tivesse me dado mal.

Quando atendeu o telefone, ela já tinha procurado por meu nome. Para a absoluta surpresa de todos, eu havia passado para a UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, no primeiro semestre do seu conceituado curso de Economia, considerado o melhor do Rio e um dos melhores do país. A teoria de ser contra tudo que o vestibular representava evaporou na hora.

“Caralho, mana! Tu tá falando sério!? UFRJ, primeiro semestre??!!!”

“É, seu cagão, e ainda vai ter a moleza de estudar na Urca. ” Ela tinha cursado a mesma universidade mas no Fundão do lado do aeroporto. Mas na hora aquilo não importava, ela tinha deixado de lado sua distancia e estava contente.

“E os velhos?”

“Estão nas nuvens. Não acreditaram também. Tu é muito sortudo, mano! Um dia você ainda vai me explicar como você conseguiu essa façanha depois de tanta vagabundagem.”

“Ah, quem tem os genes da Dona Renée consegue qualquer coisa, ela nunca te contou?”

A gente riu um pouquinho. “Eles saíram para Teresópolis faz uma meia hora, ficaram esperando você ligar, mas acabaram desistindo.”

“Foi o que eu calculei.” Demos mais risadas. “Obrigadão mana, um beijo.”

“Um beijo e parabéns mano. Pode curtir à vontade aí e aguarde uma recepção de gala na volta.”

Antes de desligar, o Kristoff me deu uma cutucada e me lembrei: “Você também procurou pelo nome do Kristoff?”

“Procurei, passa o telefone para ele que eu quero dar a notícia eu mesma.”

Ele tirou o telefone da minha mão apressadamente, “Fala Sarah, tudo bem?”

A reação dele foi uma risada alta. “Ha, ha, ha, nem dá para acreditar!” Ele tinha passado para biologia para a mesma UFRJ, um dos cursos mais difíceis de se entrar, com 20 estudantes por vaga.

*

Depois daquele telefonema estávamos os dois nas nuvens. Para comemorar a ocasião especial, a gente resolveu experimentar a mais recente coqueluche alucinógena da galera: chá de cogumelos. Mauá era conhecida por tê-los e o clima estava perfeito para que brotassem, ensolarado após alguns dias de chuva pesada.

Corremos para as pastagens próximas, mas não encontramos nada. Nossas esperanças se reascenderam quando alguém nos disse que certamente encontraríamos alguns nas pastagens de Campo Alegre, um vilarejo a 40km. O problema era que o nosso único meio de transporte era nossos pés, mas tínhamos bastante obstinação para sair numa caminhada de quase um dia inteiro para colher nossos fungos dourados.

Fomos na hora. A caminhada exaustiva valeu a pena: encontramos um campo cheio deles e colhemos o que conseguimos sob o olhar ameaçador do touro dono do pedaço. Tínhamos que ser cuidadosos: havia duas espécies parecidas de cogumelos nas pastagens. Os dois eram do mesmo tamanho e com o mesmo formato. O que queríamos tinha listas pretas na parte de baixo, o outro tinha listas brancas e era venenoso. Quando terminamos, depois de um momento de euforia, caímos na real e lembramos de que ainda tínhamos a longa caminhada de volta pela frente.

De volta ao acampamento, cansados, aproveitamos os últimos minutos de sol para um mergulho merecido no rio. Quando estávamos prontos para a noitada, resolvemos não fazer um chá já que daria trabalho demais, simplesmente abrimos a bolsa, dividimos a colheita, três para cada um, e os comemos. Eram parecidos com cogumelos comuns só que tinham um sabor mais marcante. Contudo, naquela altura o aspecto culinário era irrelevante.

Já estava escuro quando voltamos para a estrada, dessa vez com os instrumentos debaixo do braço. Tivemos sorte de pegar uma carona. O dono do carro era um casal mais velho de paulistas procurando uma pousada depois da Maromba. Eles estavam ansiosos para saber se tinhamos dicas de bons restaurantes bons e lugares para conhecer na área. No banco de trás, olhando pela janela, tentando responder suas perguntas, comecei a sentir a cabeça ficar leve. Quando saímos e vimos as luzes do carro se distanciar no escuro da estrada de terra, já nos encontrávamos em território psicodélico.

Estávamos na praça da Maromba – um quadrado de terra delineado por poucas casas, um armazém, um bar e uma igreja. Para não sair numa tangente incontrolável, tivemos o bom senso de ir ao bar. Sendo o único nas redondezas, era o lugar onde a malucada se encontrava à noite para levar um som. As únicas outras luzes ao redor vinham do armazém no outro lado do terreno baldio.  O pessoal da terra se reunia lá para beber bebida barata em torno de uma mesa de sinuca. Os dois grupos respeitavam o espaço do outro. Uns completamente chapados de um lado e os outros igualmente passados por uma mistura fatal de cachaça com o famoso mel da região do outro.

Já havia dois caras sentados na mesa principal do nosso bar dedilhando alguma coisa no violão. Perguntamos se podíamos afinar com eles e saímos tocando. Com quatro pessoas tocando o pessoal foi chegando. Depois de um tempo, Leandro, a estrela musical da nossa turma, que mais tarde se tornaria o guitarrista predileto do Cazuza e que chegou a tocar com Roberto Carlos, apareceu e fez o som decolar para as alturas. Mais tarde, autointitulado padrinho dos músicos de Mauá, o lendário e veterano Serginho do Mel, também apareceu do nada pedindo para gente fazer uma levada de blues. Mais pessoas foram se juntando e no final, deveria ter uns sete ou oito músicos captando o que os espíritos tinham a dizer sobre a beleza das montanhas e o que a lua prateada e as estrelas acima dela estavam achando daquela noite.

A população de doidos da Maromba acabou comparecendo em peso e, eufórica, se juntou participando com o que quer que pudesse aumentar a energia – cantando versos improvisados, batendo palmas, batucando nas mesas e nas paredes frágeis do bar ou simplesmente dançando. Como num quadro louco de Van Gogh, a música, o lugar e as pessoas se misturaram num transe que durou horas.

Não me lembro como aquela explosão de psicodelismo terminou e nem onde dormi. Só sei que de manhã, quando fomos tomar nossa dose diária de leite tirado da vaca e quase todos da noite passada estavam lá na fila. Enquanto esperávamos a coitada da vaca dar seu leite para aquela malucada, todos comentavam o quanto o som tinha sido bom. Aos poucos fomos descobrindo que todos os músicos tinham comido cogumelos, mas não sabiam que os outros também tinham e isso virou a piada da cidade.

Passamos o resto do dia curando nossas ressacas no escorrega, um tobogã aquático natural que ficava depois da Maromba, se espatifando na água gelada depois de pegar velocidade nas pedras. Aqueles choques térmicos nos trouxeram de volta à vida normal e à lembrança de que tínhamos deixado o pesadelo do vestibular para trás com uma vitória.

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Samba Perdido – Capítulo 20 – Parte 02

Independentemente da consciência existencial-política, não passava de um garoto pré-universitário da Zona Sul carioca. 1980 seria um ano não só de muita curtição, mas também de contradições. A mais estranha dessas incoerências era que fazer parte do clube de músicos doidões teve um efeito positivo em meus estudos. Não tinha problemas para dormir, não tinha sequelas de stress e, apesar da loucura quase diária, meu estado de espírito era bem mais equilibrado do que o dos colegas caretas. Além disso, quando resolvia estudar, conseguia absorver as matérias.

A nível de galera, com alguns de nós mandado bem no violão e sabendo lidar com a malandragem das ruas melhor do que estudantes comuns, deixamos de ser vistos como os esquisitos da escola para nos tornarmos a galera descolada. As nossas festas eram as melhores e mesmo as garotas mais bonitas começaram a nos notar.

No meio do ano escolar mais puxado de nossas vidas, surgiu uma nova Meca: a região de Visconde de Mauá, uma coleção de pequenos vilarejos rurais aninhados na Serra da Mantiqueira entre o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Quando era criança, a família costumava passar temporadas rurais por lá. Muitas das pousadas tinham sido erguidas por imigrantes do velho continente. Isso e o ar mais temperado faziam com que os arredores lembrassem a Europa Central onde Rafael havia crescido. Ele adorava desfrutar as férias lá com seus filhos de uma maneira parecida com a que passara sua própria infância. Íamos juntos para ver as vacas sendo ordenadas e outros afazeres rurais de manhã bem cedo. Sempre que encontrava uma oportunidade ele parava numa porteira para nos explicar a vida na fazenda, apontando para galinhas, vacas, porcos, perus, ovelhas e outros animais e dizendo como deveriam ser criados. 

No começo dos anos 1980, Visconde de Mauá havia mudado muito. Ainda havia famílias indo passar o verão e fins de semana prolongados nas suas pousadas, mas em geral a região tinha se tornado refúgio para os únicos hippies autênticos que ainda existiam no Brasil e talvez no mundo. Com seus cabelos longos e descuidados, suas roupas não convencionais caindo aos pedaços e estampadas com motivos indianos, desenhos de cogumelos alucinógenos e de folhas de cannabis, eram alienados para valer; totalmente fora da sociedade, loucos demais até mesmo para nós. 

Suas cabanas tinham um ar de tendas celtas, com desenhos psicodélicos, retratos de Jimi Hendrix, Janis Joplin e John Lennon espalhados nas paredes, ao lado de referências a viagens lisérgicas, letras de músicas e o sempre presente símbolo hippie. Sua intensidade evocava talvez os últimos ecos de Woodstock. Para nós, conviver com eles era como fumar a ponta de um baseado acendido por gigantes num passado neolítico.

Mauá ficava cerca de quatro horas do Rio e nos feriados chuvosos e sem praia, não havia dúvida para onde ir. As montanhas, as florestas e os rios nos faziam sentir próximos de nossos heróis do rock inglês, ou pelo menos do visual das capas de seus discos. Em uma de nossas idas, conseguimos levar algumas garotas da escola. Lidar com membros do sexo oposto na mesma frequência intelectual que a gente era uma enorme novidade. O que era ainda mais constrangedor, é que podiam estar interessadas em nós. Quando as levamos para conhecer uma cachoeira e elas ficaram de topless, nós encaramos sua iniciativa de forma madura conseguindo manter nossas bocas fechadas e sem babar.

À noite, de volta ao acampamento montado no Vale do Pavão, acendemos uma fogueira, abrimos garrafas de vinho e compartilhamos a comida enlatada. O bem-estar do banho forte e gelado na cachoeira tinha aberto nosso apetite. Apesar da comida horrível, o vinho, e principalmente o fogo, criaram uma atmosfera especial. Depois da janta, fomos até as barracas, tiramos os violões de suas capas e nos preparamos para tocar. 

“Porra Kristoff, esse baseado está todo babado, toma cuidado!”

“Meu irmão, foi você que apertou ele frouxo demais de novo, coloquei a goma para ver se ele não abria. ”

“Nunca pensei que você fumasse também Leninha, muito bem!” Depois de provavelmente ter dado uma de babaca misógeno, dei uma risada sem graça. “E aí? Está curtindo Mauá?”

“Muito legal aqui, lindo, sem sítios, rústico, adoro coisas assim.”

Uma das outras meninas, a Tetê, falou: “E então, vocês não iam fazer um concerto para a gente? Cadê?”

“Aê! Vamos levar Stairway to Heaven para elas.”

 Era uma do Led Zeppelin, fácil demais, quase apelativa, mas a gente sabia que elas iam curtir. Logo na abertura da música, a flauta transversal do Kristoff ressoou no silêncio da mata. Por ser o único som na redondeza, foi uma viagem. A música evoluiu de um estilo medieval para um rock mais pesado. Não conhecia a letra inteira, mas enrolava num inglês convincente.

“There’s a lady who knows, all that glitters is gold…”

O primeiro número foi um sucesso e dava para ver que tinham adorado. Se fôssemos espertos, teríamos parado ali ou tocado só mais uma, talvez Time do Pink Floyd. Mas não, encorajados pela receptividade, partimos para uma improvisação meio jazzística e dali a coisa desandou. Para a gente, os acordes, as levadas e os solos eram um bate-papo sofisticado e emotivo ao qual a gente já estava acostumado. Para as garotas, aquela era uma linguagem que não entendiam e que as fizeram se sentir excluídas. A ideia original era a de impressioná-las, mas o resultado não poderia ter sido mais diferente: elas ficaram olhando umas paras as outras, se perguntando o que diabos estava acontecendo.

Eu era o tipo de cara que nunca sabia quando uma garota estava dando em cima dele, mas apesar da leseira, podia perceber que havia uma tensão rolando entre a Leninha e eu. Embora fosse cara de pau com meninas que nunca tinha visto na vida, era tímido demais com as que conhecia e isso impediu uma aproximação direta naquele contexto. Contudo, tive a malícia de colocar meu saco de dormir ao lado do dela na barraca, pensando que quando ela entrasse, a seguiria imediatamente e uma coisa acabaria levando a outra. Por conta da nossa viagem musical, só a primeira parte saiu de acordo com o plano. Leninha foi para a barraca dormir antes de acabarmos. A segunda parte nunca aconteceu. Quando, horas depois, me deitei ao seu lado e tentei acordá-la, ela não respondeu e fiquei com medo de como reagiria se insistisse.

Na segunda noite, o frio tinha se tornado insuportável. Esquecemos a bobagem roqueira anglo-saxã e um dos caras foi até a Maromba – o vilarejo hippie que ficava próximo – para ver se havia algum lugar para a gente ficar, mesmo que tivéssemos que alugar. Depois de três ou quatro horas, ele voltou com boas notícias: tinha encontrado um quarto, um quarto apenas, para oito de nós e fomos para lá felizes.

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