Samba Perdido – Capítulo 20 – Parte 02

Independentemente da consciência existencial-política, não passava de um garoto pré-universitário da Zona Sul carioca. 1980 seria um ano não só de muita curtição, mas também de contradições. A mais estranha dessas incoerências era que fazer parte do clube de músicos doidões teve um efeito positivo em meus estudos. Não tinha problemas para dormir, não tinha sequelas de stress e, apesar da loucura quase diária, meu estado de espírito era bem mais equilibrado do que o dos colegas caretas. Além disso, quando resolvia estudar, conseguia absorver as matérias.

A nível de galera, com alguns de nós mandado bem no violão e sabendo lidar com a malandragem das ruas melhor do que estudantes comuns, deixamos de ser vistos como os esquisitos da escola para nos tornarmos a galera descolada. As nossas festas eram as melhores e mesmo as garotas mais bonitas começaram a nos notar.

No meio do ano escolar mais puxado de nossas vidas, surgiu uma nova Meca: a região de Visconde de Mauá, uma coleção de pequenos vilarejos rurais aninhados na Serra da Mantiqueira entre o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Quando era criança, a família costumava passar temporadas rurais por lá. Muitas das pousadas tinham sido erguidas por imigrantes do velho continente. Isso e o ar mais temperado faziam com que os arredores lembrassem a Europa Central onde Rafael havia crescido. Ele adorava desfrutar as férias lá com seus filhos de uma maneira parecida com a que passara sua própria infância. Íamos juntos para ver as vacas sendo ordenadas e outros afazeres rurais de manhã bem cedo. Sempre que encontrava uma oportunidade ele parava numa porteira para nos explicar a vida na fazenda, apontando para galinhas, vacas, porcos, perus, ovelhas e outros animais e dizendo como deveriam ser criados. 

No começo dos anos 1980, Visconde de Mauá havia mudado muito. Ainda havia famílias indo passar o verão e fins de semana prolongados nas suas pousadas, mas em geral a região tinha se tornado refúgio para os únicos hippies autênticos que ainda existiam no Brasil e talvez no mundo. Com seus cabelos longos e descuidados, suas roupas não convencionais caindo aos pedaços e estampadas com motivos indianos, desenhos de cogumelos alucinógenos e de folhas de cannabis, eram alienados para valer; totalmente fora da sociedade, loucos demais até mesmo para nós. 

Suas cabanas tinham um ar de tendas celtas, com desenhos psicodélicos, retratos de Jimi Hendrix, Janis Joplin e John Lennon espalhados nas paredes, ao lado de referências a viagens lisérgicas, letras de músicas e o sempre presente símbolo hippie. Sua intensidade evocava talvez os últimos ecos de Woodstock. Para nós, conviver com eles era como fumar a ponta de um baseado acendido por gigantes num passado neolítico.

Mauá ficava cerca de quatro horas do Rio e nos feriados chuvosos e sem praia, não havia dúvida para onde ir. As montanhas, as florestas e os rios nos faziam sentir próximos de nossos heróis do rock inglês, ou pelo menos do visual das capas de seus discos. Em uma de nossas idas, conseguimos levar algumas garotas da escola. Lidar com membros do sexo oposto na mesma frequência intelectual que a gente era uma enorme novidade. O que era ainda mais constrangedor, é que podiam estar interessadas em nós. Quando as levamos para conhecer uma cachoeira e elas ficaram de topless, nós encaramos sua iniciativa de forma madura conseguindo manter nossas bocas fechadas e sem babar.

À noite, de volta ao acampamento montado no Vale do Pavão, acendemos uma fogueira, abrimos garrafas de vinho e compartilhamos a comida enlatada. O bem-estar do banho forte e gelado na cachoeira tinha aberto nosso apetite. Apesar da comida horrível, o vinho, e principalmente o fogo, criaram uma atmosfera especial. Depois da janta, fomos até as barracas, tiramos os violões de suas capas e nos preparamos para tocar. 

“Porra Kristoff, esse baseado está todo babado, toma cuidado!”

“Meu irmão, foi você que apertou ele frouxo demais de novo, coloquei a goma para ver se ele não abria. ”

“Nunca pensei que você fumasse também Leninha, muito bem!” Depois de provavelmente ter dado uma de babaca misógeno, dei uma risada sem graça. “E aí? Está curtindo Mauá?”

“Muito legal aqui, lindo, sem sítios, rústico, adoro coisas assim.”

Uma das outras meninas, a Tetê, falou: “E então, vocês não iam fazer um concerto para a gente? Cadê?”

“Aê! Vamos levar Stairway to Heaven para elas.”

 Era uma do Led Zeppelin, fácil demais, quase apelativa, mas a gente sabia que elas iam curtir. Logo na abertura da música, a flauta transversal do Kristoff ressoou no silêncio da mata. Por ser o único som na redondeza, foi uma viagem. A música evoluiu de um estilo medieval para um rock mais pesado. Não conhecia a letra inteira, mas enrolava num inglês convincente.

“There’s a lady who knows, all that glitters is gold…”

O primeiro número foi um sucesso e dava para ver que tinham adorado. Se fôssemos espertos, teríamos parado ali ou tocado só mais uma, talvez Time do Pink Floyd. Mas não, encorajados pela receptividade, partimos para uma improvisação meio jazzística e dali a coisa desandou. Para a gente, os acordes, as levadas e os solos eram um bate-papo sofisticado e emotivo ao qual a gente já estava acostumado. Para as garotas, aquela era uma linguagem que não entendiam e que as fizeram se sentir excluídas. A ideia original era a de impressioná-las, mas o resultado não poderia ter sido mais diferente: elas ficaram olhando umas paras as outras, se perguntando o que diabos estava acontecendo.

Eu era o tipo de cara que nunca sabia quando uma garota estava dando em cima dele, mas apesar da leseira, podia perceber que havia uma tensão rolando entre a Leninha e eu. Embora fosse cara de pau com meninas que nunca tinha visto na vida, era tímido demais com as que conhecia e isso impediu uma aproximação direta naquele contexto. Contudo, tive a malícia de colocar meu saco de dormir ao lado do dela na barraca, pensando que quando ela entrasse, a seguiria imediatamente e uma coisa acabaria levando a outra. Por conta da nossa viagem musical, só a primeira parte saiu de acordo com o plano. Leninha foi para a barraca dormir antes de acabarmos. A segunda parte nunca aconteceu. Quando, horas depois, me deitei ao seu lado e tentei acordá-la, ela não respondeu e fiquei com medo de como reagiria se insistisse.

Na segunda noite, o frio tinha se tornado insuportável. Esquecemos a bobagem roqueira anglo-saxã e um dos caras foi até a Maromba – o vilarejo hippie que ficava próximo – para ver se havia algum lugar para a gente ficar, mesmo que tivéssemos que alugar. Depois de três ou quatro horas, ele voltou com boas notícias: tinha encontrado um quarto, um quarto apenas, para oito de nós e fomos para lá felizes.

*

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Samba Perdido – Capítulo 18 – Parte 02

Muito antes da chegada dos hippies nos anos 70, Trancoso tinha sido uma missão para a conversão dos índios Pataxó. A modesta, porém charmosíssima, igreja voltada para o continente era testemunha daquele tempo. Junto com a formação geométrica do quadrado à sua frente ela remetia a uma ordem disciplinatória. A floresta cheia de vida que a rodeava, parte integrante do espírito da tribo, continuava intacta. Ela era o Éden de onde os portugueses tinham os expulsado. Garantidos por pólvora e chumbo, os missionários convenceram a tribo a trocar seu paraíso por outro imaginário onde só chegariam depois que morressem, sob condição que rejeitassem quem eram, a posse de suas terras – um conceito que não fazia sentido para eles – e aceitassem um status servil num novo mundo empurrado goela abaixo. As únicas coisas que tinham restado eram seus descendentes ocidentalizados que ainda viviam nas reservas espalhadas pela região e os filhos da miscigenação espalhados nos vilarejos. Por mais deprimente que fosse, a situação lá era melhor do que a dos grandes centros urbanos onde há muito tinham desaparecido.

Talvez refletindo o legado de missão ainda misturado com o espirito originário, talvez pela beleza mítica dos arredores, para o pessoal de fora, Trancoso, naquele verão, parecia um campus onde estavam aprendendo a viver. Essas pessoas ou eram fugidas das cidades grandes morando lá há um tempo, ou eram mochileiros e veranistas bem informados atrás de uma experiência especial. Não havia a onda de Gabeira – se ele tivesse parado lá, provavelmente não teria suportado ser considerado mais um, principalmente se descobrissem que por trás do auê se escondia um papel secundário na luta armada e muita sagacidade mercadológica. Um outro fator positivo do vilarejo era que, com a possível exceção do seu Manoel que tinha me acolhido, ainda não havia gente de cidades vizinhas explorando os visitantes e tirando vantagem em cima dos locais.

O dia a dia não era muito diferente do de Ajuda. As diferenças eram que o banho era com a água dos poços nas casas dos pescadores e que, fora o pessoal da terra, não havia um careta lá. O lugar onde nos reuníamos no fim do dia era igualmente atrás da igreja e de frente para o mar. Só que lá não havia roda de capoeira nem a necessidade de muita conversa. A energia e a harmonia já eram o suficiente. 

O que tornava Trancoso em geral, e aquele ponto em específico, mais especial do que Ajuda era a sua simplicidade mágica. Não havia muros, cercas, bancos ou qualquer outra coisa para turistas. Entre nós e a praia deserta lá embaixo, havia apenas a grama bem cuidada que acabava no penhasco. Depois havia um trecho curto de mato, a areia e o oceano infinito se estendendo em frente. No cair da tarde e à noite, a parede caiada construída séculos atrás refletia a luz do sol e depois a da lua feito uma tela de cinema.

Com certeza, antes de serem convertidos à religião dos brancos das caravelas, os Pataxós deviam se reunir naquele mesmo lugar para cantar e dançar para seus deuses nos seus festivais. Aquele solo ainda guardava algo de sagrado, mesmo com uma igreja construída em cima como uma declaração de quem ia mandar dali em diante. Por causa do ar cristalino, o lugar dominava uma região de dezenas de quilômetros. Dali dava para ver a costa inteira para os dois lados. À noite, o único vestígio de civilização eram as luzes fracas de Porto Seguro, ligeiramente visíveis no canto mais longe do horizonte à esquerda. 

Quando a lua cheia chegou, sabíamos que ela ofereceria um espetáculo único. Como sempre, ficamos no escuro à sua espera atrás da igreja curtindo o céu estrelado e as estrelas cadentes tão comuns na região. Cerca de duas horas depois do sol se pôr, ela apareceu como uma enorme bola prateada subindo no fim do oceano. Éramos em torno de dez pessoas e ninguém se atreveu a estragar o momento dizendo bobagens. Ficamos admirando a sua aparição com a reverência e o silêncio de quem presencia um sinfonia de primeira categoria. Seu reflexo era fortíssimo e foi criando uma faixa brilhante na água. Conforme a lua foi subindo por trás das nuvens flutuando na mesma altura que a gente, elas foram se iluminando, primeiro por de trás e depois por cima, fazendo com que lembrassem pequenos montes de algodão.  Suas bases eram planas; parecia que um artista meticuloso as tivesse cortado. A poucos metros da água, lançavam sombras espessas sobre a claridade forte vinda do prateado lunar.

Enquanto contemplava aquela maravilha, o universo me trouxe a clareza de que a saúde, a água que bebemos, o ar que respiramos, as belezas do mundo, o amor e as amizades, enfim, a vida, eram presentes dados a nós sem que tivéssemos que dar nada em troca. Não estávamos em outro planeta, estávamos atrás de uma pequena igreja em Trancoso, perto de onde a colonização do Brasil começou. Aquele momento não era um sonho. Toda aquela abundância do aqui e do agora podia se perpetuar eternamente se apenas aprendêssemos a dar valor ao que temos em comum. Eu desejei que aquela clareza – certamente taxada de lunática pela maioria esmagadora dos habitantes do planeta – nunca passasse.

*

As últimas três semanas passaram num piscar de olhos. Depos que me familiarizei com a cabana, em pouco tempo tinha descoberto um atalho para a aldeia que evitava o rio e tudo ficou tranquilo. Não houve aventuras amorosas, não que faltassem beldades maravilhosas, mas a concorrência era com caras mais velhos, todos com profissões, mestrados e passados mais interessantes que o meu. Até o violão ficou meio calado; a gente levava uns sons, mas era para nós mesmos. As festas eram mais comedidas, o pessoal era mais reservado, em suma, não seria errado dizer que a turma de Trancoso era mais seleta.  Ficar tocando demais para os outros nos faria parecer os bardos bobos da corte.

A hora de voltar para a realidade da vida urbana foi chegando. O dinheiro tinha praticamente acabado e não dava para a passagem de volta. As opções eram ou ligar para casa de Porto Seguro pedindo uma transferência emergencial ou voltar de carona. Por sorte, perguntando para o pessoal, consegui uma com uns caras que estavam voltando para São Paulo. De uma maneira inacreditável, tinham chegado em Trancoso num fusca por uma trilha pelo meio da floresta que nunca tinha ouvido falar.

No dia da volta, na despedida, todo mundo ficou dizendo que a gente era maluco de pegar aquele caminho. Depois de alguns minutos de conforto naquele Fusca insalubre, assim que entramos no mato, ficou claro que estavam certos e que a trilha não era destinada a carros. Toda hora tínhamos que descer e empurrar a bagaça através da lama ou guiar o Paulão, o motorista, para evitar buracos e raízes, ou tirar troncos caídos na frente.

“Aí não, Paulão, tem um puta buracão do meu lado, meu! Não tá vendo!”

“Caralho belo! É mesmo! Sai todo mundo do carro! Ampara ele deste lado aqui porque a gente está quase capotando.”

Foram horas aos trancos e barrancos até que a trilha evoluiu para algo que lembrasse uma estrada de chão. Gradualmente ela foi se tornando mais larga e gado, jegues e pequenos casebres começaram a aparecer dos dois lados. Finalmente, depois de passar por Ajuda, chegamos até a balsa para Porto Seguro. Lá, entramos numa pequena fila de carros e ficamos esperando para embarcar. 

“Orra meu! Essa merda está civilizada demais. Vamos ali no mato ali fumar um!”

Quando nossa vez chegou, atravessamos em silêncio com um nó na garganta de estar indo embora daquele paraíso. Do outro lado do rio já havia asfalto e a estrada que nos levou em nossa longa jornada para casa.

 Cheguei de volta ao Rio ainda sob o feitiço de Trancoso. Era difícil encarar o fato de que havia uma batalha crucial para passar no vestibular à espera. Havia uma outra que tinha me dado: queria me reconciliar com meus pais. Estava ciente de que a cada baseado, a cada levada de som, a cada nova amizade, mergulhava mais fundo num mundo que nem Rafael nem Renée podiam sequer começar a entender. Me perguntava se era possível reverter a situação.

Essa guerra de reconciliação nunca resolvida se provaria muito mais difícil do que a do vestibular. O jeito britânico era o de varrer tudo para baixo do tapete.  A atitude judaica, mais pragmática, ignorava o lado poético da vida. A procura por uma verdade pessoal não fazia sentido – a solução era esquecer aquelas bobagens, baixar a cabeça e fazer a coisa certa: estudar. A batalha continuou, surda, muda, solitária e dolorida, deixando feridas e sequelas dos dois lados.

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Samba Perdido – Capítulo 18 – Parte 01

Capítulo 18

 

“Terra…

Por mais distante, o errante navegante,

Quem jamais te esqueceria?”

 

 Caetano Veloso

 

O novo destino ficava a uma caminhada de duas horas e meia pelas praias desertas. Sob o sol escaldante, encarei aquilo com as tralhas nas costas. Esse era o único caminho possível, não havia estrada nem trilha, e só dava para ir na maré baixa, já que na alta um trecho ficava perigosamente submerso. Já integrado no ecossistema, sabia a que horas ir e me safei do apuro.

O fim da andada era uma estradinha sem sinalização que subia pelo meio do mato até um plateau. A aldeia, cercada pela floresta tropical, consistia de uma formação retangular de cabanas em torno de um campo de gramado enorme e bem tratado. No final do tapete verde em frente do mar, fechando o que todos chamavam de quadrado, havia uma igreja colonial caiada dominando a aldeia.

Foi amor à primeira vista. A tarde já estava começando a cair e as sombras das casinhas estavam começando a cobrir o gramado. O cheiro gostoso de pasto verde foi um refresco depois daquelas horas cansativas, secas e quentes ao lado da agua salgada. A beleza era impressionante, a pureza do ar conferia ao oceano lá embaixo uma tonalidade turquesa profunda que ficava maravilhosa ao refletir o azul marinho do céu. A sofisticação cênica daquela pequena comunidade parecia incompatível com seu isolamento.

Sem saber onde ia passar nem aquela nem as outras noites do resto do mês que planejava ficar ali, parei no único bar de Trancoso, localizado na também única esquina do quadrado, logo na entrada da aldeia. A construção era simples; um balcão estreito de frente para uma pista de dança ampla – certamente de lambada – onde havia algumas mesas espalhadas. O teto era seguro por troncos de madeira. Havia várias pessoas de fora bebendo cerveja e curtindo o fim de tarde ali. Quando viram um violão puxaram assunto na hora.

“E aí? Sai um som dessa viola?”

“Claro que sai! Mas agora não dá, acabei de chegar a pé de Ajuda, só dá para beber uma cerveja.” Não queria tocar mas também não dava para dar uma de antipático. Antes de ir pegar minha gelada e sentar para relaxar falei. “Se tem alguém aí que quiser tocar, à vontade.”

Um cabeludo mais velho sentado com uma estrangeira hiponga bonita, loura de olhos azuis, se levantou e perguntou: “Se importa?”

“Sem problema nenhum!”

Tirei o violão da capa e ele deu uma conferida enquanto fui pegar minha cerveja. “Um Del Vecchio antigo! Isso é artesanal! Tu é doido de trazer um violão desses para cá!”

“A viola está adorando o Sul da Bahia, não se preocupe com ela.” 

Sem se impressionar com minha resposta, mas fascinado pelo instrumento o cabeludo intenso sentou num banco, posicionou o violão como quem sabia o que estava fazendo, deu uma verificada na afinação e saiu tocando uma das Bachianas do Villa-Lobos deixando todos de boca aberta.

Quando terminou, o cara que tinha me dado as boas vindas falou: “Caralho, mineiro, tu tava escondendo o jogo! Esmirilhou!”

“Tô meio enferrujado, tava precisando tocar. Esse violão é bom demais! Não resisti.”

Depois da primeira, vieram mais duas Bachianas, todas soando especiais naquele lugar. Quando terminou passou o violão de volta. Antes que tivesse que inventar uma desculpa para não ter que passar o vexame de tocar depois dele, ele perguntou:

“Como é teu nome?”

Disfarçando a pressa em colocar a viola de volta na capa respondi. “Rique.”

“Valeu, Rique, gostei do violão. Meu nome é Carlos, mas me chamam de Mineiro.” Ele olhou em volta como quem busca aprovação e continuou.” A gente está na concentração antes de bater uma pelada, os de fora contra os da terra, você pode jogar? Tá faltando um no nosso time.”

Com todos pressionando, não tinha como dizer não. “Vambora! Só que vou avisando logo: sou pereba ”

“Aqui só tem pereba, vamo nessa!”

Aquela resposta era típica de quem jogava bem e não deu outra. Quando o jogo começou senti o quanto as noitadas, a farra e a caminhada tinham me afetado. Estava numa forma vergonhosa e a cerveja antes do jogo não estava ajudando. A grama e as pedras estavam castigando as solas dos pés. Mesmo assim, tentando não dar vexame, fiquei na “banheira” quase o jogo inteiro e consegui marcar um gol. Contudo, mais competitivos por estar defendendo a honra da terra e bem mais em forma, os nativos venceram de goleada. 

Depois do jogo voltamos para o bar para amargar a derrota com mais cervejas. Já estava escuro e menos intimidado pela habilidade do mineiro, mais solto pelo jogo e pelo recarregamento etílico, tirei a viola e comecei a tocar cedendo a pedidos insistentes. Como em Ajuda, não demorou muito para que outros músicos se juntassem e ajudassem a disfarçar minha perebagem musical. Para meu alívio, talvez horrorizado pela minha inabilidade, o mineiro saiu logo com sua estrangeira loira. O dono do bar acendeu a lamparina de querosene e nossa música ficou quebrando o silêncio do resto do vilarejo. 

Conforme a noite foi avançando, as pessoas começaram a ir embora. Quando o bar já estava quase vazio, alguém me interrompeu. “E aí, carioca, vai ficar aonde hoje à noite?”

“Ainda não sei, se bobear acho um canto no gramado e estico o saco de dormir lá.”

“Que é isso?! Vai dormir que nem mendigo?! Aqui não tem disso não! A gente te arruma um lugar!” O cara virou para o dono do bar. “Seu Manoel, tem um quarto na aldeia aqui para o violeiro?”

Seu Manoel torceu a cara. “Tem não, nessa época do ano tá tudo tomado.”

“E na casa do Chileno? não tem um quarto sobrando?”

“Chegou um casal de gaúchos lá ontem à noite.”

“E aquelas irmãs de São Paulo, tomaram a casa do Sebastião toda?”

“Só pegaram um quarto. É, talvez lá tenha.” O seu Manoel virou para o filho sentado do lado. “Raimundo, dê um pulo na casa das meninas e pergunte se pode dormir mais um lá.”

Meio desconfortável com tanta cerimônia perguntei: “Para que tanto auê? Onde eu esticar o saco de dormir tá bom. Pode ser no quadrado ou até debaixo de um coqueiro na praia, não tem problema.”

“Fica tranquilo, carioca, a gente vai te descolar um lugar.”

Me lembrando da experiência com as brasilienses, fiquei vendo o moleque desaparecer no campo escuro e depois reaparecer do outro lado em frente às janelas iluminadas por velas e lâmpadas de querosene. 

O seu Manoel já tinha simpatizado comigo. “Deixe o Raimundinho voltar, se as paulistas disserem que não, tenho uma ideia.” 

Marquinhos, o cara que tinha me dado as boas vindas, falou: “Já sei, a cabana do Pará lá perto da praia!”

“Essa mesmo, e o rapaz vai poder ficar lá de graça. Acho que o Pará já arrumou comprador, faz umas duas semanas que ele sumiu.”

Não demorou muito para o filho do seu Manoel votar: “Elas disse que não quer mais genti na casa.”

“Esquenta não, carioca.” Marquinhos me deu uma olhada maliciosa. “A gente desconfia que elas não são irmãs coisa nenhuma, mas sim um casal de sapatonas, não iam querer um cara estragando a festa, né?!”

Um cara com um sotaque gaúcho que até então estava quieto deu uma risada e falou: “Aê violeiro, vai dizer que tu não ia querer ser o recheio daquele sanduíche?”  

Achando a observação despropositada e constrangido pelo esforço do pessoal, não dei trela para a brincadeira e perguntei: “E essa casa do tal do Pará?”

O brincalhão respondeu: “O lugar é até melhor do que aqui em cima, o problema é que é um barraco de palha no meio do mato, não tem nada por perto. Chegar lá a noite vai ser coisa de Tarzã.”

O seu Manoel falou: “Não exagere, Gaúcho, o rapaz chega lá fácil.” Aí ele se voltou para mim. “Nem precisa de chave, é só chegar lá, abrir a tranca de madeira e empurrar a porta. Não se preocupe com bicho, é só deixar a casa fechada que eles num entra.” 

“Que tipo de bicho!?”

O dono do bar, um sujeito moreno de meia idade com uma barriga respeitável, deu uma risada. “Aqui só dá galinha e porco, e volta e meia um jegue, não se aperreie!”

Mesmo que soasse roubada, não dava para recusar. Meio envergonhado, aceitei a generosidade e eles passaram a me explicar como chegar lá.

“Você desce a estrada da praia por onde você subiu, essa aqui do lado. Depois de uns trinta metros você vai ver uma trilha à direita. É só seguir toda vida que você vai dar na porta do barraco. Não tem erro.”

O Gaúcho, ainda achando graça, emendou: “Te prepara porque tem um rio no meio.”

 De novo não dei muita atenção, mas por via das dúvidas perguntei: Dá para deixar o violão aqui? Amanhã passo pra pegar.”

“Claro que dá, meu filho!”

Agradeci, botei a viola na capa e dei para ele guardar. Peguei a mochila, dei boa noite para o pessoal e fui encarar o caminho. Noites sem lua como aquela em particular eram excelentes para observar estrelas cadentes, mas faziam a visibilidade nula. Na estrada de terra ainda dava para enxergar alguma coisa, mas no mato estava um breu completo. Fui me guiando pelo barulho da água correndo ao longe, sentindo a areia com os pés e me escorando nos troncos das árvores com a mão.

A visibilidade voltou quando alcancei o rio. Na clareira, percebi que a outra margem ficava a uns seis metros de distância e pensei em desistir. Em vez disso, imaginei o mico que pagaria se voltasse dizendo que tinha ficado com medo e criei coragem e comecei a travessia no leito lamacento da água morna. Conforme a profundidade foi aumentando, barulhos de sapos e de outras criaturas da noite me fizeram pensar em cobras, animais estranhos e peixes carnívoros.  Numa dada altura, a água chegou quase a altura do peito e a correnteza tornava difícil equilibrar as tralhas na cabeça.

Do outro lado avistei a porta da cabana no final da trilha de areia. Como o seu Manoel tinha dito, a tranca era fácil de abrir. A claridade criada pela porta aberta revelou uma vela colada numa mesa. Revistei a mochila e achei a caixa de fósforos e liguei a vela. A chama fraquinha iluminou as paredes de madeira com argila, o chão de areia e o telhado de palha. Os únicos móveis eram aquela mesa rústica e uma cadeira feita a mão do lado. Fiquei digerindo aquele cenário e o cheiro acre e úmido. O vento soprando do mar estava uivando alto. Ele tirava o abafado da casa mas fazia a porta, as janelas e as árvores em volta baterem balançarem em uma coreografia sinistra. Estranhamente, a luz da chama pareceu me proteger e fez com que a cabana se tornasse aconchegante. Ainda ensopado, abri meu saco de dormir, o estendi no chão e assim que deitei caí num sono profundo.

*

O sol entrando pelos buracos da janela me acordou de manhã cedo. Ainda dava para ouvir o vento que agora, mais suave, permitia escutar o canto dos pássaros e as ondas quebrando ao longe. Saí do barraco para ver como aquilo era de dia. Fora minhas pegadas deixadas na noite passada, a areia em torno da casa tinha apenas pegadas de caranguejos e de pássaros. A paisagem em volta era densa e estava colorida pelo sol ainda tímido filtrado pela maresia. Naquele momento, o mundo era apenas a cabana, o mato ao redor e a presença da praia ao longe. Aquela paz especial me levou mentalmente ao início dos tempos.

Naquele estado quase místico caminhei até a praia que não ficava longe. Assim que a mata abriu, cruzei a areia, mergulhei no mar e nadei por um bom tempo até chegar a uma distância boa da costa. Na água funda, com aquela paisagem só para mim e com o corpo recomposto pelo exercício matinal, fiquei boiando e apreciando aquele espetáculo. Aquele paraíso ficava a poucos quilômetros de Santa Cruz de Cabrália, onde os primeiros pés europeus haviam tocado o país-continente. Este era o lugar onde aquelas almas ocidentais plantaram as sementes de um novo país. Naquela hora e local ficou fácil imaginar a flotilha chegando. Será que alguém naqueles navios tinha pensado que havia algo a aprender naquela terra linda? Não teria sido uma oportunidade para começar algo novo e melhor? Talvez não fosse tarde demais. Apesar dos horrores que seguiram, a carta de Pero Vaz de Caminha descreve um encontro festivo de civilizações, quem sabe a saga ainda não pudesse terminar bem?

 *

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