por Richard Klein | 29 ago, 2020 | Brasil, Comportamento
O hotel Sol de Ipanema era o único de frente para o mar na Avenida Vieira Souto. Ele ficava quase na esquina com a Rua Montenegro – mais tarde renomeada de Rua Vinicius de Moraes. Era em frente dele que minha turma de amigos mais caretas; Mauricio, Jaime, Hélcio, Davi, Leo e companhia pegavam sua praia. Apesar de todas as minhas transformações, ainda era colado com eles. Aquele ponto era para lá cômodo; quase na saída da rua que caminhava de casa para ir a praia.
Numa manhã ensolarada de sábado, ali com a praia ainda vazia, Davi e eu estávamos sentados na beira d’água descansando do bodyboard. De repente um cara magro mas com um corpo bem definido, por volta dos 40 apareceu na nossa frente e começou a jogar frescobol numa tanga fio-dental de crochê escandalosamente minúscula. O cara até que jogava bem, mas depois de um tempo de ficar olhando para aquilo ligeiramente incomodado, virei para o Davi e perguntei.
“E aí, Davi? Quer de natal uma tanguinha como a do teu amigo?”
Davi nem se dignou a responder, mas passado alguns minutos a cara dele acendeu. Ele me cutucou e cochichou no meu ouvido, “Rique, aquele não é o Gabeira?”
Davi estava se referindo ao jornalista Fernando Gabeira, um dos exilados mais famosos que, em 1969, tinha se envolvido no sequestro do embaixador americano no Rio, Charles Elbrick. A sua autobiografia O que é Isto, Companheiro? era leitura obrigatória. Todos tinham lido, inclusive eu. Era um relato na primeira pessoa de como tinha sido o mundo das organizações de luta armada. Nele, descrevia como tinha se envolvido naquela situação, como tinha participado do sequestro do embaixador americano, como tinha sido o cativeiro do diplomata e como finalmente tinha sido preso. Depois, relatava sua estadia na prisão, sua troca junto com alguns companheiros por um outro figurão estrangeiro e na sequência, sua vida no exílio.
O livro virou polêmico na esquerda brasileira porque, além das críticas tanto à metodologia quanto aos objetivos da luta armada, o ex-militante confessou que durante aqueles tempos heroicos tinha sido ativamente bissexual. Lançando esse escândalo na veia jugular da militância, agora exposta como retrógrada ao invés de vanguardista, surfando na onda da fama, Gabeira abriu um caminho alternativo de resistência ao regime e à burguesia, que denominou “política do corpo”. O que ele realmente quiz dizer com aquilo é ainda hoje motivo de debate. Só sei que um receituário para revolução prescrevendo honestidade consigo mesmo, rejeição à imposições de qualquer lado e pregando o sexo livre caiu bem em Ipanema.
“Sei não, Davi, só vi a recepção dele no aeroporto na televisão. Não dá para dizer, mas pela tanguinha é capaz.”
“Tenho quase certeza que é. Vou dar uma olhada na contracapa do meu livro quando chegar em casa, tem uma foto dele lá.”
De noite, Davi me ligou confirmando a identidade do cara da tanguinha, era o Gabeira mesmo. O mais estranho é que devia ter um fotógrafo na área seguindo o ex-guerrilheiro, porque no dia seguinte, jornais de um lado a outro do país estamparam suas capas com uma foto do ex-guerrilheiro em seus trajes mínimos bebendo mate gelado, em frente ao Sol de Ipanema.
*
As praias do Rio tinham – e ainda têm – uma programação e uma demarcação territorial rígida. Isso permitia a qualquer um dizer: “Diga-me quando e onde você toma sol que eu te direi quem és.” Agora, de madrugada os pescadores de Copacabana – que também pescavam em Ipanema – dividiam o mar com surfistas. Na areia, praticantes de Yoga e Tai Chi solitários meditavam sob os primeiros raios de sol enquanto corredores e ciclistas se exercitavam no calçadão. Mais tarde, da mesma forma de quando era criança, a posse da praia passava às famílias, incluindo crianças, mães, avós, babás, cães e todos os outros componentes da vida doméstica brasileira. Depois das nove da manhã o surfe era interditado. Quando tinha onda, o mar era dos pegadores de jacaré e a tarde o domínio voltava aos surfistas. Nos fins de semana, por volta do meio-dia as famílias voltavam para casa e daí para frente, tanto as pessoas que chegavam como as que ficavam faziam as subdivisões da praia mais interessantes.
Havia o local para os fisiculturistas e para os lutadores de Jiu-jitsu. Claro que havia um local para os yuppies. Outro segmento era uma extensão da cena gay. Havia um point para os surfistas, uma área para os favelados, uma para a as “patricinhas” e os “mauricinhos” endinheirados, outra para as profissionais do sexo – não coincidentemente a mesma para os turistas – e uma área reservada para os jogadores de futebol e suas comitivas de fãs e puxa-sacos.
O local da praia onde tínhamos visto o Gabeira, inicialmente conhecido como o Sol de Ipanema, era o Posto Nove, ou simplesmente o Nove – o nome derivado da estação de salva-vidas número nove que ficava em frente ao Hotel Sol de Ipanema.
Fazia pouco tempo que traineiras e guindastes tinham cortado a onda da galera das Dunas do Barato demolindo a estrutura do Pier de Ipanema. Depois que a foto do Gabeira de tanga percorreu o Brasil inteiro, o Nove herdou o status de Woodstock carioca. Por décadas a área seria o reduto dos seguidores das ideologias e dos estilos de vida dos anos 1960 e 1970. Aquela era a praia dos artistas, dos músicos, dos atores e dos intelectuais – tanto os já estabelecidos quanto os que viriam a se firmar e os que nunca iam dar em nada. Alguns diziam que os Beatles haviam profetizando sobre aquele trecho das areias de Ipanema na sua música mais estranha: Revolution Number Nine.
Com a chegada da abertura política, bandeiras dos partidos de esquerda recém-legalizados passaram a balançar sobre as cabeças dos frequentadores em meio à bagunça sob o céu azul. Enquanto a festa-praia tomava corpo, os garotos da barraca do Batista corriam de um lado para o outro levando garrafas de cerveja em isopores e as caipirinhas mais saborosas das praias do Rio.
O cheiro constante de cannabis no ar era abençoado por um acordo tácito entre a polícia e a galera do Nove: uns não davam trabalho para os outros; os frequentadores se restringiam àquela área e em contrapartida os policiais não vinham encher o saco ali. Contudo, durante campanhas eleitorais, o acordo às vezes era quebrado sob a pressão de candidatos conservadores. Só que quando as batidas aconteciam, a galera afugentava os polícias com vaias e na confusão todos enterravam os flagrantes o que fazia com que prisões fossem raras.
Mas não era só a fumaça que caracterizava o local. Sempre havia rostos famosos curtindo sua praia de fim de semana, os gays que iam lá eram mais desinibidos e volta e meia haviam casais se beijando abertamente, um ultraje na época.
Foi lá também que aconteceram as primeiras tentativas de topless urbano no país. Contudo, não demorou muito para que o Nove se visse avançado demais para a caretice do país. Quando as meninas tiravam a parte de cima do biquíni, atraiam a curiosidade indesejada de um pessoal que não pertencia à área. Homens com uma atitude medieval; muitos deles jovens, alguns até aspirantes a surfista, favelados, marombeiros, pais de família branquelos e barrigudos, se aglomeravam empurrando uns aos outros para espiar aqueles peitos corajosos no céu aberto com uma mistura de fascínio e de repúdio. Muitas dessas confusões acabavam com uma chuva de areia em cima das beldades ou com intervenção policial. Uma vez, um sujeito que estava com elas resolveu tomar suas dores. Ele se levantou, baixou o calção e fez com que seu pinto encolhido pela água dissipasse a urubuzada na hora. Talvez essa fosse a política do corpo que nunca cheguei a entender.
*
Conforme os novos frequentadores foram tomando conta do pedaço, meus amigos passaram a se encontrar em outro ponto da praia, mas eu fiquei. Embora rejeitassem a “erva maldita”, o Davi e o Hélcio acabaram entrando na minha onda. Os dois também não tinham muito saco para seus papos caretas e, como eu, estavam cientes de que rolava mais possibilidades de sexo com as malucas do Nove do que com as meninas caretíssimas que tinham se juntado à nossa turma.
Eu conhecia outras pessoas que frequentavam a praia ali: os malucos do Colégio Andrews, gente que tinha conhecido na balada e nos shows e membros da esquadrilha da fumaça da Escola Americana. Não era preciso marcar de se encontrar com ninguém, só era necessário comparecer.
O Nove era um clube. Conhecidos ou não, passávamos o dia conversando sobre mulheres, música, cinema, futebol e política. Quando o sol ficava muito forte ou se o papo ficava chato, havia o oceano em frente nos convidando para dar uma renovada. Tomávamos longos banhos de mar, “pegávamos jacaré” quando as ondas estavam boas ou jogávamos frescobol quando não. As meninas que interessavam também iam lá. A paquera e os olhares fatais não cessavam entre as toalhas estendidas na areia.
Na hora que o sol começava a se pôr, a areia esvasiava e o clima se tornava intimista e sereno. O Nove se tornava mágico, não só por causa da beleza da praia com a luz do sol mais branda, mas também por causa da quantidade de gente bonita, jovem e situada. Havia uma paz derivada de um dia bem aproveitado ao ar livre, os corpos curtidos pelo sol, amaciados pela água salgada e agora envoltos pela brisa do fim de tarde.
Nos melhores dias, a praia terminava com todo mundo aplaudindo o sol de pé enquanto ele desaparecia no horizonte ao lado do morro Dois Irmãos. Depois disso, todos seguiam seus próprios caminhos, normalmente indo para casa para tirar um cochilo antes de sair para alguma festa ou um show sobre os quais todos tinham conversado mais cedo na praia. Neles, aquela tribo de almas livres e bronzeadas se re-congregava.
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por Richard Klein | 13 jun, 2020 | Brasil, Comportamento
Capítulo 09
"O vento beija meus cabelos
As ondas lambem minhas pernas
O sol abraça o meu corpo
Meu coração canta feliz..."
Ricardo Graça Mello - De repente California
Apaixonado pelo zen da bossa nova, Frank Sinatra tornou Ipanema famosa no mundo inteiro ao gravar Girl from Ipanema nos anos sessenta. Quando os anos setenta chegaram, tanto Frank Sinatra quanto a bossa nova e a visão romântica e inteligente que representava do Brasil não existiam mais. Agora, sob uma ditadura pesada tudo tinha mudado. Porém, por várias razões, o bairro acabaria sendo central não só a assimilação da nova realidade como também no resgate da naufragada democracia.
Não havia dúvidas que a Zona Sul do Rio era a encarnação do “milagre econômico” proporcionado pelo golpe militar. A vida da classe média, tanto no Bairro quanto no Brasil inteiro, ia de vento em popa. A economia estava crescendo a uma taxa anual na casa dos dois dígitos e com o tricampeonato do México ainda fresco na memória, havia um clima de euforia. Pelo país afora as vendas de carros, televisores, eletrodomésticos e passagens aéreas dispararam. Em Ipanema isso também foi o caso para discos, pílulas anticoncepcionais, roupas “transadas” e pranchas de surf.
Contudo, nas cabeças mais claras, havia a consciência de que essa recém-descoberta prosperidade só era possível graças ao empobrecimento de muitos e ao forte aparato militar garantindo a situação. Talvez por ser o endereço de formadores de opinião bem conectados, gente que não interessava à ditadura molestar, Ipanema se tornou uma ilha de pensamento crítico onde artistas e intelectuais boêmios se reuniam a noite em bares e festas.
No que agora era talvez o melhor bairro da ex-capital do país, a resistência começou cedo. Em 1969 um grupo de residentes lançou um jornal semanal satírico chamado O Pasquim. Essa publicação levaria à prisão por variados períodos de tempo muitos de seus colaboradores, mas seu sucesso também os colocaria na elite jornalística do país.
O Pasquim estava à frente do seu tempo: não somente se posicionava contra os militares, mas também ridicularizava a burguesia e seus valores com humor irreverente. Entre artigos e charges geniais havia entrevistas ótimas, muitas regadas a várias garrafas de whisky, com todo o tipo de personalidades: astros do futebol, artistas, políticos, juristas, atores e outras celebridades. Numa época de censura pesada, a publicação mostrava esses personagens por ângulos até então inexplorados, encorajando-os a falar de suas vidas particulares, suas opiniões sobre assuntos controversos como drogas e sexo e a confessar seus pecados. Entre os entrevistados havia também pessoas de quem a imprensa tradicional fugia, como Luiz Inácio “Lula” da Silva – que nos anos 1970 era apenas o líder de um “inconveniente” sindicato de metalúrgicos na periferia de São Paulo.
Sendo uma das raras vozes independentes do país, O Pasquim virou um gênero de primeira necessidade para brasileiros de consciência. Com isso, o semanário vendia muito bem em todo território nacional. Por ser do bairro, ele fez com que Ipanema adquirisse uma imagem arejada de boemia, liberdade e resistência. Embora não refletisse completamente a realidade, essa imagem seria fundamental para a forma como o Brasil lidaria com seu retorno à democracia.
*
Os principais beneficiários do “milagre econômico” eram sem sombra de dúvida as novas gerações. Sem compromissos políticos e bem nascidos, introduziram muitas novidades em Ipanema. Figuras de cabelos compridos e sem classe social definida começaram a aparecer nas suas ruas. Traziam consigo um sentimento vivo que era ao mesmo tempo alienado e contestador. Garotas em camisetas sem sutiã passeavam com rapazes com o cabelo mais longo que o delas atraindo olhares horrorizados e curiosos de uma sociedade que, em sua maioria, ainda era conservadora.
Para aquela rapaziada, a vida era uma aventura. No mundo que estavam inaugurando, não havia a separação por “tribos”; a única coisa que importava era ser ou não ser “careta”. Se você não fosse, era possível surfar pela manhã, assistir a um show de música underground à noite, depois ouvir Led Zeppelin no toca-fitas do carro a caminho de uma discoteca e finalmente terminar a noite na Floresta da Tijuca fumando um baseado ouvindo uma fita do Caetano Veloso. Mundos, gostos e atividades se entrelaçavam na contestação existencial generalizada. Todos queriam ser diferentes de seus pais e do que a sociedade esperava deles. A vida era como uma caixinha de surpresas cheia de novidades, então, por que não experimentar todas? É claro que se você tivesse uma visão de mundo conservadora, o melhor que tinha a fazer era procurar outra turma.
Ao mesmo tempo, com Copacabana se tornando paulatinamente mais acessível e popular, uma nova onda de super-ricos migrou para Ipanema. Eles fariam com que a Avenida Vieira Souto, a sua via beira-mar, o endereço mais caro do país. A rua comercial, dois blocos atrás, Rua Visconde de Pirajá, absorveu o momento e, ao lado de lojas caríssimas, exibia lanchonetes de estilo americano, fliperamas, lojas de surf e butiques com roupas psicodélicas. Enquanto isso, espalhados pelas ruas laterais, bares à moda antiga continuavam sendo o ponto de encontro da geração dos esquerdistas boêmios, que bebiam suas cervejas vendo milionarios passarem sendo dirigidos por choferes nos seus carros de luxo.
Certamente o grupo mais visível do bairro era o dos surfistas. Vestindo shorts e camisetas importadas do Havaí, tomaram conta das esquinas e fizeram de Ipanema uma Califórnia brasileira. Para ficarem louros como seus pares americanos, a moçada tingia os cabelos com parafina para pranchas de surfe ou com água oxigenada. Embora a intelectualidade e o dogmatismo político os afugentassem, acreditavam que estavam resistindo ao sistema ao fazer tudo o que lhes desse na cabeça – essencialmente drogas, sexo, rock e surf. As novas garotas de Ipanema, a segunda geração a ser libertada pela pílula, desfilavam seus corpos torneados no território dos surfistas – a praia – dando origem mundial à tanga, ou biquíni fio-dental.
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Em 1973 houve uma forte queda nos mercados de ações do mundo inteiro devido ao repentino aumento no preço internacional do petróleo. As bolsas brasileiras também despencaram e pessoas que haviam feito fortuna rapidamente perderam tudo do dia para a noite. No entanto, Rafael teve a sorte, ou a experiência, de vender suas ações dias antes do colapso.
Para a família, essa tacada foi como ganhar na loteria. A crise repentina levou a uma queda substancial no preço dos imóveis cariocas e com bastante dinheiro na mão, meu pai conseguiu comprar um apartamento em Ipanema. Foi assim que nos mudamos para a Rua Nascimento Silva, a apenas algumas portas abaixo da casa de Vinicius de Moraes, o aclamado poeta da bossa nova.
O novo endereço significou um upgrade tanto em nosso status social quanto em nosso estilo de vida. Apesar do apartamento novo não ter uma varanda com vista para o mar como o que alugávamos em Copacabana, era bem maior e, mais importante, era nosso. Os antigos donos, um casal de velhinhos portugueses, tinham juntado duas pequenas unidades de sala e dois quartos em um apartamento grande. Uma cozinha espaçosa separava os dois lados; o de frente, ficou para meus pais e o dos fundos ficou para minha irmã e eu.
Gostamos de cara do novo bairro. Independentemente de ser o olho de um furacão de mudanças comportamentais, o seu dia a dia era muito mais agrádavel. Com exceção dos prédios de luxo imponentes de frente para o mar na Avenida Vieira Souto, em termos de arquitetura e de jeito, Ipanema parecia com uma versão sofisticada de uma cidade costeira. Suas construções eram mais baixas, mais recentes e menos pomposas, proporcionando um ar mais residencial e mais real. A praia era mais vazia e ainda tinha resquícios de vegetação original, as ruas eram calmas e arborizadas e havia sempre uma brisa gostosa passando entre o mar e a Lagoa Rodrigo de Freitas que ficava logo atrás do bairro.
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Sarah e eu passamos da infância à adolescência nesse lugar que era certamente um dos melhores para se viver em todo o planeta. Agora, com cada um em seu próprio quarto, me vi livre do domínio da minha irmã. Com uma privacidade que até há poucos meses tinha sido coisa de sonho, a primeira coisa que fiz foi colocar pôsteres para marcar meu território, um do Jimi Hendrix e um outro com uma capa de disco psicodélico do grupo Yes.
Outra novidade foi que Renée finalmente teve que dar o braço a torcer e autorizou a compra de um televisor, talvez admitindo que a sociedade elegante estranharia aspirantes que não possuíssem um. Por ter horror ao aparelho – talvez porque a programação lhe roubasse o centro das atenções – ela mandou colocar a televisão no quarto vazio do nosso lado do apartamento.
Com uma TV em casa, minha irmã e eu nos integramos ainda mais no universo brasileiro. Agora, como qualquer outra pessoa, podíamos assistir às novelas da Globo, as principais produções culturais brasileiras da época. Embora me cansaria delas depois de um tempo, no início fiquei vidrado. Elas passavam cinco dias por semana: às seis da tarde tinha uma voltada aos jovens, às sete uma comédia para antes do jantar, às oito a grande produção para toda a família e às dez da noite uma produção mais adulta. Todas eram excelentes já que por conta das salas de cinema e teatros estarem perdendo espaço para a televisão enquanto a censura e a repressão política barrava de produções de nível os melhores escritores, atores e técnicos se viram obrigados a trabalhar nelas por falta de outras opções. Essa concentração de talento trouxe uma qualidade espantosa, e essas produções que se tornariam um sucesso nos quatro cantos do globo.
Se meu interesse pelas novelas dissipou rápido, esse não foi o caso com a pessoa que mais gostou da novidade: dona Isabel. Toda noite às sete, enquanto preparava o jantar, ela ligava o aparelho para ficar ouvindo seus dramas e seus momentos da cozinha. Essa trilha sonora só terminava na hora que ía dormir. A maneira que aproveitei o televisor foi outra. Agora podia assistir a jogos de futebol, programas de comédias como A Grande Família, Chico City e Os Trapalhões além de filmes e séries de TV importadas das quais todo mundo falava. Nas tardes de sábado curtia videos das melhores bandas internacionais no Sábado Som. De repente, deixei de ser um completo esquisito na escola.
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Não demorou muito para a gente descobrir o motivo pelo qual os antigos donos tinham vendido o apartamento a um preço tão camarada; a pior gangue do bairro utilizava a entrada do prédio como sua base. Só um deles morava no prédio, noss fundos , mas de qualquer forma estavam sempre ali. Em pouco tempo gente passou a conhecer todos de vista da rua. Era evidente que todos aqueles surfistas cabeludos e sarados eram “dissidentes” de famílias de classe média. Era também evidente que eram vagabundos de verdade; não trabalhavam nem estudavam e não tinham respeito a qualquer tipo de autoridade. O pior para meus pais era que, ainda por cima, nos olhavam com desprezo por sermos tão tipicamente burgueses. Com a rebeldia dos anos 1970 na porta de casa, se sentindo sitiados por um bando de bárbaros, Renée e Rafael passaram a odiar toda e qualquer coisa que se relacionasse àquela subcultura.
Ainda que o minhas habilidades como pegador de jacaré tivessem melhorado muito nas ondas oceânicas do novo bairro, meu status praieiro era microscópio comparado ao daquela rapaziada, os bad boys no topo da cadeia alimentar de Ipanema. Eles controlavam não só as ruas, mas também as ondas na parte da praia conhecida como as “Dunas do Barato”, o Píer de Ipanema. Agora há muito destruído, o Píer foi erguido para a construção de um emissário submarino que levaria o esgoto de Ipanema até o alto-mar. A obra alterou as correntes e o leito marinho o que resultou em ondas incríveis, a ponto de a imprensa especializada internacional classificar aquele point como um dos melhores lugares para se surfar na América Latina.
O Píer acabaria produzindo os primeiros campeões brasileiros de surf. Um dos membros da gangue, o Pepê, foi o mais destacado deles. Ele se tornaria campeão mundial tanto de surf quanto de voo livre, e anos mais tarde sua popularidade o ajudaria a se eleger vereador e a abrir a barraca de praia mais conhecida do Rio. Porém, seu irmão mais novo e menos talentoso, o Pipi, levou um tiro depois que pulou para trás do balcão para agredir o dono do boteco que ficava na nossa esquina. No dia, estava voltando da escola quando vi o surfista de cabelo oxigenado sentado imóvel na calçada. Amparado por um amigo, ele estava esperando por uma ambulância com sua camiseta empapada de sangue grudada na barriga. Na manhã seguinte quando estava saindo de casa, o porteiro me disse que o Pipi tinha morrido no hospital.
*
Sempre que não havia ondas, a galera se reunia do outro lado da rua para andar de skate na rampa de uma garagem. Enquanto faziam suas manobras radicais, Deep Purple, Alice Cooper, Led Zeppelin e Black Sabbath bombavam num toca-fitas. Nenhum deles conseguia entender as letras das músicas, mas eu entendia cada palavra, o que, de alguma forma, me fazia participar do que estava rolando. Ficava assistindo as suas manobras da janela de nossa sala de estar como um garoto doente fica vendo as outras crianças brincarem pela janela da enfermaria. Naquelas tardes, as letras das músicas e o som das guitarras distorcidas flutuavam para dentro do apartamento junto com o cheiro de maconha. Ver baseados do tamanho de um charuto passar de mão em mão entre aqueles surfistas era como testemunhar um assalto a banco de uma posição privilegiada. Esse era o crime subversivo, o fruto proibido, sobre o qual as autoridades nos advertiam na televisão agora que o medo do terrorismo de esquerda tinha ficado para trás.
Todas as vezes que eu passava na frente daquela gangue, parecia ouvir o comentário: “Lá vai aquele magricelo veadinho”. Os momentos mais constrangedores eram quando ia de carro com a minha mãe para o clube e o porteiro tinha que pedir educadamente que os caras saíssem de lado para que pudéssemos deixar a garagem. Sob olhares de desprezo, passávamos com as janelas fechadas, minha mãe nos seus cinquenta e poucos trajando um uniforme de tênis que incluía uma minissaia branca e eu com as minhas pernas finas e meus trajes de futebol desproporcionalmemte grandes. Por causa daqueles caras, para o meu desespero, meus pais acabaram proibindo o surf. Por outro lado, aquela turma me forçou a provar, ainda que apenas para mim mesmo, que não era o bostinha que eles viam. Ainda estou tentando.
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