por Gil Mildar | 12 maio, 2025 | Comportamento, Crônica, Israel, Judaísmo, Opinião, Política
Eu, que de paciência pouco me sirvo e da esperança já fiz penhor em tempos mais ingênuos, pergunto-me, e não é uma pergunta retórica dessas que se fazem apenas para enfeitar o papel, mas uma daquelas que, quando surgem, vêm com o gosto amargo do fel e o peso de uma verdade que se arrasta atrás de si como corrente mal quebrada, pergunto-me, repito, em que momento aceitamos — aceitamos, veja bem, e não finjamos que fomos apenas arrastados pela maré — que a miséria moral deixasse de ser vergonha e passasse a ser projeto de governo, que a barbárie se sentasse à mesa e ainda fosse servida primeiro, enquanto os que deveriam levantar-se em protesto preferiram ajustar a cadeira, fingir que não era com eles, olhar para o lado como quem contempla a paisagem de um abismo sem perceber que já está com um pé lá dentro.
E digo mais, porque já que começamos a caminhar sobre este fio de navalha, vamos até o fim: o nome há de ser dito, não porque mereça, mas porque escondê-lo seria fazer-lhe o favor de preservar a decência que nunca teve, Itamar Ben-Gvir, esse é o nome que já deveria causar engulho antes mesmo de ser pronunciado, mas que, no entanto, circula com a desenvoltura de um velho conhecido nos salões onde se distribuem decretos e se legisla a desgraça como quem organiza o cardápio de um banquete fúnebre.
E não me venham, peço encarecidamente, com a história de que tudo é mais complexo, de que há nuances a considerar, porque a complexidade é o álibi dos covardes, e se há algo que este sujeito jamais foi, é complexo, porque o seu caminho é uma linha reta e suja, traçada desde a juventude quando, sem o menor pudor e com a arrogância própria dos que não têm sequer a grandeza da vergonha, arrancou o emblema do carro de Yitzhak Rabin e o ergueu como troféu diante das câmeras, numa exibição pública de um ódio que, poucos dias depois, se materializaria em tiros disparados por mãos que também penduravam na parede de casa o retrato do carniceiro de Hebron, Baruch Goldstein, retrato esse que, não por coincidência, decorava a sala do próprio Ben-Gvir, uma sala que jamais conheceu o incômodo de um pensamento decente.
E eu, que de espectador já me cansei, e que de silêncio não faço profissão, pergunto-lhe diretamente, sim, a você que me lê com esse leve desconforto que tenta disfarçar sob a desculpa de uma análise equilibrada, em que ponto exatamente você decidiu que era possível ser tolerante com o intolerável, e mais ainda, que era possível manter-se neutro enquanto o chão à sua volta arde em chamas acesas não por acaso, mas por mãos sabidas e intencionais, como aquelas que, entre um ajuste ridículo de paletó e uma cuspida de intolerância bem ensaiada, entregam ao mundo a mais repulsiva das certezas: a de que ainda há quem prefira o fogo ao esforço de construir pontes.
E porque não basta apenas apontar o dedo sem colocar o espelho, pergunto-lhe sem qualquer vontade de ser ameno, você, justamente você, que talvez tenha hesitado em condenar, que se calou em reuniões de família, que preferiu mudar de assunto nas rodas de amigos, que justificou a ascensão do monstro com aquela frase miserável de que “as coisas não são bem assim”, o que pensa agora, diante desta fogueira que já lambe as paredes da sua própria casa? Acha mesmo que se salvará do calor apenas porque, até agora, limitou-se a aquecer as mãos à distância?
Não há mais espaço, e nunca houve de fato, para essa farsa piedosa da neutralidade, porque a neutralidade, quando o intolerante já ocupa o centro do palco, é apenas a forma mais covarde de tomar partido, é sentar-se entre os bárbaros e acreditar que, por não levantar a taça no brinde à destruição, já se está absolvido da culpa.
Pois saiba, e saiba bem, que a história que vier, porque sempre vem, escreverá com a frieza dos que já perderam a paciência até para a compaixão, que entre os incendiários e os que simplesmente observaram, não há distinção moral, apenas diferença no método.
E no fim, quando as cinzas assentarem, e que ninguém duvide de que elas virão, não restará sequer a sombra para protegê-lo da pergunta que ressoará em sua cabeça como um martelo final: onde você estava enquanto o intolerante incendiava tudo? E pior ainda, por que diabos você nada fez?
E esta, lamento informar-lhe, será a pergunta sem resposta. E que esse silêncio, ao menos, lhe sirva de penitência.
por Mauro Nadvorny | 7 mar, 2020 | Brasil, Comportamento
O fenômeno Olavo (Olavo de Carvalho e seus seguidores) me intriga já a alguns anos. Recentemente, um artigo da escritora Elaine Brum publicado no El País, tendo como tema a ascensão de Bolsonaro como representante do homem mediano brasileiro ao poder inspirou-me a um paralelo que deixei delineado em um prefácio que escrevi para o livro “Mistérios da Lua”, de Antonio Farjani.
A história começa cedo, na minha adolescência e termina em um passado relativamente recente, quando eu tive acesso a um conjunto de informações científicas e históricas que preencheram gigantescas lacunas nos meus campos de conhecimento em uma ciência que muito prezo, a saber, a Física. Em um curtíssimo espaço de tempo, tive a percepção do quanto fui (e somos) maltratados na nossa formação escolar geral, que por muitos anos nos despeja quantidades irracionais de conhecimento tido como científico (e de fato, na maioria das vezes o é) mas desacompanhadas de qualquer ferramental que nos permita avaliar o peso e o valor desses conhecimentos. Uma determinada fórmula, uma ferramenta de cálculo, uma tabela periódica de elementos químicos, a imagem teórica de um átomo ou de um cromossomo, tudo isso, nos é apresentado como um simples fato, quando na realidade resultam muitas vezes de décadas de pesquisa ou da vida inteira de um(a) certo(a) cientista. O conhecimento é apresentado desprovido de humanidade, de conexão histórica, de contexto e quase sempre de significado e aplicabilidade prática.
A consequência de todo esse destrato com a ciência e com o conhecimento é que ele passa a ser tratado como banalidade, como peça de consumo, descartável, reciclável, inútil muitas vezes. Quantas vezes, como médico, observei esta confusão entre conhecimentos sólidos e baseados em fortíssimas evidências, e conhecimentos derivados até do folclore mais picaresco, trazidos às vezes à mesa em estado de equivalência.
Por outro lado, para aqueles que não frequentam a academia mas de alguma forma tem alguma sede de conhecimento, o confronto com o volume de informação que se produz a cada segundo no mundo pode produzir experiências frustrantes, trazendo ainda a sensação de distância, de exclusão dessas fontes de geração de conhecimento e uma total falta de controle e compreensão. Junte-se a isso alguns exageros e distorções do cientificismo, que chegam mesmo a desprezar qualquer conhecimento que não tenha sido obtido pelos métodos cartesianos, levando muitas pessoas a sentirem-se massacradas pela não militância acadêmica, esta, acessível a uma fração muito pequena da população.
Esses “excluídos” do mundo científico existem em todas os extratos sociais, inclusive entre aqueles com diploma superior sem pós-graduação sensu strictu (formação de pesquisador/docente). O que não faltam são médicos, engenheiros, advogados, historiadores, farmacêuticos, clérigos, etc., sem qualquer noção de filosofia da ciência e metodologia científica, e que habitam essas zonas de desconforto nos campos da intelectualidade.
Para esses excluídos, surge um “igual”, um homem sem formação acadêmica, mas inteligente, articulado, e certamente com muita cultura, mas com grande grau de oportunismo e capacidade de formar esse forte vínculo com seus “semelhantes”, entitulando-se autodidata, apresentando-se como bem sucedido. Com ideias bizarras e que se contrapõem a quase tudo e a quase todos, transforma-se em verdadeiro herói e mito, dando vazão a todas as fantasias que os aterrorizados exilados da ciência cultivam para suprir suas carências e necessidade de afirmação. Para estas pessoas, um homem com a capacidade de explorar habilmente as contradições de um mundo complexo e eventuais fragilidades da ciência é um verdadeiro sacerdote, que sabe explorar muito bem as questões de fé.
Assim, Olavo de Carvalho é sintoma de um mundo (ou país) onde o conhecimento mal transmitido e o ferramental insuficiente para compreendê-lo gera legiões de apavorados em busca de um porto seguro “intelectual”, que funcione ainda, nesta fúria contestatória, como uma espécie de “vingança” contra toda essa complexidade, aliando-se a isso a incapacidade que temos hoje de construir uma necessária crítica ao cartesianismo e ao racionalismo quase desumano que em certos territórios faz hoje da ciência algo próximo de religião e da academia, quase um “Vaticano”.
O tamanho do sintoma e suas nefastas consequências políticas só nos dá a dimensão da doença que habita nossa sociedade. Ela é sistêmica, adquiriu caráter contagioso e pode ainda tornar-se genética, transmitindo-se à próxima geração. Paradoxalmente, apenas a abordagem histórica e científica pode nos permitir observar que tudo isso é apenas repetição. Já ocorreu e tem um ciclo a percorrer. Paciência, é o que precisaremos para atravessar esta onda.