por Richard Klein | 16 maio, 2020 | Brasil, Israel, Literatura
Nietzsche, o filósofo anti-religioso alemão, escreveu que grandes mudanças entram em nossas vidas como pombos pisando leve ao entrar em uma catedral, ou talvez no caso uma sinagoga. Tudo começou com uma inocente partida de futebol. Todas as terças e quintas a Escola Britânica nos levava a um campo de futebol oficial em Botafogo. Tal como a confusão que estava por acontecer, tudo naquelas partidas era desproporcional: o campo era grande demais para meninos de dez anos e a distância entre as traves era grande demais para os goleiros. Quando driblávamos um adversário e olhávamos adiante, ainda parecia haver quilômetros para se chegar ao gol. Para os passes, quase não dava para ver os companheiros e as corridas eram exaustivas. Para piorar as coisas, o professor levava as nossas atuações a sério e parava tudo para marcar o menor dos erros.
Foi um alívio ouvir o apito final. Não via a hora de pegar o ônibus da escola que nos levaria ao clube Paissandu onde iria jogar uma nova partida muito mais agradável de futebol de salão. Quando entrei o motorista perguntou meu nome, olhou a lista e me mandou descer. Alguém na secretaria tinha se confundido e havia me colocado na lista das crianças que iam voltar para casa em vez das que iam ao clube. Em pânico, sem saber o que fazer e ansioso pela confusão que o erro ia causar, contei o problema ao professor mas ele disse que não podia fazer nada. Sem querer aceitar um não como resposta, pedi uma carona a um amigo que estava indo para o clube após sua aula de judô na escola. Ele disse que sim e o professor concordou, mas não deve ter contado para mais ninguém.
Voltamos para a escola onde todos, fora nós dois, pegaram seus ônibus para casa. Fiquei uma entediante hora e meia no pátio vazio assistindo o instrutor jogando o Martin para lá e para cá ao redor do tatame.
Depois da aula, quando sua mãe chegou e ouviu sobre a carona, deu uma bronca no filho dizendo que ele sabia que não ia ao clube depois do judô. Com pressa de voltar para um compromisso em casa não ia dar para me levar até o Leblon. Contudo, entendendo a situação que o filho tinha me colocado e sabendo que não tinha como me deixar sozinho na escola, ela se viu obrigada a me dar uma carona até Copacabana, que ficava mais à mão. A caminho de casa, fiquei pensando no tamanho do problema.
Quando não apareci no clube com o ônibus escolar, dona Renée telefonou a escola para perguntar o que havia acontecido. Alguém atendeu e deu a resposta inacreditável de que não ninguém sabia. Essa era uma época em que a guerrilha urbana sequestrava estrangeiros para trocá-los por camaradas na prisão. Obviamente não pertenciamos ao grupo de risco – diplomatas e altos executivos – mas a paranoia fez com que Renée saisse ligando para todo mundo.
Ao me ver chegar em casa, a empregada já enlouquecida pelos telefonemas incessantes da patroa, entrou em parafuso. Alguém teve a ideia de me colocar num táxi para ir ao clube. Ela e o porteiro, Zé, desceram na rua e chamaram o primeiro que apareceu. Da minha parte, aquilo era uma aventura eletrizante; ali estava eu, com dez anos de idade, andando de carro sozinho com um motorista desconhecido e me abaixando sempre que passávamos por policiais porque, na minha cabeça, aquilo era ilegal.
Quando minha mãe descobriu o que havia ocorrido, ficou furiosa. As coisas pioraram quando ficou sabendo que o novo diretor, um ex-oficial disciplinador da Marinha Real, havia me culpado pelo incidente. Começaram a aparecer avisos nos murais dizendo que todos podiam fazer isso ou aquilo menos eu porque que era um irresponsável. Meus pais decidiram que a marcação era inaceitável.
Foi assim que deixei o casulo protetor da Escola Britânica para entrar no universo escolar brasileiro. Na verdade, o início da experiência não foi cem por cento brasileiro. Meus pais resolveram me colocar numa escola judaica, o Eliezer Steinbarg, uma aposta segura, até que soubessem o que fazer comigo. De minha parte, a mudança foi bem-vinda. O porém é havia obstáculos; as salas tinham pelo menos o triplo de alunos, as aulas eram em português, o currículo era mais avançado em ciências e em matemática e havia matérias que teria que começar do zero: o hebraico com seu alfabeto diferente, o iídiche e a história judaica. Quando a poeira baixou me dei conta de que, igual na Escola Britanica, era bem diferente dos meus colegas. Como era de se esperar, diante de minha situação social frágil havia novos inimigos a encarar.
*
Apesar da escolha da escola judaica e da herança cultual, meus pais – assim como todos seus amigos – se viam como ateus. No entanto, quando ficou patente que a estadia no Brasil era permanentemente, decidiram utilizar a religião para dar aos filhos um senso de identidade. Os rituais foram ficando mais presentes. Começamos a acender velas de Shabbat nas noites de sexta-feira e a observar os feriados religiosos mais importantes. Nos tornamos sócios de uma sinagoga, a ARI, a Associação Religiosa Israelita, uma congregação não-ortodoxa de judeus asquenazis – provenientes da Europa do Leste.
Embora fosse divertido encontrar amigos no templo, detestava a formalidade pretensiosa daquela congregação orgulhosamente pertencente à classe média alta. Nas datas importantes o lugar lotava. Igual a todos, íamos para marcar presença. Tinha que colocar minhas melhores roupas e ficava incomodado de ter que andar pelas ruas de Copacabana parecendo um principezinho boióla enquanto todos continuavam levando suas vidas normalmente.
No dia mais solene do calendário religioso, o Yom Kippur – o dia do perdão – a nação inteira jejuava por vinte e quatro horas e a vida girava em torno de súplicas pelo perdão divino. Na ARI, os adultos permaneciam dentro da Sinagoga se submetendo à uma maratona interminável de sessões de orações. Conforme o dia ia passando, lutavam contra suas culpas e contra a fome e a sede crescentes. Enquanto isso, meus amigos e eu ficávamos do lado de fora, de saco cheio sem ter o que fazer.
O ponto alto do feriado – e do calendário Judaico – era seu fechamento apoteótico. Concluídas as vinte quatro horas de jejum, rezas e meditações silenciosas, fechavam a arca que guardava os textos sagrados. Em seguida o rabino chamava um especialista para tocar o Shofar; um chifre de carneiro transformado em instrumento musical. Seu toque ritual soava como um trompete alto. Aquele som era como um chamado de um passado longínquo no deserto, conclamando o povo nômade a despertar para algo que ainda estava mais vivo que nunca.
*
O único milagre alcançado nessa, e em outras, datas importantes era o de nos sentirmos mais judeus. No entanto, acima das tradições religiosas e da memória do Holocausto, naquela época o que mais unia a nação era o Estado de Israel. O mundo havia ensinado à geração de meu pai que, se você fosse um judeu vivendo numa terra estrangeira o povo local podia atirar você e sua família numa câmara de gás por ódio e por preconceito. Fariam isso sem se importar no que você acreditasse ou como você fosse enquanto indivíduo. Tudo isso dentro da lei e com a benção do Estado. Para aquela geração, uma pátria judaica era a única forma de garantir a sobrevivência dos seus descendentes. O fato de que isso tivesse acontecendo na terra prometida ao seu povo na Bíblia era nada menos do que intervenção divina.
Com os triunfos militares, veio a transformação de uma nação de vítimas indefesas em uma potência militar. Uma febre eufórica varreu o mundo judaico e nossa casa não foi exceção. Rafael só lia livros escritos pelos líderes sionistas e fazia doações generosas à causa. Em nossos círculos, a mera menção dos palestinos era considerada traição. Mesmo assim, uma parte de mim não comprava aquele entusiasmo. Por toda a história da “terra prometida”, pouquíssimas partes envolvidas em seus inúmeros e infindáveis conflitos entenderam que estabilidade e segurança exigem compromissos. Uma agenda nacionalista de ateus usando a Bíblia como justificativa para tomar posse exclusiva de uma terra alheia considerada santa pelas três maiores religiões do mundo, lar de uma população que vivia lá a séculos, pronta para lutar para reaver o que era dela, acabaria certamente em tragédia.
Pude ter uma ideia clara sobre a vida em Israel por intermédio de um de meus melhores amigos, Uri. O pai dele, Ossi, cunhado do Paulo, trabalhava com meu pai. Quando jovem, serviu o exército de Israel na guerra da independência e veio para o Brasil logo depois. Nascido e criado na França, com um charme a lá Humphrey Bogart fazia sucesso com as brasileiras. Porém, como mandava a tradição, acabou se casando com uma belíssima ex-atriz israelense, mãe do Uri e do seu irmão mais novo, Dicki. O casamento acabou não dando certo e ela voltou para sua terra com os filhos
Os irmãos não queriam ir. Também não queria fossem, éramos como família. Pelo menos a amizade sobreviveu já que os dois passariam a vir todos os anos para o Rio a fim de passar as férias com o pai. os dois me fizeram ver como era difícil a vida na “Terra Prometida”. Israel era um país sitiado, sempre em pé de guerra, com alistamento obrigatório de três anos para todos os meninos e todas as meninas e com constantes ações e ameaças terroristas. Os irmãos me fizeram reconhecer a sorte de estar crescendo no Rio. No entanto, o que mais chamava a atenção sobre a maneira deles encararem o conflito, era que enxergavam os palestinos como seres humanos, mesmo durante e depois de servirem o exército. Por outro lado, Rafael e seus amigos – que nunca teriam que enfrentar um inimigo armado em um campo de batalha – os enxergavam como sub-humanos e tinham opiniões muito mais agressivas. Eu via em Uri e em seu irmão uma forma mais saudável de ser judeu, livre da claustrofobia da comunidade judaica do Rio de Janeiro. Aquela perspectiva me ajudou a impedir que o antissemitismo, real ou imaginário, moldasse meu caráter.
*
Como é o caso com qualquer garoto “brimo”, quando fiz treze anos chegou a hora do meu Bar Mitzvá. Nessa cerimônia de iniciação seria convidado a ler das escrituras sagradas na frente da comunidade. O primeiro passo foi conseguir um professor. Nossa preferência era o cantor principal da sinagoga, o chasan Aaronson, um homem imponente com uma voz poderosa. Ao entoar as preces com sua voz ensurdecedora, balançava seu corpo freneticamente enquanto contorcia seu rosto. Inacreditavelmente, o cuspe que jorrava da sua boca acabava parando até em seus óculos fundo de garrafa. O problema era que suas aulas eram caras demais. Daí partimos para a segunda opção: um cantor baixinho e gorducho, também por volta dos 60 anos, que também usava óculos fundo de garrafa mas que cantava mais introspectivamente e usava uma indumentária menos dramática. Seu status era secundário, principalmente depois de caír em desgraça pelo de seu hábito de cochilar em frente à congregação em ocasiões importantes.
No começo fiquei fascinado pelas aulas. A parte da Torá que ia recitar versava sobre o ano sabático, algo que a partir dali consideraria um conceito utópico que, caso adotado, colocaria o mundo de volta nos trilhos. A lei ditava que a cada sétimo ano, todos os israelitas – bem como sua terra e seus servos – deveriam descansar por um ano inteiro. Ao fim de 49 anos, isto é, depois de sete sabáticos, quem quer que houvesse comprado terra nesse período, deveria devolver a propriedade aos donos originais para que, no final, ninguém se tornasse mais rico ou pobre que os demais.
O professor dava aulas em casa em Laranjeiras, um bairro para mim afastado. As lições eram num quarto abafado cheirando a mofo. Nelas, aprendia como cantarolar meu trecho em hebraico bíblico. Ficávamos repassando aquilo uma vez atrás da outra, sentados em cadeiras desconfortáveis e nos escorando numa velha mesa de madeira coberta de pilhas de livros religiosos. Depois da terceira ou quarta aula, a experiência passou a ser insuportável. Tinha que lutar para me manter acordado todas as vezes que aquelas páginas se abriam na minha frente.
Um dia, completamente do nada, senti – e depois vi – a mão gorda do meu mentor rastejando pela minha coxa e indo parar no meu “shlong” de treze anos de idade. Ele continuou a ler o livro e a agir como se nada estivesse acontecendo. Apesar de ter sido só uma apertadinha, fiquei completamente chocado e sem vontade nenhuma de voltar para aquela salinha.
Quando contei para meus pais o que havia acontecido e pedi para não ter mais que pegar aulas, acharam que a minha “história” era só mais uma desculpa. Para minha sorte, seguindo o plano de curso da sinagoga, aquelas aulas terminaram logo e passei para a próxima etapa; os ensaios finais no shul – ou sinagoga em iídiche. Com isso, de uma só tacada, me vi livre da chatice tortuosa e da bolinação. Porém, meu respeito pela religião organizada tinha sido abalado.
*
No dia da grande ocasião, a sinagoga estava cheia de rostos conhecidos; amigos do Rafael e da Renée, amigos de escola e do futebol. Até a Bibi tinha comparecido. Estava tão nervoso que fiquei com um tique no olho que durou semanas. Quando minha hora chegou, o jovem rabino de Nova York, ruivo com um bigode e óculos redondos – parecido com o Ned Flanders dos Simpsons – me chamou para ler a Torá. Quando acabei, deu um sermão constrangedor dizendo entre outras coisas supérfluas, que eu gostava de dançar rock e de fazer surfe.
Caso fosse um judeu ortodoxo, aquilo teria sido um rito de passagem. Daquele dia em diante seria responsável por meus atos em termos de punições e de recompensas divinas. Mas não foi nada daquilo. Para os meus pais tinha sido o prosseguimento de uma tradição obsoleta e uma oportunidade para provar seu status social. Para mim, tinha sido uma obrigação e uma desculpa para ganhar presentes caros.
Depois de tudo terminado, havia de fato passado para uma nova etapa de vida: meu cabelo estava crescendo ao mesmo tempo que os hormônios estavam modificando meu corpo e a minha voz. Minha iniciação para tinha acontecido na praia pegando ondas grandes e nas machanés. Passei a ver a sinagoga como um ponto de encontro para coroas que, sob a pretensão de serem religiosos, iam ali para cultivar contatos comerciais e profissionais. Aquele teatro e a pegadinha do professor nunca representariam o caminho para uma verdade superior.
Já que a norma adotada pelos judeus modernos era a de ser ateu, por que deveria perder meu tempo com aquilo? Se queriam usar tradições do Leste Europeu e o medo para me manter preso dentro de uma cerca, o plano não funcionaria no Rio de Janeiro dos anos setenta. Além disso, apelar para o sionismo como forma de me manter na comunidade era ridículo: se nossos pais haviam escolhido emigrar para o distante Brasil em vez de terem tido a coragem de lutar por Israel, que comprometimento podiam exigir de nós?
Um dia durante o jantar tentei conversar com meu pai em ídiche, que estava aprendendo mal e porcamente na escola. Ele ficou horrorizado ao me ver falar a sua língua natal e resolveu me tirar do Eliezer Steinberg. Vai entender…
…
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por Richard Klein | 18 abr, 2020 | Brasil, Comportamento, Literatura
Capítulo 04
"Todos juntos vamos,
Pra frente Brasil,
Brasil! Salve a seleção”
Hino da seleção - 1970
Em 1962, enquanto o mundo despertava para a década mais colorida do século vinte, Renée voltou do hospital com um filho, os Rolling Stones e os Beatles gravaram seus primeiros singles, o mundo quase começou uma Terceira Guerra Mundial, desta vez nuclear, por causa de mísseis soviéticos em Cuba, Adolf Eichman, o engenheiro do Holocausto, foi executado em Israel, João Gilberto e Tom Jobim fizeram a sua estreia americana no Carnegie Hall em Nova York e Marilyn Monroe morreu de overdose em Los Angeles.
No entanto, para a grande maioria dos Brasileiros, o que mais marcou aquele ano foi o segundo campeonato mundial da sua seleção de futebol. Se alcançar a glória no esporte mais popular do planeta eletrizava países “desenvolvidos” como a Itália, a Alemanha e a França, é difícil imaginar a explosão de orgulho nacional e de pura alegria que tomou conta do país. Aquele time mulato, vindo das ruas, se impondo no cenário internacional pela segunda vez foi uma injeção insubstituível de autoestima e de otimismo.
Depois do apito final que selou a vitória brasileira de três a um na final contra a Checoslováquia, no Chile, as comemorações tomaram conta das ruas e só pararam nas primeiras horas da manhã do dia seguinte. Como seria de se esperar, as batucadas de rua foram a alma do Carnaval fora de estação. Sambistas desceram dos morros lembrando ao “asfalto” que suas proezas instrumentais eram irmãs das proezas futebolísticas dos craques que estavam trazendo o título para casa. As comitivas de batuqueiros contavam com mulatas espetaculares se requebrando ao ritmo irresistível dos tambores. Bem antes dos biquínis fio-dental aparecerem nas praias cariocas, seus trajes já deixavam quase tudo à mostra, realçando seus movimentos ousados e deixando a moçada com água na boca. Acompanhando o samba, torcedores de todas as raças, idades e classes sociais extravasavam sua alegria. Inebriados pela vitória e regados pela cerveja, recordavam os gols dos heróis daquela campanha – Garrincha, Didi, Vavá entre muitos outros. Pelé havia se contundido e tinha ficado de fora.
*
Oito anos depois, em 1970, depois de uma decepcionante campanha em 1966 na Inglaterra, onde o país de Renée tinha se sagrado campeão, o Brasil estava a caminho do México para tentar o seu terceiro título mundial. Dessa vez, além de um time repleto de craques, entre eles um Pelé superpreparado e consciente de que esta seria sua última Copa, havia uma novidade: as transmissões televisivas. Graças a elas, a nação inteira poderia ver seus craques jogando ao vivo no estrangeiro.
Aproveitando o casamento de um evento tão popular com a nova tecnologia, o regime militar, instaurado já há seis anos, resolveu investir pesado na seleção. Com problemas de popularidade devido à crescente polarização econômica e ao endurecimento da repressão política, os militares queriam assegurar uma aposta vital de que o país se sagraria campeão.
A ideia era unir a nação em torno do futebol e, por via de maquinações midiáticas, associar as conquistas dos atletas a uma imagem positiva do regime. Foi assim que o país se viu mergulhado numa febre de patriotismo, a chamada “corrente pra frente”.
Nos recantos mais remotos do país, milhares de vilarejos receberam seus primeiros televisores para que o povo pudesse fazer parte dos “noventa milhões em ação”, como dizia a canção oficial da seleção. Durante a Copa, seus moradores se amontoariam em torno desses únicos aparelhos, muitas vezes em praças de terra no meio do mato, para assistir o “escrete canarinho” em ação.
Pelo país inteiro, praticamente todo carro tinha uma fita verde e amarela amarrada à antena e todo estabelecimento ostentava pelo menos uma bandeira ou um cartaz da seleção, fosse de um jogador ou do time completo. Nossa rua, a Siqueira Campos, se juntou à comoção. Quase todo apartamento tinha uma bandeira pendurada da janela. Os moradores mais entusiasmados se deram ao trabalho de colocar milhares de bandeirolas coladas em fios que cruzavam de um lado a outro da rua, começando na praia e indo até seu final no morro da Saudade. O bairro todo fez igual e Copacabana se fantasiou para a Copa.
Ao mesmo tempo, em qualquer oportunidade, as estações de rádio e de televisão estimulavam o fervor futebolístico e o misturavam com mensagens pró-regime. Haviam adesivos colados por todos os lados com slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Deus é brasileiro”.
O que poucas pessoas sabiam é que o técnico do time, João Saldanha, apesar de um apaixonado pelo seu país e pelo talento dos seus jogadores, era um comunista dedicado que organizava reuniões do partido ilegal em sua casa. Porém, depois de Saldanha ter se negado a convocar Dario – o Dadá Maravilha –, um dos favoritos do presidente Médici, e de dar declarações políticas inconvenientes enquanto fazia a inspeção de um dos estádios onde o time ia jogar no México, os generais interviram. Eles ordenaram que Zagallo, um ex-jogador branco e de classe média que havia participado das campanhas vitoriosas de 1958 e 1962, o substituísse.
*
Graças às teorias conservadoras da minha mãe, eramos uma das poucas famílias no bairro sem um televisor. Para mim, com oito anos de idade e imerso até o pescoço na febre assolando todos os meninos brasileiros, aquela aversão à tecnologia era deseperadora. Já tinha perdido a oportunidade de ver o primeiro homem pisar na lua na casa de uns vizinhos porque era tarde demais. Porém me barrar de ver a Copa do Mundo seria cruel demais.
Rafael aliviou minha barra anunciando que iríamos assistir os jogos no apartamento do Paulo. Ainda que fosse um esquerdista convicto, seu amigo pertencia ao século vinte e possuía uma televisão, apesar da propaganda fascista, que na sua opinião, ela vomitava sem parar.
O primeiro jogo da Copa foi entre União Soviética e México. Todos consideravam esses dois times potentados menores do futebol mas, por alguma razão, assistir a cerimônia de abertura era uma obrigação para qualquer um que quisesse merecer o título de torcedor brasileiro.
No dia do jogo, para minha alegria e alívio, fomos lá. Depois da abertura espetacular, presenciamos o Paulo torcer para o time que levava estampada na frente da camisa a inscrição “CCCP” – a URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Recusando-se a pronunciar a palavra “soviético” muito menos “socialista”, o locutor se atinha a chamar o time de “Rússia” e mesmo assim mencionava o nome o menos possível provocando alguns resmungos da parte de nosso amigável anfitrião. Depois que o jogo terminou, voltei para casa empolgado. A aguardada copa tinha começado e como o resto da nação não podia esperar pelas batalhas que estavam por vir.
O Brasil jogou sua primeira partida, contra a Checoslováquia, alguns dias depois. O jogo era à noite e em um dia de semana, muito tarde e um tanto incômodo para assistir na casa do Paulo. O jeito foi ouvir no rádio. Ignorando os protestos de minha irmã, meus pais permitiram que trouxesse meu radinho de pilhas para a mesa de jantar. Quando o jogo começou, liguei o aparelho coloquei o volume alto o suficiente para que pudesse ouvir e baixo o suficiente para que a Sarah aceitasse. Depois de uns dez minutos, para o desespero da nação verde e amarela, o adversário marcou o primeiro gol. As palavras secas do narrador cortaram o peito do Brasil como uma navalha. Lá fora o silêncio era tanto que parecia que o fim do mundo tinha chegado. A Sarah olhou para minha cara entristecida e debochou.
“Ha, ha, ha! Tomaram um gol, bem feito!”
Aquela provocação foi um erro. Xinguei ela de vaca e joguei minha coxa de frango na cara dela. Na hora meu pai me mandou para o quarto. Fui com o rádio feliz da vida, pelo menos lá, poderia ouvir o resto do jogo sem a interferência de uma menina. Logo depois, para alívio geral, o Brasil marcou seu primeiro gol, virou a partida e terminou ganhando por um convincente quatro a um.
*
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por Richard Klein | 28 mar, 2020 | Brasil, Comportamento, Literatura, Livro, Sem Categoria
Capítulo 03
Todo menino é um Rei.”
Roberto Ribeiro
Sexta-feira, 23 de novembro de 1968 foi um dia único. A poucos quarteirões do nosso apartamento, a Rainha Elisabeth II estava dormindo hospedada no Hotel Copacabana Palace.
Se estivesse acordada de madrugada, teria se maravilhado com o espetáculo diário do sol clareando o horizonte. A beleza do mar refletindo o céu aberto e evaporando sua agua no ar fresco desencadeava o cantar dos pássaros nas milhares de árvores das ruas entre os prédios do bairro. Essa sinfonia soava no bairro inteiro, quer na sacada do hotel, quer no nosso quarto no décimo segundo andar. Ao fundo, dava para ouvir ondas quebrando ritmicamente na praia, sua espuma salpicado a areia, indo e vindo na vastidão.
Meu pai saiu para sua caminhada diária enquanto a Rainha, sua comitiva, Renée,
Sarah e eu continuávamos no sétimo sono protegidos por ar condicionados barulhentos.
Nosso despertador tocou às seis e quinze da manhã em ponto. Por mais que a preguiça tentasse me convencer de que nada tinha acontecido, não dava para ignorar o barulho metálico alto e irritante. No estupor, vi o vulto da Sarah se levantar e aliviar a situação desligando o aparelho. Já com onze anos, estava com sua sua cabeleira negra, comprida e despenteada envolvendo seu pijama favorito até o ombro.
Me ignorando, não só ligou a luz como também fez um barulhão abrindo o armário para tirar suas roupas. Depois, saiu para tomar banho. Quando abriu a porta, o ar quente invadiu o quarto. Lutando contra a claridade e o calor de baixo da coberta, num esforço sobre humano, me estiquei para ligar o rádio de pilha deitado no chão.
Assim que deu para ouvir seu ruído, girei o sintonizador até achar a Rádio Globo. Quando consegui, entrei em sintonia com o Rio de Janeiro. Essa era rádio preferida das domésticas, dos porteiros e de outras pessoas comuns. Para mim era o Brasil em estado puro, eu adorava mas ninguém em casa conseguia entender como nem porque.
O apresentador bem-humorado com uma voz de cantor de ópera, Haroldo de Andrade, conduzia o show matinal de maior audiência da cidade. Nele, além de fazer orações, transmitia notícias, divertia os ouvintes com curiosidades e fazia entrevistas com astros do futebol, do samba e das novelas. Era um programa interativo em que gente da cidade inteira ligava para deixar opiniões sobre os assuntos do dia. Durante os intervalos, tocava os últimos sucessos do samba e hits da Jovem Guarda: Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Wanderléa entre outros. Roberto Carlos, o rei, devia ser muito caro para tocar naquele horário. Também havia a participação do astrólogo da programa, Alziro Zarur, que lia suas previsões com uma música mística, meio oriental ao fundo.
“Aquela porcaria” – que era como minha irmã se referia a meu programa de rádio favorito – estava no ar quando voltou do banheiro enrolada na toalha. Sem falar uma palavra, irritada com minha preguiça, mudou de estação, desligou o ar condicionado já fraco, abriu as venezianas de madeira e me mandou sair do quarto para que pudesse se vestir.
Ficou difícil dizer o que era mais irritante: não ser o mais velho, ser acordado daquela maneira ou simplesmente ter que levantar tão cedo. De qualquer forma, se me acordar era o que queria, funcionou. A luz forte e a música americana chata mataram o que restava da minha morbidez.
Antes de qualquer coisa, saí para a varanda. Assim os pés tocaram a cerâmica ainda fria, o sol bateu no meu rosto que, junto com a brisa vinda do Oceano Atlântico ali em frente, me desejou um bom dia. Aquele era o meu lugar favorito da casa; foi lá onde tinha aprendido a falar, a andar e a brincar. Adorava ficar ali contemplando a vista espetacular, sonhando acordado na rede de balanço em meio às plantas. Passava horas ali me debruçando no parapeito para ficar espiando as pessoas e os carros passando na rua lá embaixo.
Como um cão fiel, minha bola de futebol tinha passado a noite do lado de fora me esperando. Minha “dente de leite” não era uma bola profissional de couro, mas pelo menos não era daquelas infantis que mais pareciam um balão. Dava para jogar futebol de verdade com ela. Seu plástico esticado podia se tornar vil: se chutada com força contra a parede soava como um sino e caso a bolada acertasse na pele, vinha acompanhada de uma ardida enjoada. Por causa de acidentes com vasos e com outros objetos mais caros fiquei proibido de dar bicudas, fossem elas dentro de casa ou na varanda. Havia o perigo de quebrar uma janela, ou pior; segundo meu pai, se qualquer brinquedo caísse lá embaixo e acertasse a cabeça de alguém, poderia quebrar seu pescoço, rachar sua cabeça e talvez até matar.
“Já imaginou uma bola pesada?!”
“Mas como é que vão saber que ela veio daqui?”
“A polícia sabe de tudo!” respondeu Rafael se segurando para não rir.
Apesar das explicações, minha cabeça de jerico vivia tentada a jogar a bola lá embaixo para ver o que aconteceria. Estouraria? Até que altura quicaria de volta? Qual o estrago que causaria? Mas nunca me atrevi. Mais tarde acabei jogando uma daquelas bolas de borracha transparentes japonesas, mas o resultado foi decepcionante: não a vi quicando de volta nem ouvi barulho nenhum, simplesmente desapareceu.
*
Já frequentava a escola, a British School of Rio de Janeiro. Naquele dia a família inteira estava indo para o evento importante. Minha irmã, já vestida, veio até a varanda para ver o que estava fazendo. “Richard! Você ainda está aí!? Você vai atrasar todo mundo!”
Depois da mini bronca, fui me preparar. O bom de se estar no banheiro é que dava para ouvir o rádio da Maria, nossa empregada, na área de serviço. Ela também gostava da Rádio Globo mas de manhã cedo, para garantir que tudo fosse feito dentro do horário, ouvia a Rádio Relógio, uma estação que dizia as horas a cada dois minutos entre anúncios monótonos e informações bizarras.
“Você sabia que o rinoceronte africano tem dois chifres; o maior fica na frente e o menor atrás? Você sabia?… Biiip, biiip, biiiiip… são seis horas, quarenta e dois minutos e zero segundos… Biiip.”
Tanto eu quanto a Sarah adorávamos aquela mulata faladeira que vivia rindo de nossos hábitos gringos. Forte mas não gorda, lábios carnudos, um dente de ouro, olhos intensos e puxados como os orientais, ela enchia nossa casa de alegria brasileira, principalmente quando estávamos a sós. Anos mais tarde o porteiro, Zé, me contaria que Maria era fogosa e que a maioria dos empregados de nosso prédio já havia tentado algo com ela, com níveis variados de sucesso.
Depois do banho, de escovar os dentes, pentear os cabelos, vestir o uniforme com perfeição e colocar sapatos engraxados desconfortáveis estava pronto para me unir à família. Odiava com paixão aquelas frescuras, mas não tinha jeito.
Quando cheguei, estavam todos me esperando sentados embaixo do toldo na varanda. Em dias de sol, o café era servido ali numa mesa de plástico dobrável que minha mãe mandava cobrir para disfarçar sua simplicidade. Maria estava de uniforme fazendo cara séria em frente ao homem da casa e tomando cuidado para não derramar nada ao servir nosso café da manhã anglo-tropical; ovos cozidos, leite quente, mingau, geleia, bananas, mamão, suco de laranja espremido na hora, pão preto, mel e manteiga.
*
Café tomado, uniforme conferido e impecável, sapatos brilhando, com dona Renée, seu Rafael e minha irmã nos seus trajes mais finos, a família estava pronta para sair. Descemos juntos no elevador. Na portaria, minha mãe deu as chaves do carro para o garagista e logo que ele saiu com o Aerowillys na rua, eles entraram e partiram. Não fui com eles, tinha que ir no ônibus escolar, afinal era o único que estudava lá. Fiquei esperando com o Zé falando de futebol.
Para apanhar os alunos, o ônibus vermelho ziguezagueava entre as vias principais do bairro; a Avenida Atlantica, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Rua Barata Ribeiro onde, na sombra das árvores antigas, bondes soltavam faíscas brilhosas ao tocarem o emaranhado de fios elétricos sustentados pelos postes enferrujados.
Eram oito da manhã e todos meus colegas do bairro tinham enchido o ônibus. Antes de pegar o túnel, ficamos presos num engarrafamento junto com outros ônibus lotados, bondes, lotações, taxis e carros particulares. Motoristas impacientes buzinavam e gritavam sem qualquer motivo enquanto crianças descalças das favelas passavam no meio do congestionamento conduzindo seus carrinhos de rolimã, tão baixos que quase tocavam o asfalto.
Na nossa condição de gringuinhos grã-finos, olhávamos para aqueles meninos maltrapilhos pela janela com uma mistura de inveja e de medo. Muitos eram da nossa idade e sabíamos que apanharíamos fácil se tivessem a oportunidade de nos enfrentar. Eles eram contratados por feirantes para entregar seus produtos nas casas ou nos escritórios dos clientes. Esses mercados improvisados mudavam de bairro todo dia, mas onde quer que parassem, o odor acre de frutas, de carne e de peixes expostos ao sol era o mesmo. Seu cheiro e seu barulho inconfundíveis anunciavam sua presença a vários quarteirões de distância. De dentro das bancas de frutas, homens em camisetas rasgadas cantavam rimas para atrair as madames
“Ooooolha aí! Mulher bonita paga metade se levar meio quilo! – Olha a banana novinhaaaaa, dez cruzeiros a dúziaaaaa!”
Nos cruzamentos, policiais elegantemente uniformizados controlavam o trânsito por meio de uma coreografia de apitos, olhares e movimentos de mãos que lembravam um ritual de acasalamento de uma ave rara que os motoristas pareciam entender.
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